Deixe de ser tonto: quem diz que alguém tem labirintite costuma errar feio
A labirintite é uma doença muito, muito rara — e grave. A maioria dos médicos se forma, abre consultório e se aposenta sem nunca ter visto uma legítima situação dessas pela frente. Mas sai repetindo feito papagaio o nome da dita-cuja para rotular toda e qualquer tontura. Um engano danado.
Uns 30% dos brasileiros ficam zonzos de vez em quando. Alguns vivem quase todos os seus dias em um gira-gira. O problema de sair dizendo que toda essa gente tem labirintite não é questão de semântica: existem trinta doenças conhecidas do sistema vestibular, aquele que controla nosso equilíbrio e nossa coordenação. Todas bem diferentes e com tratamentos diversificados. Juntar tudo em uma só palavra, na prática, em geral significa não fazer a menor ideia daquilo com que está lidando. E, por consequência, tratar tudo feito uma coisa só — a pseudo labirintite. Resultado: as pessoas seguem tontas, quando teriam boas chances de resolver o caso. Se ao menos soubessem que caso seria esse…
Uma real labirintite — credo! — provocaria febre alta, faria os miolos explodirem de dor. Ela é sempre uma infecção, como a decorrente de uma meningite que avança tomando conta da cabeça. Um vírus ou uma bactéria, então, colonizam o labirinto, estrutura que lembra um caracol no interior dos ouvidos. Bem no meio dele, há o vestíbulo, recheado de um gel onde ficam mergulhados inúmeros cristais. Conforme a gente se mexe, eles vão para um lado e para o outro nessa gelatina e dão o parâmetro de movimento para o sistema nervoso — afinal, estamos em um elevador que está subindo ou descendo?
Não, a labirintite não é qualquer vertigem. "Mas, até nos Estados Unidos, esse é o nome que caiu na boca do povo", conta o neurologista Saulo Nardy Nader, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo — que, aliás, foi apelidado por seus ex-alunos na Universidade de São Paulo como? "Doutor Tontura", claro.
A curiosidade por esse universo surgiu quando tinha 12 anos. Seu pai sentiu uma vertigem ao volante. O carro capotou com a família e o moleque, desde então, encasquetou. Seu Vander passa bem, obrigado — anos depois, já não vê tudo rodar de repente. E o filho, década mais tarde, mergulhou no problema ao se subespecializar dentro neurologia em distúrbios vestibulares na USP para, depois, estudá-los no Queen Square Hospital , em Londres, na Inglaterra, onde fica um dos maiores centros de investigação e tratamento de vertigens do planeta. Mas, ironicamente, ele mesmo usa a expressão labirintite vez ou outra no seu Instagram e nos vídeos educativos que posta no canal do Youtube. "'É como as pessoas chamam, portanto é como vão buscar por essa informação", capitula, mais preocupado em fazer com que todos entendam aquelas trinta doenças do sistema vestibular.
Nomes por nomes, os desses males são esdrúxulos: quem aí tem uma vertigem posicional paroxística benigna, a VPPB? Conhece a doença de Menière? Que tal a neurite vestibular? E a migrânea vestibular? Ah, essa é dolorosa! Prefere uma vertigem de origem central? Segundo o doutor Saulo Nader, no Brasil, há somente 15 neurologistas — e olhe lá — exclusivamente dedicados a essa verdadeira lista de palavrões. O próprio doutor Saulo Nader, há quatro anos, é um dos que lideram, na Academia Brasileira de Neurologia, um departamento criado para que mais colegas saibam diferenciar as causas das tonturas.
O primeiro passo é descobrir seu local de origem em uma das três partes do sistema vestibular. Às vezes, algo não vai bem no famoso labirinto, que capta o movimento. Mas, em outras, o defeito nem está nele e, sim, no nervo que faz sua comunicação com o cérebro. Ou, ainda, pode estar no próprio sistema nervoso central, mais especificamente na região do cerebelo, próxima à nuca. Acredite: tudo muda a partir do endereço. "Não importa se é um neurologista ou um otorrino que fará o tratamento. O que ele precisa é entender do assunto em vez de apontar coisas muito diferentes como iguais", diz Nader.
