No cérebro, ser feliz é mesmo uma decisão: a de focar no momento presente
O russo Liev Tolstói escreveu que todas as famílias felizes se parecem entre si e que as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira. Discordo! Experimente uma desgraça e dirá "desgraça". Ninguém normal tem a menor dificuldade para reconhecer coisa ruim quando chega, de tão semelhantes que são nossas tristezas. Mas normalmente suspiramos que éramos felizes e nem sabíamos.
Um dos motivos, penso, é que felicidade lembra drops de infância, sortidos. A cada hora nos surpreende com um sabor e nunca é igual para cada um de nós. Mas, se Tolstói começou tão bem a história de sua Anna Karenina, estou aqui enrolando. Confesso. Fica a dica: jornalista, quando inicia um texto citando um autor de livro ou um filósofo qualquer, quer pegar emprestado o que o outro tem de sabichão para esconder sua limitação. A minha, neste instante, é definir felicidade, já que ela entra nas recomendações da Organização Mundial de Saúde, a OMS, tanto quanto afastar a praga, a ferida purulenta, o câncer e o infarto — esses eventos notoriamente tristes de doer.
Caminho seguro seria recorrer à neurociência, que tudo vê em exames pomposos de imagem do cérebro. E assim, para enxergar o que acende estrelas em nossos neurônios, fui assistir à aula da psiquiatria Hedy Kober no II Simpósio Internacional de Bem-Estar, promovido pelo Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Hedy dirige o Clinical & Afecctive Neuroscience Lab da Universidade Yale, nos Estados Unidos.
Ela logo jogou a batata quente nas mãos da audiência: "Os brasileiros são felizes?" Lembrou que, em 2012, uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas garantia que éramos o país mais feliz da América Latina e o décimo-sexto mais contente do planeta em um levantamento realizado em 147 nações. Mas, como esse mundão gira porque é redondo, sim, em 2017 a felicidade pegou o seu banquinho… Os índices de estresse, depressão e ansiedade, desde então, aumentam 15% ao ano, de acordo, de novo, com a OMS. E hoje amargamos: somos o país mais ansioso ao redor da Terra e o quinto mais deprimido. O que deu em nossas cabeças?
Hedy Kober assegura que uns 50% da nossa felicidade, porém, não estão nela, mas nos genes. Sim, existem genes que nos deixam mais propensos a encarar tudo com um sorriso, assim como há uma tendência escrita no DNA de uns e de outros à depressão. Fiquei matutando se isso explicaria a nossa vocação risonha. Mas não há genes, parece, que segurem a barra destes tempos… Que barra?
Política, economia, violência, ladroagem, dia dos Namorados sem namorado, ponteiros da balança, chefe chato, férias canceladas — nada disso teria forças para espantar nossa alegria, antes que pense que darei essa desculpa, que para a tal da neurociência é ligeiramente esfarrapada. Suas pesquisas mostram que só 10% da felicidade são determinados pelas circunstâncias. Restam 40%. Não sei se alivia, mas esses 40% são aquilo que fazemos intencionalmente. Ou seja, questão de escolher certo.
Algumas atitudes acertadas já são bem reconhecidas por estudos. Então vou dar aqui a fórmula — ousadia maior do que a de contrariar Tolstói, talvez. Mas, enfim, uma delas é a atividade física. Fácil entender pela enxurrada de substâncias relacionadas ao bem-estar que o corpo em movimento derrama na massa cinzenta. Então, se a vida anda sem graça, ande mais rápido do que ela. Ao pé da letra. Os pés nos tênis.
Outro caminho fácil de seguir, se a gente afasta o argumento melancólico da falta de tempo: ficar mais ao lado de quem a gente de gosta pra valer. Feito remédio. Todos os dias. De caso pensado, com aquela consciência morna de que a pessoa querida está bem ali ao seu lado — na mesa do jantar, no carro, no cotidiano simples de que a vida é feita.
A terceira atitude que mais traz felicidade é ficar próximo da natureza. E é bem importante isso que estou contando: cada vez mais pesquisas apontam que olhar para um pouco de verde, uma ave rasgando o céu ou um inseto ziguezagueando no ar, quem sabe ouvindo barulho da água furando a pedra dura, mexe demais com as áreas acionadas do cérebro. A ansiedade se apaga nas imagens dos exames, enquanto regiões ligadas ao foco e à serenidade se tornam pontilhadas de luz.
As pesquisas dizem mais. Dizem que gastar dinheiro faz muita gente feliz de verdade — bem, confesso, aí eu lembrei do meu saldo e aqueles 10% das circunstâncias da vida se agigantaram… Mas atenção que não é para abrir a carteira para qualquer coisa: no caso, as pessoas são felizes quando gastam dinheiro com os outros ou em atividades. Mais vale pagar o cinema do que a roupa nova. Ou investir no curso, na viagem, na festa do que na compra de um objeto qualquer. Dizem..
Finalmente vem algo de peso: a gratidão. Sei, soa zen demais para os ouvidos de alguns. Para Hedi Korber, no entanto, há uma lógica psicológica: quem é grato pelas coisas que lhe acontecem costuma ser uma pessoa atenta a tudo o que se passa. E essa conexão com o presente é o que existe de mais fundamental. Viver o agora mesmo com a aceitação — é o que temos para hoje e bola pra frente.
Por isso mesmo, no laboratório de Hedy, ao investigar a felicidade, ela se aprofunda nos efeitos da meditação na linha mindfulness, às vezes com práticas simples como prestar atenção por dez minutos na própria respiração e nas sensações por todo o corpo. Não faltam trabalhos atestando que esses exercícios meditativos reduzem o estresse, a sensação de sofrimento e a confusão mental. Aliás, vale citar um estudo clássico de Harvard, de 2012, apontando que a mente que muito devaneia é tremendamente frágil a quadros depressivos. Felicidade exigiria atenção e foco.
Mas o interessantíssimo é o conceito de que a meditação teria o que os cientistas chamam de efeito dose-dependente. Hedy Korber e seus colegas realizaram uma pesquisa com gente que nunca tinha feito mindfulness. Todos passaram por um treinamento de três dias.
Na experiência, o cérebro era vasculhado por exames de imagem durante a prática e, em determinado instante, os participantes recebiam um estímulo de calor .Sinceridade? Era um toque quente no braço, ardente, quase queimando. Mas orientação era apenas aceitar a sensação, sem julgar se era boa ou ruim.
O que as imagens cerebrais mostraram então: bastavam três dias para a sensação dolorosa ser menos percebida pela massa cinzenta, como se ela não desse mais tanta bola para o que não seria assim tão agradável. O que poderia corresponder ao efeito sobre situações cotidianas igualmente chatas, me disse Hedy.
E note: quanto mais dias os voluntários continuavam na prática ou por mais tempo, mais efeitos eram visíveis no cérebro. Eis a dose-dependência. Primeiro, as áreas ligadas à atenção se iluminaram. E, com o passar dos dias, o padrão cerebral típico de pessoas desanimadas e entristecidas foi mudando. Surgiu um padrão de funcionamento associado ao estado de felicidade.
Perguntei à Hedy se o mesmo poderia se esperar daquelas outras ações que nos deixariam felizes. Embora aposte mais suas fichas no mindfulness — para ela, o fato de a mente estar presente em cada instante seria a chave para mudar o padrão cerebral — sim, é possível. Portanto, a gente deve escolher agir pela felicidade e ser persistente nessa opção. E, então, o russo que me perdoe, mas eu o troco pelo mineiro Guimarães Rosa — sabe aquele papo sertanejo de que a vida quer de nós coragem?
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