Daqui a 30 anos uma dor de garganta poderá matar mais do que um câncer

Crédito: iStock
Se você acha que estou sendo alarmista, olhe para isto: se nada for feito, em 2050, as infecções por bactérias serão responsáveis por 20% mais mortes do que o câncer. Nem é preciso ir tão longe no tempo para entender o que a Organização Mundial da Saúde já aponta como a quinta maior ameaça à nossa sobrevivência. Basta lembrar que, no Brasil, segundo a Anvisa, cerca de 25% das infecções são causadas por micro-organismos multirresistentes, que esnobam solenemente a maioria dos antibióticos, remédios que seriam nossa artilharia pesada. Não à toa, o apelido é superbactérias.
Mas, se a gente pensar bem, as bactérias sempre foram super — sob muitos aspectos, superiores a nós. Estavam aqui antes da nossa chegada e corremos o forte risco de desaparecermos do mapa muito antes delas. Até porque talvez não exista na Terra outro ser com a absurda capacidade de adaptação que elas têm. Tanto que dominam o pedaço.
Nosso corpo, vou lhe dizer, é um amontoado de bactérias disfarçadas de gente — nele, existe um número dez vezes maior de células bacterianas do que de células humanas. E tudo bem, vamos nos conformar em sermos minoria em nós mesmos: vários desses micro-organismos são uma mão-na-roda, contribuindo para a proteção da pele, a digestão, o equilíbrio do metabolismo e muito mais. Mas quando aparece um tipo encrenqueiro…
"Todo e qualquer órgão está sujeito à invasão de uma bactéria causadora de doenças", diz a médica Rosana Richtmann, diretora do Departamento de Infectologia do Hospital e Maternidade Santa Joana e da Pro Matre Paulista. Aí é que está: então, qual a nossa reação imediata? Engolimos um antibiótico e criamos o ambiente ideal para a resistência, um mecanismo tão assustador quanto fascinante.
Uma bactéria nunca é cabeças-dura, aprende ligeiro. Se um remédio age em certa molécula de suas paredes e ela dá um jeito de suportá-lo um pouco mais, passa a lição para a geração seguinte. Eu nunca escreveria sobre uma bactéria frases na linha das que tantas vezes inseri nos meus textos: "nós, tão humanos, sentimos estresse porque, nos tempos das cavernas, o homem fugia do leão", ou algo do gênero. Se somos fisiologicamente apegados ao passado remoto, as bactérias não. Aprendem hoje e resolvem o pepino delas agorinha mesmo. Nós, donos de um organismo procrastinador, jamais seremos tão ágeis.
Acabou? Que nada… "Além desse mecanismo de transmitir o aprendizado de mãe para filha, que chamamos de cromossomal, as bactérias lançam mão do plasmídeo", conta a doutora Rosana. Trata-se de um fragmento de DNA com a informação de como sobreviver aos nossos ataques, que, feito uma pulga da genética, pula de uma bactéria para outra. "Ou seja, se um grupo de micro-organismos descobriu um jeito para driblar o remédio, o plasmídeo espalha essa tática para bactérias de outras famílias que, em princípio, não tinham nada a ver com o órgão afetado pela infecção", explica a médica. Telefone sem fio que dá certo, azar o nosso.
Para a química farmacêutica Suellen Rodrigues, gerente científica do laboratório MSD, as bactérias são prova viva de que a união faz a força: "elas mandam mensagens em uma velocidade impressionante para aquelas que são de outra comunidade, criando uma verdadeira mobilização no ambiente para derrotar, diria, não o que ameaça uma espécie isoladamente, mas todas elas, as bactérias em geral", conta.
Segundo Suellen, quando soa o alarme, elas também se multiplicam vertiginosamente. "Um dos critérios para saber o prognóstico de uma infecção, se pior ou melhor, é calcular a quantidade de bactérias em determinado volume de tecido, independentemente do tipo de micro-organismo", explica.
O que isso significa: mesmo aquelas bactérias consideradas, em tese, menos agressivas podem virar uma baita ameaça conforme a sua quantidade. Porque, em bando, têm grande potencial para o estardalhaço. Gritam até receberem o bê-a-bá de uma prima distante de como poderiam se safar de um remédio. Eu diria: bactérias resistentes fazem um crime organizado.
