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Blog da Lúcia Helena

A incrível conversa sobre câncer entre o que você come e os seus genes

Lúcia Helena

01/10/2019 04h00

Crédito: iStock

Faz um bom tempo, pobre brócolis, ninguém mais o encarou de um jeito despretensioso. Enquanto ele é mastigado, vem aquele gostinho de "previne um câncer". Que eu tenha lembrança, esse foi um dos primeiros alimentos ao qual a gente, lá atrás, atribuiu a qualidade de dar um chega-pra-lá nos tumores. Depois, milhares de pesquisas apontaram outros tantos. Daí foi inaugurada a era de rotular determinados ingredientes de superpoderosos e todo esse bla-bla-blá. Cá entre nós — apesar de eu também cair de boca na tentação desse tipo de promessa —, não deixa de ser estraga-prazeres ver o cardápio se transformar em um tratado de oncologia.

Fartos de informações do gênero, na hora de encher o prato é como se uma voz interior sussurrasse ordens para comer  certas verduras (superpoderosas?) e mais frutas (súper também?) e mais… Afe, se deixar, essa tal voz interior não para de falar à mesa.  "O tomate salva a próstata!", ela nos recorda. Opa, então mais tomate aqui!  "A cenoura livra mesmo a nossa pele", diz também.  Quero cenoura, pode ser?  

Porém, para o tom da conversa mudar rapidinho, basta você pegar um bife bem passado e pousá-lo do lado daquela salada bem intencionada.  A danada da vozinha vira, daí, uma assombração: pois não é que a casquinha queimada da carne, tão deliciosa quanto famigerada, deu pra causar tumores, até ela?! Garçom, aceito o filé menorzinho de todos, por favor. E assim vai.

Tudo isso não deixa de ser minha máxima culpa também. Vira e volta a gente espalha que determinado alimento previne um câncer pavoroso. Ou sai, ainda que sem querer, tocando o terror nutricional, acusando algum ingrediente de fazer as células se tornarem malignas. Só que, nessas horas, o bom senso deveria dizer que nenhuma garfada pode fazer tanto bem, nem tanto mal por si só — isto é, dentro da bendita dieta equilibrada. Portanto, se alguém afirma que comer brócolis, sozinho, garante atestado de boa saúde no check-up, não engula. 

O que não significa, porém, que tudo o que se escreveu sobre alimentação e câncer era balela. Ora, a comida conversa pra valer, o tempo inteiro, com os genes por trás dessa e de outras doenças. Ouça esta: no interior de nossas células, as refeições nunca são silenciosas. "Ali dentro, uma molécula se comunica com outra, feito um telefone sem fio que interfere nos genes. E os componentes dos alimentos sempre entram no meio dessa brincadeira", descreve a nutricionista Mayara Paulino Miranda.

Mayara é doutora em ciência dos alimentos pela Universidade de São Paulo, com experiência em genômica nutricional, a área que estuda o diálogo entre a alimentação e o nosso DNA. No próximo final de semana, irá traduzir seus conceitos na prevenção do câncer para os participantes do I Simpósio de Genômica Nutricional, Fitoterapia e Nutrição Esportiva, que acontecerá em Florianópolis, Santa Catarina, promovido pela Nutrigene, clínica que está entre as pioneiras da nutrigenômica do país.

O trabalho de decifrar a conversa entre as nossas garfadas e os nossos 25 mil genes — sim, dentro de cada célula do seu corpo há uns 25 mil genes — ainda engatinha. Pudera, a genômica nutricional mal saiu do forno, como tantos campos que surgiram a partir de 2003, quando foi finalmente publicado o Projeto Genoma Humano, mostrando como essa penca de genes estava organizada. Ela, afinal, controla tudo no organismo, produzindo proteínas que os cientistas chamam de sinalizadoras. 

