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Blog da Lúcia Helena

Hipoglicemia: o perigo é que, na maioria das vezes, a pessoa não sente nada

Lúcia Helena

25/07/2019 04h00

Crédito: iStock

A paisagem de um gráfico que mostra a glicose na corrente sanguínea é cheia de vales e montanhas. Esse açúcar está lá embaixo quando acordamos — afinal, passamos umas belas horas na madrugada só vendo comida em sonho. Mas a subida começa imediatamente após o café da manhã e, quando o pico é atingido, o traço volta a descer porque as células dos pés à cabeça já sorveram a energia desse desjejum. 

E assim segue o dia, com a glicemia se elevando a cada refeição e declinando quando não engolimos nada. Nesses períodos de jejum, é normal que as taxas fiquem entre 70 e 100 miligramas de glicose por decilitro de sangue. Acima disso, pode ser sinal de uma baita encrenca chamada diabetes — acho que nem preciso dizer quão danada ela é. E abaixo disso? Bem,  abaixo de 70 mg/dl  é a hipoglicemia,  a queda do açúcar sanguíneo, que nunca deu tanto no que falar. É que nem os médicos imaginavam que havia tanta crise hipoglicêmica por aí. E como tem!  Pior é que mesmo no meio de uma delas, muita gente não sente nadinha, nenhuma gota de suor frio escorrendo pela testa ou coisa do gênero. Ainda assim, pode estar na iminência de algo grave. Sem fazer doce e sendo direta: uma ameaça à vida, em casos extremos.

Existem pessoas e situações que favorecem esse susto. Crianças em geral e idosos, por exemplo, parecem mais suscetíveis à hipoglicemia, mesmo que leve. Pacientes com problemas renais, hepáticos ou com insuficiência cardíaca são outros fortes candidatos. Já quem tem mania de não comer à noite pode estar marcando uma tremenda bobeira, que não fica atrás da mancada de se acabar no treino da academia sem ter ingerido algo para dar energia antes. Também está sujeito à queda brusca do açúcar na circulação quem encheu a cara de álcool. 

No entanto, a hipoglicemia é uma nuvem escura pairando principalmente sobre a cabeça de quem tem diabetes, em especial daqueles pacientes que precisam fazer uso da insulina — se a injetam um tico além ou se comem um tantinho a menos —  e os que, independentemente disso, têm a doença há algum tempo.

O tempo, no caso, conta contra. Isso porque, se as quedas da glicose são recorrentes, mesmo que sutis, o sistema nervoso ressentido se adapta e, então, para de reclamar de fraqueza ou tontura. O sujeito deixa de demonstrar que está confuso, com dificuldade para falar ou raciocinar direito a cada baque.

O cérebro também começa a não orquestrar a chegada providencial de substâncias como o cortisol produzido pelas supra-renais e o glucagon, outra molécula secretada pelo pâncreas. Elas extrairiam o açúcar de seus reservatórios de emergência no corpo, para que ele não continue ladeira abaixo na circulação. Ironicamente, seriam essas mesmas substâncias que desencadeariam sinais de alerta no corpo, como tremores, palpitação, inquietude, formigamentos. Portanto, é como se não estivesse acontecendo bulhufas. Mas está  — e a pessoa pode só dar bandeira quando cair de madura desmaiada ou passar muito mal de um instante para outro, envolvendo-se em acidentes.

Em sua apresentação sobre o tema durante o Endodebate, evento científico da melhor categoria que aconteceu no último final de semana em São Paulo, o endocrinologista Mário José Saad, professor de clínica médica da Universidade Estadual de Campinas (a Unicamp), foi logo contando para os colegas que lotavam a sala: "Às vezes, escuto dos residentes na faculdade: 'mas, professor, eu nunca encontrei um paciente com hipoglicemia pela frente'. Daí respondo: 'mas ele já se encontrou com você várias vezes!'". Todos riram, talvez um pouco de nervoso. Porque gente com hipoglicemia é que não falta. E os diabéticos, no caso, são alvo de preocupação.

Não mudou nada nas pessoas. O que mudou foi a tecnologia que, agora, possibilita a existência monitores, aprovados há dois anos no Brasil, que, no lugar das tradicionais picadas nos dedos para medir a glicose, ficam colados no corpo feito um curativo e entregam a dosagem da substância circulando pelo organismo em cada segundo das 24 horas de um dia. Em uma comparação: a picadinha seria um retrato de determinado momento em que, por sorte, pode estar tudo bem. Já o monitoramento com o novo sistema é o filme completo, sem o corte de qualquer cena.

Os dados desse monitoramento podem ir direto para o celular e deixar pacientes e médicos de queixo caído. Foi o que aconteceu quando, no ano passado, saiu um estudo realizado por diversos centros brasileiros. Ele envolveu 679 pacientes com diabetes — 321 deles com o tipo 1 da doença e 293 com o tipo 2. Ao lado do endocrinologista Márcio Krakauer, da Sociedade Brasileira de Diabetes, o professor Saad fez questão de apresentar seus resultados no Endodebate. E você vai entender o porquê.