Sem descobrir que peça está problemática no seu sistema vestibular, 90% dos pacientes convivem com o mal-estar. Pior é quando tomam remédios para a tal labirintite. Alguns desses medicamentos podem se transformar em gatilho para a depressão, entre os efeitos indesejáveis. Outros resolvem pequeníssima parcela dos casos. Perda de um tempo precioso, porque as causas tendem a piorar com os anos. E detalhe: são males capazes de aparecer em qualquer idade, inclusive em crianças.
Pergunto se tontura e vertigem seriam a mesma coisa. Para o Aurélio, ora, são sinônimos. Já para Medicina… "A tontura abrange sensações de atordoamento, flutuação … A pessoa pode se desequilibrar ou ficar visão apagada por instantes", explica o neurologista."E, claro, a tontura também engloba a vertigem, que é uma sensação anormal de movimento, como se o corpo, mesmo parado, se sentisse em um carrossel ou em um balanço". Fazendo um recorte naqueles 30% da população que têm tontura, sete em cada dez dessas pessoas sofrem de vertigem.
A intensidade e o quanto esses sintomas atrapalham a vida vai depender de cada um. Veja o exemplo da cinetose — é assim que se chama o conflito entre as informações visuais de movimento e a interpretação do cerebelo, que deixa muita gente mareada em uma estrada cheia de curvas ou no passeio de barco. "Uma estratégia é fechar os olhos ou mirar o olhar em um único ponto dentro do veículo. Ou, ainda, engolir um remédio para enjoo meia hora antes", ensina o doutor Nader. "Mas isso é inviável para quem tem o problema e pega uma hora de metrô todos os dias. O mal-estar pode durar duas horas, acabando com o rendimento no trabalho. Aí precisamos entrar com drogas que fazem um ajuste químico no cerebelo."
A mais comum de todas as doenças vestibulares, porém, nem precisaria de medicamento. É a VPPB, a vertigem posicional paroxística benigna. A cura, obtida em 93% dos casos, está literalmente nas mãos do médico e pode ser alcançada em uma única consulta, na qual o profissional realiza movimentos específicos com a cabeça do paciente.
Em casos assim, o que faz tudo rodar é um cristalzinho maldito ou outro que escaparam daquele gel dentro do labirinto. Fora dele, esses cristais irritam a região, daí a cama gira e as paredes brincam de ciranda quando a pessoa olha rápido para o alto. Mas as manobras do especialista fazem essas pedrinhas voltarem à gelatina de onde escapuliram. E pronto, nada mais faz piruetas.
Outro tipinho muito prevalente e enganador é a migrânea vestibular. Trata-se de uma forma de enxaqueca em que a manifestação é a tontura. E o que confunde: muitas vezes o sujeito fica tonto nas crises, mas sem sentir um pingo de dor. Sim, também tem remédio.
O terceiro tipo mais frequente é a tontura perceptual, que já foi chamada de fóbica. Não à toa: "Ela está sempre ligada a um desequilíbrio emocional, principalmente à ansiedade", explica Saulo Nader. "É uma doença neurológica, arraigada em uma questão psiquiátrica. Essa tontura é real, não é imaginação, frescura, nem piti", avisa. Mas, incompreendido, o paciente vai deixando de pisar para fora de casa.
É bem verdade que muitas doenças que nada têm a ver com o sistema vestibular também causam vertigem — por exemplo, um diabetes, quando a glicose despenca do nada na hipoglicemia. Aí, o mal-estar é um sintoma secundário. Mas, quando a tontura surge por si só, as chances de sucesso no tratamento são de 95%. Isto é, se ele for específico para uma daquelas trinta doenças de nomes estranhos que tiram o nosso prumo.
Para desfazer só mais uma confusão: acabou aquele papo de que comer doce causaria "labirintite". Aliás, o café tampouco tem a ver com isso. Vou dizer que, há alguns anos, tive tontura e o médico me fez anotar quantos xícaras dele eu tomava por dia. Fiquei agoniada. Um café recém-coado sempre me faz feliz. "Claro que, se a pessoa tomar um balde, pelo fato de a cafeína ser estimulante, ela piora aqueles quadros ligados à ansiedade", diz Saulo Nader. Ou seja, por um tempo deixei de tomar meu cafezinho à toa. Fui bem tonta.
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