Colesterol: cuidado, o raio pode cair duas vezes no peito que já infartou

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Se Deus é quem leva, não sei. Sei é que muitas vezes a gente o ajuda. Ô, se ajuda… Talvez não faça ideia, mas em cada dez pessoas que infartam, três não chegam com vida no hospital. No nosso país, infelizmente, outros 10% — ou seja, mais um paciente entre aqueles dez — morrem internados por lá. E mais 10% não sobrevivem ao primeiro ano após o ataque cardíaco. No final das contas, se já fez a soma, nota-se que metade acaba partindo.
Quem me apresentou esses números foi o médico José Francisco Kerr Saraiva, professor da PUC de Campinas e presidente da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo, a Socesp, durante o evento "O Futuro do Coração", promovido pela revista SAÚDE, da Editora Abril, na semana passada.
Agora, então, imagine se raio do infarto cai duas vezes sobre o mesmo peito. Pois quero lhe dizer que ele não só pode como costuma cair de novo, se a pessoa que infartou continua com o colesterol alto. Aí é mesmo pedir encrenca, querendo abraçar a morte. No entanto…
No entanto, o professor Saraiva exibiu os dados brasileiros de uma pesquisa realizada pelo laboratório Amgen e vou contar o inacreditável: 6% dos 250 indivíduos ouvidos, sendo que todos já tinham sofrido um belo infarto, disseram que aquilo era coisa que só acontecia uma vez na vida, quase um acidente, que eles não tinham mais nada, nem iriam ter. E 33% até sabiam do risco de novos problemas do coração, mas achavam tudo muito improvável. Olha, minha gente, sinto informar que não é bem assim: um terço das pessoas que infartaram simplesmente infarta de novo. Ponto.
Mas o mais espantoso diz respeito ao colesterol: 89% dos sobreviventes, um número assombroso, não consideram que ele seria o fator de risco mais associado a novos ataques cardíacos. E, de novo, quero botar os pingos nos "is": ele é. Apesar de 74% do total da amostra estar com o colesterol nas alturas, só 64% engolem medicação para diminuir suas taxas — as famosas estatinas. "Muitos nem sabem por que o médico pede exames para dosá-las", lamenta o professor Saraiva.
Antes que você pense que isso é Brasil-sil-sil, sejamos justos: a pesquisa da Amgen, realizada em 13 países — como Estados Unidos, Canadá, Japão, China, França, Alemanha, Espanha… —, com um total de 3.236 pacientes que já tinham infartado, mostrou uma realidade parecida por todos os cantos. O colesterol nem parece fazer parte da paisagem na mentalidade dessa gente. Tanto que, na média global, 44% não monitoram suas taxas e 63% não acreditam que o colesterol alto seja uma condição crônica, que vai merecer cuidados para o resto da vida, ainda mais se o coração já deu chabu e se a vontade é de não repetir a experiência.
Fui procurar o cardiologista Raul Dias dos Santos, a maior fera no assunto colesterol, atual presidente da International Atherosclerosis Society. Ele não se surpreende com o resultado da pesquisa. "Sempre foi assim, não é um dado isolado", diz, citando mais um estudo. Realizado há dez anos em oito países, nele cerca de 30% dos pacientes infartados e tratados para baixar o colesterol não alcançaram as metas ideais estabelecidas pelo médico. Outro trabalho recente, com 8 mil pacientes de países em desenvolvimento como o Brasil, também infartados e com o colesterol lá em cima, mostra que 30% — de novo, 30%! — não fazem o controle adequado. Ou seja, o povo não dá bola e, quando dá, não segue o tratamento direito. Eu me pergunto: por que isso acontece? E, como não encontro resposta, passo a pergunta ao doutor.
"As pessoas têm medo de tomar estatina. O próprio médico nem sempre prescreve a medicação com receio dos efeitos adversos. E, para completar, nas consultas rápidas de hoje em dia, ele não tem a calma necessária para explicar ao paciente que, sem colesterol, não há infarto. Ele é o ingrediente obrigatório para existir a obstrução na coronária", responde Raul Santos. Precisamente, as taxas altas dessa gordura no sangue multiplicam o risco de um repeteco do infarto em quatro ou cinco vezes.
Podem até criticar e dizer que, aqui, está se falando para todo mundo tomar estatina. Raul Santos pondera: "Podemos questionar se valeria a pena sair dando estatina para a população em geral, como forma de prevenir um evento cardiovascular", diz ele. "De fato, se eu desse o remédio para 70 ou 75 pessoas durante anos, só evitaria um caso assim." No entanto, segundo o médico, para quem já sobreviveu a um infarto, não resta sombra de dúvida de que o medicamento compensa demais.
Vamos a mais números — e aos mitos. Imagine 10 mil sujeitos que já foram operados do coração e que receberam tratamento com estatinas por cinco anos. No final desse período — não é um ou outro estudo que faz essa conta, mas um bocado de pesquisas parrudas —, o remédio tomado na dose certa, ou seja, reduzindo efetivamente o colesterol, consegue evitar que 1 mil pessoas tenham um novo infarto, um AVC, façam pontes safenas ou, pior, morram do coração.
Durante esse tempão de cinco anos, nos mesmos 10 mil pacientes, apenas cinco vão reclamar de dor ou de uma fraqueza muscular mais importante. Aliás, vamos combinar: como quem infarta, em geral, não é mocinho, fica bem complicado sair culpando o comprimido de estatina para diminuir o colesterol por aquela sensação de que tudo dói no final do dia, não é, não?
Outra confusão danada é a história de que a medicação provoca diabetes. "Ela pode piorar o quadro, mas nunca é causa", garante Raul Santos. A verdade é que o remédio costuma aumentar a hemoglobina glicada, hoje usada como referência para entender como anda a glicemia mais do que a dosagem do açúcar no sangue em si, Mas o aumento é de apenas 0,1%. Ou seja, quem já tinha uma hemoglobina glicada de 6,4% vai parar nos 6,5% que são a fronteira do diabetes — ok, seria o empurrãozinho que faltava para um indivíduo, provavelmente obeso, se tornar diabético. Mas veja: alguém com uma hemoglobina glicada alta dessas ficaria diabético mais dia, menos dia. Fala-se que o uso de estatina somente antecipa o diagnóstico inevitável da doença em dois meses
Na onda da difamação, também se diz por aí que remédios para baixar o colesterol elevariam o risco de um AVC hemorrágico. Eles podem mesmo afetar a atividade plaquetária do sangue, que aumentaria hemorragias, mas isso em uma pequena parcela de pacientes — algo entre cinco a dez casos naqueles 10 mil sujeitos tomando o remédio. Estatina provoca insuficiência renal? "Mentira deslavada", rebate o doutor Raul Santos. Causa problemas cognitivos? "Não há nenhum estudo provando isso. Os casos que foram relatados ao FDA, nos Estados Unidos, são quase anedóticos", assegura.
Aliás, poucos remédios provocam mais efeito nocebo — o oposto do placebo, quando você engole uma pílula falsa acreditando que está tomando um remédio com esse e mais aquele possível efeito colateral e, daí, começa a sentir tudo o que ouviu (ou leu na bula) e mais um pouco. Com medo, então, as pessoas preferem confiar apenas em mudanças no estilo de vida — que, sim, são muito necessárias. Mas só elas não bastam para quem já teve um infarto. Tampouco adianta apelar para chazinho, água energizada e afins. Infarto não é banal, nem obra do divino. Exige de nós medidas sérias. Não adianta jogar a bola pro alto pra Deus segurar. Ele a devolve com força, se você fica parado, marcando bobeira.
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