E é justamente o remédio, engolido sem critério, que nos coloca em sua mira. Nem quero falar de quem sai tomando antibiótico sem pagar pra ver se a infecção é mesmo bacteriana. Ora, antibióticos não fazem nem cócegas em vírus. Se forem eles os agentes por trás de uma dor de garganta, por exemplo, tomar antibiótico é como dar um treinamento de elite à turma bacteriana. Nesse ritmo, vai chegar o dia em que a dorzinha besta será o início de uma batalha inglória.
Bem treinada, mesmo que uma bactéria esteja ali na paz e de boa, isso será problema. Quando chegar outro micro-organismo, este capaz de provocar estragos, não hesitará em fazer fofoca. Contará ao forasteiro como passar a perna na medicação que você consumiu por bobagem. O mesmo fenômeno corporativista acontece se alguém não espera esvaziar a caixa de comprimido ou o vidro do remédio. Aí sobrrevivem aquelas bactérias mais fortes — e que logo soprarão às outras os segredos do seu sucesso.
Mais problema é se, mesmo confirmada a infeccção bacteriana, consumimos drogas sem conhecer qual tipo específico está causando aquela febre ou tosse. "Então, até por insegurança, muitos médicos receitam os antibióticos de amplo espectro", constata Rosana Richtmann. Estes arrasam bactérias boas, bactérias ruins … "Damos um tiro de canhão para matar, quem sabe, uma mosca", resume a médica.
Ela não quer dizer apenas que tomamos algo forte demais. O grave, com esse tipo de atitude, é ensinar um monte de tipinhos a driblar a medicação. Se o remédio fosse focado em um único inimigo, só ele então teria essa lição — porque, atenção, alguma resistência sempre aparece, mesmo que você faça tudo direitinho.
O ideal seria que as tecnologias para apontar, primeiro, se é vírus ou bactéria e, nesse caso, de que tipo se trata dessem respostas num zás-trás. "Os exames de cultura rápidos ainda estão longe de serem acessíveis no país", lamenta a doutora Rosana. E, quando a gente fala em resistência bacteriana, não adianta tanto olhar para as fronteiras. Superbactérias pegam avião que é uma beleza! A espécie resistente que surge na Índia e que, antes, levava uma década para se tornar um problema em hospitais brasileiros, hoje não demora três anos para virar uma dor de cabeça nas nossas UTIs. E lógico: nós também exportamos superbactérias de montão para os gringos.
A saída é adiar o avanço da resistência bacteriana para ganhar um bom fôlego e descobrir alternativas aos antibióticos — estes, aviso, estão fadados à aposentadoria por invalidez, porque daqui a pouco deixarão pra valer de funcionar. Uma estratégia no futuro será interferir na conversa entre as bactérias usando fake-news.
A doutora Rosana explica: "Bactérias avisam umas às outras quando a população delas está muito grande, para que parem de crescer. Evitam a luta por espaço". Por isso, uma ideia é espalhar o boato entre elas de que já cresceram demais — lembra que quanto maior a quantidade pior o prognóstico? Há, ainda, testes interessantes, como o de inocular vírus em superbactérias. Então, elas literalmente se explodem. Mas tudo isso ainda está no começo. Por isso, ganhar tempo é questão de vida ou morte.
Usar antibióticos de maneira consciente é a primeira medida: sem pegar a receita do vizinho, sem interromper o uso antes da hora, aguardando para ter certeza de que é mesmo bactéria. Ah, sim, na falta do bendito exame de cultura, bom senso é esperar dois ou, três dias para ver se o quadro infeccioso não cede.
Outra questão vital: dar no pé dos hospitais assim que possível. "'Ë ali que se concentram pessoas com infecções tomando antibióticos. Logo, é ali que se concentram também as superbactérias", diz a doutora Rosana. Se o médico deu alta, confie. Em vez de continuar por lá, melhor seguir com a medicação em casa ou voltar ao ambulatório uma vez por dia para tomar algo na veia.
Melhor ainda: faça de tudo para nem ficar doente. Lave as mãos a todo instante e tome vacinas. Quem pega uma gripe hoje porque não se vacinou — ah, sim, sim, gripe é caso de vírus —, se fragiliza e abre brecha para contrair uma infecção bacteriana. Aí toma antibiótico e…
Existem situações que, para o cidadão comum, são mais difíceis de controlar: "contribuem para a nossa resistência os antibióticos que são dados aos animais que consumimos na alimentação", alerta Rosana Richtmann. Devemos, então, exigir responsabilidade do governo nesse sentido, lembrando que não há segurança que impeça micro-organismos resistentes de invadirem o casebre do pobre coitado, nem o próprio Planalto. As superbactérias, afinal, ensinam: a fragilidade, quando existe, é sempre de todos.
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