Este nome cai bem:  uma proteína dá um sinal para outra proteína que dará sinal para outra proteína… E assim por diante. Nessa cadeia, a célula acaba entendendo o recado e fazendo alguma coisa, obedecendo a ordem que partiu do DNA, no tal telefone sem fio que mencionei. "Hoje não há a menor dúvida de que as moléculas dos alimentos entram nessa história e nosso papel é, com o tempo, entender que mensagem estão passando", diz Mayara.

A gordura saturada é um exemplo de sinalização errada, segundo a nutricionista.Uma vez que se encaixa nos receptores de uma célula, dá o sinal para ela aumentar a produção de substâncias inflamatórias. E aí é que está: uma inflamação só é bárbara na hora certa e na medida certa, como parte das estratégias de defesa quando uma bactéria nociva quer nos invadir pela garganta, por exemplo. No entanto, a todo instante e sem motivo — por causa do recado maldoso passado pela gordura saturada  —,  a inflamação só faz desencadear doenças. O câncer é uma delas.

Existem outras substâncias, de outros alimentos, que por sorte fazem o inverso. O famoso ácido graxo ômega-3 dos peixes, uma vez dentro do citoplasma — o gel que recheia nossas células —.  sequestra uma proteína impedindo que ela fale para um DNA que seria  um bom momento para ele ordenar uma inflamação. Quando ela cai fora da jogada, o processo é inibido.

"Alguns componentes dos alimentos agem assim, interferindo nas proteínas que estão no citoplasma das células", explica Mayara Miranda. "Outros vão direto para núcleo celular, onde está o DNA. Entram ali e ligam ou desligam genes temporariamente", explica. Ou seja, em tese, uma escolha acertada no menu pode tirar da tomada aqueles genes que nos deixa mais suscetíveis a a ter um câncer. Mas desligar um ou outro, aviso, apenas ajuda na prevenção. Não há ceia milagrosa.

Na balbúrdia celular, cada um falando uma coisa, um câncer não surge — nem sequer, na contrapartida, a tendência a ter um tumor desaparece — assim de uma hora para outra. Em uma só colherada aqui, outra acolá, nada se resolve. É preciso que a conversa se estenda. Ou seja, comer sempre o tal brócolis, por exemplo. E variar o cardápio com outros itens capazes de passar mensagens, digamos, positivas no interior das células. Até porque tem mais: há muito serviço pela frente, se a ideia é brecar a tendência a desenvolver um tumor. "São vários genes envolvidos", justifica Mayara.

Para um câncer dar as caras, falam mais alto genes que mandam a célula se multiplicar depressa. E, por azar, falam mais baixo genes que programariam essa célula para morrer passado um tempo. Só para dar dois exemplos. Há mais, muito mais genes nas tais sinalizações que culminam em um câncer. Algumas escolhas alimentares ajustariam o tom de voz, por assim dizer, de todos os envolvidos. 

"Mas também precisamos lembrar que as pessoas são diferentes entre si e que, portanto, reagem diferentemente, para mais ou para menos, aos alimentos. É o que estuda outra área, que chamamos de nutrigenética", ensina Mayara. Ou seja, o brócolis que me ajuda a afastar um tumor, talvez não ajude tanto outra pessoa. Ou vice-versa.

Então, se há um tantão de genes no meio dessa baderna que é o câncer e se cada um é de um jeito, será que é melhor desistir e cruzar os talheres? Nada disso!E, de acordo com Mayara, um dos segredos é investir em bioativos, substâncias que dão colorido aos vegetais e aquele gosto ou aroma especial aos temperos. É a capsaicina, que faz a pimenta arder,  o gingerol que perfuma o gengibre e por aí vai. Mayrara chama a atenção, por exemplo, para o resveratrol, substância muito presente nas uvas. "Todo mundo falava dele pensando em proteger o coração, mas o resveratrol faz muito mais dentro da célula", avisa. Em outras palavras, é outro que se mete na conversa e passa o seguinte recado: "xô, câncer."

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.