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Blog da Lúcia Helena

A gente faz uma confusão danada (e perigosa) quando o assunto é sono

Lúcia Helena

12/11/2019 04h00

Crédito: iStock

Acordar um bagaço é o de menos. Dormir mal está ligado a uma lista de problemas que, se você abrir os olhos, talvez por ironia até perca o sono. Quem acha que ganha a briga com o travesseiro perde saúde.  O organismo fica inundado de moléculas inflamatórias— e, garanto, inflamação sem motivo faz um estrago daqueles. Entre eles, placas nos vasos.

O corpo, sentindo-se ameaçado pelo cansaço, libera cortisol e uma série de hormônios que não só disparam nervosismo e agressividade, como embaralham as ideias e alavancam a pressão arterial. Ele também deixa de lidar tão bem com os carboidratos e com a gordura do prato, como se resolvesse acumular tudo para aguentar o tranco. Abre-se assim uma brecha para a obesidade e o diabetes. Ainda produz mais grelina, o hormônio da fome. E faz economia justo com a leptina, que cuidaria da saciedade. Qualquer dorzinha parece arder mais, por razões puramente bioquímicas. Vira dureza se concentrar, tomar decisões…  A lista é longa e se resume assim: dormir mal é mesmo um pesadelo.

Um pesadelo antigo, lembra o neurologista Leonardo Ierardi Gourlart, do  Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. "Esses efeitos  começaram a ser estudados ainda nos primeiros anos 1950", diz ele, que é especialista em neurofisiologia clínica do sono. É claro que desde 1903, quando Thomas Edison criou a lâmpada, perdemos o sossego na cama. De lá para cá, com o surgimento de tablets, celular, telinhas iluminadas de todos os tamanhos, a coisa só piorou.

A novidade é a epidemia de privação do sono ao redor do globo. Netflix, Amazon, talvez até este texto aqui dependendo do seu horário leitura, se tornaram os grandes antagonistas das noites bem dormidas. E, quando acordam para o problema — aí é que está —, as pessoas fazem uma confusão medonha.  Aviso: o tal do autoconhecimento falha. Quer ver?

Tem gente que, quando você pergunta como são suas noites, responde: "ah, eu durmo bem até demais". Sem querer acabar com a alegria do dorminhoco, todo mundo deveria desconfiar da sensação do "até demais". Leonardo Ierardi explica: "O organismo tem seus mecanismos de compensação e, se deixar, quando dorme mal, ele tenta trocar qualidade por quantidade. A pessoa acha que dormiu pesado até tarde, mas no fundo não repousou direito". 

É assim nos casos de apneia  — distúrbio que, às vezes, faz um barulho infernal, o ronco. Sem que se dê conta, a pessoa acorda inúmeras vezes ao longo da madrugada, talvez por ínfimo segundo, sempre que há uma pausa na respiração e o cérebro deixa de receber oxigênio. O cansaço durante o dia, hoje se sabe, não vem apenas desses pequenos despertares. "Os exames mostram que, na apneia, uma área cerebral fica completamente em alerta a noite inteira, policiando o corpo para acordá-lo sempre que a respiração é interrompida", diz o médico. Resultado: na vã esperança de dormir em algum momento, o cérebro até estende o sono. Mas, no final das contas, passa a madrugada em claro, apesar da impressão do dono de ter adormecido pesado.

O dormir "bem até demais" tem a ver com outra confusão clássica — a de que você precisa das tais oito horas de sono. Então, se alcançou ou ultrapassou essa marca, pensa que tem sorte.  "Esqueça, nada a ver", vai logo dizendo Leonardo Ierardi. "Cada organismo é que sabe de suas noites."  Ora,  existem indivíduos que se encaixam naquilo que os cientistas chamam de dormidores curtos: fecham os olhos por seis horas e acordam bem de verdade, obrigada. Dormem melhor do que aquele sujeito do "bem demais", se duvidar.  Mas, ok, não vale comparar o seu sono com o do vizinho, nem sequer com o de você mesmo que, por razões fisiológicas, vai dormindo menos na medida em que envelhece.

