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Blog da Lúcia Helena

Próstata: o que há de novo quando um câncer parece resistir a tudo

Lúcia Helena

29/08/2019 04h00

Crédito: iStock

Às vezes, o famoso PSA sobe e os médicos ficam de cabelos em pé. Ninguém está falando de situações corriqueiras, quando essa molécula que a próstata vive liberando na circulação ultrapassa a barreira normal de seus 2,5 nanogramas por decilitro de sangue — em tempo, a sigla pela qual a substância é conhecida vem do termo em inglês prostate-specific antigens. Ora, no homem que nunca teve um câncer nessa glândula, o susto ao abrir o resultado costuma ser à toa: em 75% das vezes, o que existe por trás das dosagens mais elevadas não é preocupante. Pode ser um trauma, uma inflamação, um crescimento benigno da próstata . Só  25% dos casos levantam a suspeita de um tumor maligno pra valer.

No entanto, existe uma situação em que o PSA nas alturas sempre indica um câncer, sim. Um câncer ainda invisível, prestes a dar o bote na forma de metástase e, mais grave, que já venceu a queda-de-braço com o que a Medicina até tinha para derrotá-lo. Isto é, com o que a Medicina tinha até há pouco tempo.

O câncer de próstata é o segundo mais comum em homens. Perde apenas para os tumores de pele não melanoma. O Instituto Nacional do Câncer, o Inca, prevê que, de janeiro até o final deste ano, teremos cerca de 70 mil novos casos da doença no país. E até perto de 2,8 mil deles serão o que os médicos chamam de tumores não metastáticos resistentes à castração, uma forma agressiva que, passado um período — o qual pode durar três, quatro, cinco anos —,  começa a esnobar a terapia hormonal feita para evitar a sua volta. 

E aí é que está: antes os médicos observavam a iminência desse regresso de braços cruzados. Simplesmente não tinham o que fazer até que o mal saísse do esconderijo.Ficavam sabendo desse retorno triunfal, espalhado pelo corpo, antes mesmo de o câncer ser visualizado em exames convencionais, como a tomografia e a cintilografia. Imagine o cenário como se fosse o de um filme de um suspense, quando a gente tem certeza de que o bandido já está dentro do apartamento do mocinho, talvez escondido atrás das cortinas — a música só elevando nossos batimentos cardíacos, enquanto tentamos adivinhar o instante de o inimigo aparecer.

A pista, no caso, de que o câncer de próstata logo saltará diante de nós é justamente o PSA, quando ele dobra de quantidade no período de dez meses. "Ele estava em 3 ng/dl e, depois de cinco ou seis meses, está em 6 ng/dl", exemplifica o uro-oncologista Murilo Luz, que vive na ponte aérea entre Curitiba e São Paulo. No Paraná, ele faz parte da equipe do Hospital Erasto Gaertner, referência em câncer no país. E, na capital paulista, o doutor Murilo coordena a cirurgia robótica nos hospitais São Luiz Rede D'Or. 

Segundo ele, o aumento tão ligeiro do marcador prostático não deixa muita dúvida: "apesar de os exames de imagem não mostrarem nada, quase segurança absoluta de que as células doentes estão aprontado a volta do tumor em algum lugar, como nos gânglios ou nos ossos", explica.

Essa suspeita tem seus motivos. Um deles é que, em três de cada quatro dos pacientes com os quais isso acontece, a próstata já nem está mais no corpo. Ela foi retirada justamente para extirpar o câncer. Portanto, de onde mais poderia vir o PSA, não é mesmo? E se, por acaso, essa glândula foi mantida, nessa altura ela já recebeu radioterapia, daí que não pode estar aumentada como em uma hiperplasia, quadro benigno que também elevaria o antígeno prostático. 

Existem ainda pacientes que, por razões diversas, não foram operados nem se submeteram à rádio — eles  fizeram o bloqueio hormonal de cara. Bloqueio que também foi feito na turma operada, a tal castração. O objetivo é interromper boa parte da produção de testosterona por meio de medicamentos para deixar de oferecer justamente aquilo que alimentaria o tumor. Sim, o câncer de próstata é um papa-hormônio. Mas fique claro: se a doença volta, todas essas estratégias já falharam.

