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Blog da Lúcia Helena

Na cabeça, o cigarro tira o prazer de viver. E ainda esculhamba o planeta

Lúcia Helena

28/05/2019 04h00

Crédito: iStock

Em matéria de saúde, não há nada nesta vida que não tenha defesa, a não ser o cigarro. O álcool? Ora, para a maioria das pessoas não há mal em tomar um vinho de vez em quando… O coração poderá até agradecer. O torresminho lotado de gordura? Não entope as artérias, se saboreado com gosto uma vez na vida e outra na morte. E por aí vai — quase tudo sendo absolvido pela palavra moderação. 

Mas o tabaco, ah, ele é indefensável. Mesmo assim, 1,6 bilhão de pessoas ao redor do globo dependem de suas tragadas. E o hábito de fumar, que já foi reduzido pela metade entre nós graças a campanhas antitabagismo de enorme sucesso, agora ameaça ganhar novo fôlego.

"O consumo volta a crescer entre os jovens, inclusive em formas que lhes parecem mais seguras, como em vaporizadores, cigarros de palha com ares de serem mais naturais…", observa o médico Luiz Paulo Kowalski, chefe do departamento de cirurgia de cabeça e pescoço do A.C. Camargo Cancer Center, em São Paulo. "'É uma ilusão, porque, quando falamos em tabaco, não há uma forma mais segura de fumar. Todas são igualmente danosas."

Não bastasse estreitar as artérias por onde o sangue trafega, aumentando a pressão e o risco de problemas cardiovasculares, a fumaça agride todo o trajeto por onde passa — boca, garganta, esôfago e pulmões que, pelo contato direto, ficam mais sujeitos ao câncer. "Os tumores também são comuns naqueles órgãos responsáveis por eliminar as substâncias do tabaco, como o fígado e todas as vias urinárias", lembra Kowalski, para quem a melhor prevenção seria o jovem nem sequer acender o primeiro cigarro. "Uma vez aceso, sabemos: a dependência que ele causará será mais forte até do que a de bebida alcoólica", diz.

Mas evitar a primeira tragada será difícil em tempos nos quais, na contramão do mundo, ameaçamos cortar impostos sobre o tabaco. Que ideia mais tosca! O motivo, ao meu ver, é torpe: diminuir o contrabando. De fato, 25% dos cigarros tragados no país chegaram até os fumantes contrabandeados. Mas uma coisa é uma coisa e outra coisa é… 

"Seria o mesmo de reduzir impostos sobre os carros para evitar o desmanche de peças", compara o pneumologista Ciro Kirchenchtejn, coordenador do Help Fumo, centro de tratamento do tabagismo em São Paulo. "Nem vai adiantar, porque o valor médio de um maço, equivalente a até 2 litros de leite, mesmo com a redução dos impostos continuará bem mais alto do que o do contrabandeado. Então, o único sentido em diminuir a taxação é facilitar o acesso e favorecer a indústria." Desculpa esfarrapada é que não dá pra gente tragar, certo?

O pior efeito da nicotina, penso, não é nos matar aos poucos, mas nos enganar de cara. O indivíduo fica com a forte impressão de que ela provoca prazer, quando a bioquímica é outra: por causa dela, ele fica irritado umas vinte vezes ao dia, sempre uma ou duas horas após ter esmagado a última bituca. E a sensação ruim, lógico, só vai embora quando acende mais um cigarro.

É um ciclo de desprazer e sofrimento . E é por ele que esse produto é feito, tanto que todas as marcas com menos de 0,5 grama de nicotina por cigarro foram um fracasso de mercado.

Sob o olhar da química, a nicotina é um alcaloide com uma fórmula  quase igual à da acetilcolina, um dos neurotransmissores do cérebro. Ao inundar a massa cinzenta, desorganiza  as sinapses entre os neurônios, como se mudasse o rumo da prosa entre eles, especialmente no que diz respeito à sensação de recompensa. "Vem daí a sensação de 'ah, eu merecia um cigarrinho agora'", descreve Kirchenchtejn.

Ainda na massa cinzenta, ela se intromete no trabalho de outro neurotransmissor, a dopamina — e aí mesmo é que o bicho da fumaça pega. A nicotina então tira a fome, aumenta a concentração… Pior: na sua presença, os neurônios se adaptam e criam milhares de novos receptores para encaixá-la.

O problema, nesse caso, é que não há mal que sempre dure. A nicotina, ao sumir ligeiro, deixa aqueles novos receptores  na mão— eles aparecem cerca de três meses após o consumo eventual de um cigarrinho aqui, outro acolá. São feito bocas escancaradas na superfície das células cerebrais,  gulosas por mais doses da substância.

Nessa ausência, surgem desprazer, estresse fome, nervosismo. Por causa da acetilcolina, que manda ordens nervosas para a musculatura do corpo, também aparecem tremores, suor… Há quem experimente uma  baita taquicardia, enquanto a glicose do sangue despenca. Em resumo, é isso o que o cigarro faz: o avesso das alegrias propagadas, que são apenas um cala-a-boca para aqueles novos receptores neuronais sedentos. "Fala-se muito no risco de câncer, infarto, enfizema e outras doenças fatais provocadas pelo tabagismo. Mas a doença compulsiva começa bem antes", diz Kirchenchtejn.

Temos ainda de pensar no planeta. São uma montanha de 12,3 bilhões de bitucas jogadas fora todo dia. Demoram mais de 2 anos para desaparecerem do mapa e vão lançando cerca de 4,7 mil substâncias no solo, nos rios e nos córregos— quando, de quebra, não entopem bueiros.

A própria cultura do tabaco continua sendo a maior esbanjadora de agrotóxicos  e, mundo afora, é acusada de usar mão-de-obra infantil, expondo a meninada não só ao trabalho precoce, mas a essas substâncias tóxicas.  A gente precisa considerar também que, se os 1,6 bilhão de pessoas tragarem 20 cigarros por dia, a quantidade de fumaça que suas baforadas lançarão na atmosfera é, sim, uma considerável contribuição para o efeito estufa. Nesse lado, o da sustentabilidade, poucos pensam enquanto insistem em fumar. 

Terapia comportamental cognitiva, para que cada um entenda os gatilhos capazes de despertar a vontade de acender mais um, e medicamentos que agem na abstinência — repondo parte da nicotina para retirá-la aos poucos ou compensando os abalos da dopamina — fazem parte do tratamento para deixar o vício. Fato: a maioria dos candidatos a ex-fumantes precisará de ajuda.

Ciro Kirchenchtejn dá pistas para a pessoa refletir se é esse o caso dela. "O importante é ter noção do seu grau de dependência e uma dica é observar o que ela faz logo ao acordar. Se procurar o cigarro é a primeira coisa do dia, acendemos o alerta."

Quando o organismo sofre demais nas oito horas de sono porque ficou sem tragar, note: o cigarro da manhã é aquele que notoriamente dá mais prazer, parece o mais gostoso de todos ao longo do dia. Outro sinal claro de uma dependência mais grave é não conseguir ficar em um local agradável por cerca de duas horas — um cinema, por exemplo — sem fumar antes de entrar para abastecer o corpo de nicotina. Ou precisar sair voando no final pelo mesmo motivo. Isto é, se o fumante não sair no meio

Essa abstinência intensa provavelmente só será suportada com o auxílio de uma equipe multidisciplinar. E, no caso, bom avisar: marque uma data tranquila para se afastar das pitadas. Serão de 30 a 40 dias de sofrimento. Só depois alivia. Aguente firme pelo verdadeiro prazer de viver.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.