O curioso é que, se tem gente iludindo-se que dormiu feito um anjo enquanto roncou como britadeira,  por outro lado existem aqueles que reclamam à toa."É quem fala que dorme pensando em trabalho a noite inteira", exemplifica Leonardo Ierardi. Na hora do vamos ver, isto é, de fazer exames para checar a qualidade do seu repouso, surpresa: esse cara pode ter um sono ótimo. "A impressão de a cabeça continuar ligada é quase fruto de uma característica de personalidade, um jeito de processar as ideias. Mas, muitas vezes, o cérebro está de fato restaurando suas funções", conta o médico. Ou seja, mais uma impressão enganosa.

Mas, claro, existe o terceiro grupo dos que se queixam e que dormem mesmo mal à beça. Neste ponto, devemos diferenciar a insônia da privação, que os médicos também chamam de síndrome do sono insuficiente. Na primeira condição, as pessoas têm de fato uma dificuldade para adormecer ou para continuar dormindo noite adentro. Não raro, acordam do nada e ficam de olhos arregalados até o amanhecer. Há algo fisiológico aí, sem dúvida.

A privação é outra história. Se fosse permitido, o corpo apagaria na cama de boa. Mas a criatura deixa para estudar à noite ou precisa trabalhar até altas horas. Pode ser ainda que, chegando em casa, ache que aquela é justo a sua horinha de descansar, sabe como é? Mas "descansar" seria se distrair com o videogame, com a maratona de séries, com a leitura insistente de mais um capítulo do livro… Hoje, no Brasil, dormimos cerca de uma hora e meia a menos, em média, do que há três décadas. Um corte impiedoso no nosso descanso.

Com o tempo, assim como a pessoa que não vive tomando água deixa de sentir o sinal sede, é possível que você pare de reparar no cansaço. Perigo. Aqueles efeitos todos não deixam de acontecer só porque a falta de sono passa quase despercebida. 

Mas, dizem,  pode ser bem pior transferir  a percepção de si para um desses dispositivos ou aplicativos sleeping trackers, que monitoram as noites. Acredite: para uns, são roubada. "A pessoa fica tão preocupada em saber como dorme ou como deixa de dormir, se teve sono REM ou não, que no final está cultivando uma insônia", observa Leonardo Ierardi no dia a dia do seu consultório.

Na contramão do senso comum, o neurologista também critica a velha sugestão de desligar as luzes, ir para cama e forçar a chegada do sono. "Na prática, essa dica batida aumenta a ansiedade e agrava a dificuldade que muitos têm, de fato,  para adormecer", diz ele.O pior engano de todos, porém, é engolir qualquer remédio para induzir o sono quando se tem insônia diagnosticada. Leia-se: quando a pessoa já está há mais de três meses com dificuldade para adormecer, três noites por semana ou mais.

"Esse tipo de medicação só funcionaria em episódios muito esporádicos de falta de sono. Não se indica para a insônia. Prescrever uma droga dessas é, inclusive, considerado erro médico", afirma, com segurança. Segundo o neurologista, os estudos mostram que o risco da medicação para induzir o sono causar problemas, de distúrbios psicológicos a quedas no meio da noite, é notoriamente maior do que os da insônia em si. "Para a saúde, seguir vivendo insone seria o menor dos males", compara. Ou seja, nada de indutores, nem de ansiolíticos para chamar Morfeu. Talvez antidepressivos, bem indicados, para –claro — os deprimidos.

Então, se não adianta forçar nem engolir remédio, o que nos ajudaria a ter a tão sonhada noite bem dormida?  Ora, assim como a qualidade do sono afeta nossa disposição na manhã seguinte, o comportamento ao longo da jornada — se meditamos, se fazemos alguma atividade física, se comemos direito, enfim, o abecedário inteiro da vida saudável — irá favorecer ou não o sono.  Ou seja, o que garante pra valer uma boa noite é um dia bem vivido.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.