Daí a importância de três drogas que, nos últimos dois anos, surgiram para adiar o surgimento da metástase. Trata-se de um conceito novo, que não é o de destruir a célula maligna, mas de ganhar tempo — e, fundamental, conquistar qualidade de vida. A última delas acaba de ser aprovada pelo FDA, nos Estados Unidos, por se encaixar dentro do que a agência americana denomina de revisão prioritária.

Grosseiramente, digamos que furam a fila de aprovação aqueles medicamentos que oferecem melhoras significativas tanto na segurança como na eficácia do tratamento para uma doença grave. E Murilo Luz foi um dos médicos responsáveis por isso, ao participar do estudo batizado de ARAMIS, que ofereceu ao FDA essa garantia de que valeria a pena usar o atalho para a aprovação. O estudo em questão envolveu 1.500 pacientes de nada menos do que 150 centros oncológicos distribuídos pelo mundo — entre eles, 25 brasileiros.

A nova droga, desenvolvida pela Bayer e pela Orion Corporation, é a darolutamida — ou "daro", imitando a intimidade com que os médicos já se referem à molécula. Ela foi desenhada para penetrar na célula maligna, onde quer que ela esteja. "Uma vez em seu interior, a daro bloqueia os receptores de testosterona, responsáveis por estimular a produção de proteínas que permitiriam que essa célula doente se reproduzir", descreve Murilo Luz, que apresentou os resultados animadores do ARAMIS durante o último Congresso Brasileiro de Urologia, evento que terminou agora, há dois dias, em Curitiba. Em outras palavras, se ja andava escasso o alimento para o tumor por causa do bloqueio hormonal, e nem isso estava adiantando,  a daro chega lá e fecha a sua boca de vez.

A vantagem em relação às duas antecessoras — ambas igualmente recentes— é entrar na célula cancerosa, mas ficar de fora do cérebro. Explico. A nossa massa cinzenta não autoriza, assim de boa, a entrada de qualquer um. Ela tem uma frente de defesa, mais conhecida por barreira de sangue ou barreira hemato-encefálica, que, feito leão-de-chácara, corta barato de boa parte das moléculas que tentam se aproximar da restrita área cerebral. 

Acontece que os outros remédios para o câncer de próstata resistente à castração conseguem furar esse esquema — e a daro, não. Resultado: só raríssimos pacientes se queixaram de fadiga, efeito colateral importante que vinha surgindo com força nas opções anteriores. E nenhum apresentou dificuldade de cognição ou memória. "A principal vantagem do novo fármaco é mesmo a falta de reações no sistema nervoso central", opina Murilo Luz. Lembre-se de um detalhe: nessa fase em que o câncer permanece invisível, o homem não sente qualquer sintoma. Então, colocava-se na balança se valeria a pena engolir algo para atrasar a metástase e acabar bom seu bem-estar antecipadamente.

No caso da daro, são dois comprimidos de manhã e outros dois à noite — sem necessidade de jejum, nem de outra medicação qualquer. E eles significam tempo livre do tratamento mais barra-pesada que será obrigatório quando a doença ficar visível. Para ter ideia, quem apresenta tumor de próstata resistente à castração pode esperar pela metástase, na maioria das vezes, dentro de dois anos. 

Aliás, no grupo que continuou somente com bloqueio hormonal no estudo ARAMIS, o tempo foi médio foi de 18 meses. Já entre os participantes tratados com a daro, essa espera durou em torno de 40 meses, quase quatro anos. "E foi algo observado  em homens mais velhos e mais jovens, com tumores mais ou menos agressivos", contou Murilo Luz.

Independentemente do que isso representa para os pacientes com esse câncer de próstata — que já foi operado, recebeu radiação, ficou sem comida e, mesmo assim, ressurgiu das trevas —, drogas como a daro merecem, sim, muita atenção pelo que representam. Ora, estamos, passo a passo, entrando na era em que a briga da Medicina não será mais para vencer o câncer, às vezes forte, cruel e imbatível. No lugar disso, naquela queda-de-braço, a meta será deixar esse adversário imóvel —  se não para sempre, pelo maior período possível. "O câncer poderá continuar incurável e tudo bem, desde que seja controlado", diz Murilo Luz. "Assim como um diabetes ou uma hipertensão".

Aviso: em nome da transparência,  viajei para assistir a apresentação inédita do estudo ARAMIS no país, durante o Congresso Brasileiro de Urologia, a convite da Bayer.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.