Problema traiçoeiro e comum

Ora, a hipoglicemia é tão comum que, ao longo das quatro semanas do estudo, 62% dos pacientes com o tipo 2 e — impressionante —  92% dos indivíduos com diabetes tipo 1 passaram por momentos em que a glicose ficou aquém da meta estabelecida. O monitor acusou ainda que, em plena madrugada, 27% dos participantes com o tipo 2 de diabetes e 55% daqueles com o tipo 1 tiveram pelo menos uma crise dessas. "A hipoglicemia noturna tem várias consequências. O indivíduo não dorme direito, fica com fadiga depois. E há evidências de que, se acontece com frequência, ela favorece a demência em idosos", comentou Márcio Krakauer.

Triste, porém, foi o trabalho apontar que 13% dos portadores do tipo 2 e o dobro, isto é, 26% dos pacientes com o tipo 1 sofreram, nesse período de apenas um mês, pelo menos um episódio de hipoglicemia severa — quando a glicose fica assustadoramente abaixo de 31 miligramas por decilitro de sangue ou quando a pessoa acaba tão fora de si que não consegue tomar nenhuma atitude para se salvar. Sim, a hipoglicemia severa pode causar uma pane total e levar à morte.

O coração sai na pior

Mas toda hipoglicemia causa estragos. Se a pessoa já tem alguma doença cardiovascular, por exemplo,  a atenção precisa ser redobrada. Em seu laboratório na Unicamp, o professor Saad conduziu uma experiência com camundongos que mostra bem isso. Os animais tinham um defeito genético que os fazia desenvolver aterosclerose com tremenda facilidade. No entanto, comparando os bichinhos que sofreram crises de hipoglicemia com os que mantiveram a glicose nos eixos, a passagem do sangue era ainda mais estreita nos primeiros. "Neles, as placas de gordura eram maiores e a presença de inflamação nos vasos, mais intensa", descreveu o professor no Endodebate. "Como eu traduzo isso para o consultório: o paciente que já tem diabetes faz tempo, precisa tomar muito cuidado porque a queda da glicose poderá acelerar alguma doença cardiovascular que ele já apresente", explicou.

Na verdade, diversas pesquisas mostram que, se a crise é severa, isto é, se o açúcar despenca pra valer, mesmo que a pessoa saia dela aparentemente de boa, aumentam as chances de ela morrer por qualquer causa até um ano — um ano! — depois. No entanto, o mais assustador vem agora: comparando o que se vê por meio das novíssimas tecnologias para acompanhar o sobe-e-desce do açúcar no sangue com o relato dos pacientes, é possível notar que até 83% das crises não são percebidas por eles.  Chegam e vão embora sem sintomas,  embora façam seus estragos dentro do organismo.

Isso explica em parte porque, de acordo com  um questionário enviado a 3.827 diabéticos, seis em cada dez deles não comentam que tiveram hipoglicemia com o seu médico — se a crise foi percebida, ela não deveria ficar de fora da conversa. E, desastroso, muitos clínicos também não puxam o assunto. "Na verdade, nós deveríamos desconfiar, em vez de sair comemorando, até daquele exame de glicada que dá um resultado sempre baixinho", observa o endocrinologista Márcio Krakauer. "Pode ser que esteja tudo bem mesmo, mas pode ser que ele esteja escondendo uma série de pequenas crises hipoglicêmicas ao longo do dia", diz ele. A tal glicada, para quem não sabe, dá um panorama do que, em média, aconteceu com a glicemia nos últimos três meses.

O que fazer

Na crise, a primeira providência é engolir um carboidrato de absorção rápida — de 15 a 20 gramas de açúcar, algo como uma colher de sopa dissolvida no copo de água, é a recomendação clássica. Deixe de lado a balinha. Líquidos agem mais depressa nessas horas. Vá de suco de laranja ou de refrigerante convencional, cheio de açúcar mesmo. Depois disso, aí sim, vale comer a fruta. o pão e a batata, que são carboidratos de absorção lenta. Aliás, é bom mesmo fazer isso, porque a glicose ainda poderá dar solavancos nos 45, 60 minutos seguintes. Ninguém vai querer um rebote desses.

Nos casos severos, quando há desmaio ou até mesmo convulsão, outra pessoa poderá  apelar para a injeção de glucagon, se souber onde o paciente costuma guardá-la e como aplicá-la. E, claro, na sequência correr para um serviço de saúde. O ideal é não deixar que as coisas cheguem a esse ponto, claro. E daí só tem um jeito: o diabético deve conferir sua glicemia sempre, sem esperar qualquer mal-estar. Até porque, agora a gente sabe, é mais provável que ele nem dê as caras. Quanto aos outros, que não têm diabetes, para evitar a hipoglicemia só posso lembrar que saco vazio não para em pé.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.