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Blog da Lúcia Helena

Fique de olho nos morcegos da caverna em vez espalhar pânico do coronavírus

Lúcia Helena

04/02/2020 04h00

iStock

Não, já vou logo avisando que ninguém saiu dando umas colheradas em sopa de morcego. Esta foi uma das asneiras que circularam para explicar por que surgiu um novo coronavírus em Wuhan, cidade chinesa que, até o momento, registra a maioria dos 17 mil casos no mundo de infecção por esse tipinho e onde já morreram mais de 360 pessoas por causa dela. 

Bobagens se espalham mais velozmente do que qualquer virose quando acontece um fenômeno assim, isto é, uma nova doença na praça. E, não raro — que peste! —, aumentam a temperatura dos preconceitos. Melhor para todos se, em vez de torcer o nariz para uma etnia ou um país, a gente desviasse a atenção dos boatos e ficasse, quem sabe, mais de olho nos morcegos. Mais útil.

Quero dizer, ao menos aprenda com o pedacinho mínimo de verdade que existe nesse papo furado de caldo de vampiro no cardápio chinês. Porque, como toda fake news — pragas tão modernas e incuráveis —, essa história da sopa de morcego se apoia em uma partícula de fato real para, a partir dele, criar uma grossa mentira. Está aí a receita de sempre.

Podemos esperar mais disparates alimentando o medo da população depois que a Organização Mundial de Saúde, fazendo o seu papel, decretou situação de emergência internacional e que, ontem mesmo, o Ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta, por precaução máxima, resolveu ultrapassar a classificação de perigo iminente, anunciada após os primeiros casos suspeitos no país,  para antecipar o estado de emergência de saúde pública, que em princípio só aconteceria com a confirmação de que o novo coronavírus já teria mesmo aterrissado em solo nacional. Esse cuidado deveria mais acalmar do afligir. Mas tem gente que levanta a poeira quando ela começa a assentar…

Em todo caso, achei curiosa a maneira como o morcego sobrevoou o noticiário sobre o coronavírus. E fui atrás do professor Celso Granato, uma das figuras, na minha opinião, mais encantadoras da nossa Medicina, pela incrível capacidade que ele tem de contar as histórias desses bichinhos  que nos adoecem de vez em quando —  vírus, fungos, bactérias …

Já cansei as pernas de quem nos acompanhava em uma conversa sobre infectologia há algum tempo. Sem notar, fiquei três horas em pé ouvindo casos e mais casos, como o de quando ele e seus colegas do Fleury Medicina e Saúde, há dez anos, cutucaram o governo notando um aumento repentino de sorologia positiva para o vírus H1N1.Desse modo, o alerta na saúde pública soou antes que o povo surtasse dessa gripe. 

E o morcego com isso?! 

"Coronavírus é uma família imensa, que perturba quase todos os animais. Praticamente toda espécie tem alguns coronavírus para chamar de seus, inclusive a humana", explica Celso Granato, que, além de ser infectologista do Fleury, é professor da Universidade Federal de São Paulo.  Ele me lembra: foi um desses que, há 17 anos, também na China, surpreendeu causando a síndrome respiratória aguda, a SARS, que infectou mais de 8 mil cidadãos pelo mundo e matou cerca de 10% deles em 17 países. 

O coronavírus atual é parente desse outro bandidinho aí.  E vírus assim, quando nos dão um susto danado, geralmente vêm de bichos. Dão as caras, a rigor, como zoonoses.  Até aí, qual a surpresa? Mais ou menos, seis em cada dez agentes infecciosos que nos abatem se originaram em outros animais. Entre esses, o morcego em particular é uma mina de dores de cabeça, carregando sob suas asas, bem protegidos dos ataques do sistema imune, vírus como o Ebola, o da Sars e diversos outros inimigos da nossa saúde. "No processo de seleção natural, o morcego adquiriu a capacidade de conviver com todos eles sem ficar adoecido", explica o professor Granato.

E agora sabemos que, provavelmente, o novíssimo coronavírus que coloca os 11 milhões de habitantes de Wuhan isolados do mundo, em quarentena, passou um dia pelo corpo de um morcego. A suspeita foi levantada por um estudo no qual, segundo o professor Granato, os cientistas sequenciaram correndo os genes do coronavírus da vez. "'É sempre assim. Nós buscamos o parentesco genético de um novo vírus com outros já conhecidos", diz. "E esse coronavírus tem pedaços de DNA tanto de seus primos encontrados em morcegos, como de seus familiares achados nas cobras." Pronto!

Sopa de morcego? "Difícil. Mais fácil imaginar que uma serpente comeu um morcego. Talvez depois tenha infectado outras cobras e uma dessas ou foi parar no prato de ensopado de  um chinês ou simplesmente se arrastou entre os alimentos da gigantesca feira de Wuhan", especula. É um provável caminho. Nunca saberemos o que de fato aconteceu. "No entanto, se não foi isso, foi algo semelhante, o que não é nada raro na natureza. Diria que acontece o tempo inteiro: duas espécies de animais em contato fazem seus vírus trocar chaves, por assim dizer", explica o professor.

Sim, imagine que é como se os vírus tivessem sempre chaves para entrar em células específicas. O da caxumba, por exemplo, não consegue passagem para dentro de uma célula do fígado — suas moléculas abrem as portas da parótida, no pescoço. Do mesmo modo, vírus de outras espécies às vezes não conseguem destrancar as células humanas. Os que habitam as cobras, por exemplo, não costumam ter essa habilidade. Já os que vivem nos morcegos com frequência guardam o nosso segredo.

"Faz sentido ", chama a atenção o médico. "O morcego é um mamífero, portanto ele é muito mais parecido com a gente do que um réptil ou uma ave". Então — vamos apenas supor — é possível que o vírus de um morceguinho tenha entregado a senha  para invadir o corpo humano a um vírus da cobra. Animais em contato fazem uma constante mistura de DNA de vírus. Nunca saberemos. E, nessa altura, isso é menos importante.

Nas cavernas

Se quer tirar lições dessa provável trajetória do coronavírus, eis aqui uma delas: na natureza selvagem, é assim e sempre será. O que difere é que hoje somos mais numerosos, circulamos mais e não conseguimos estabelecer uma fronteira para os problemas. "São cerca de 5 mil pessoas voando da China para o Brasil todos os meses", exemplifica Celso Granato, se referindo a brasileiros que estavam por lá, chineses que vêm para o nosso país, aquele europeu loiro de olhos bem redondos que você nem faz ideia do lugar onde fez conexão ou com quem cruzou em algum aeroporto do planeta. Vai saber…

Outro aprendizado nos leva de volta aos morcegos. Tudo bem que a maioria não banca o vampiro. Só que, mesmo longe de nossas veias, eles transmitem vírus. "O risco é insignificante quando passam voando por nós ao ar livre", conta Celso Granato. "Mas nas cavernas, onde vivem aos milhares, é diferente."

O perigo de pegar um vírus estranho fazendo ecoturismo em cavernas não é ser atacado por morcegos, segundo o infectologista. Ceguetas, provavelmente eles permanecerão pacatos, pendurados de ponta-cabeça. Um ou outro arriscará acrobacias pelo ar. O problema está aí, ou seja, no ar.

"Cada vez que soltam seus gritinhos — e, sem enxergar, os morcegos emitem sons quase o tempo inteiro —, esses animais liberam gotículas de saliva com vírus, fungos, agentes infecciosos dos mais diversos", descreve Celso Granato. Bem, cavernas não são exatamente um ambiente arejado, então… Os perdigotos ficam todos ali, à espera do turista desavisado. Ou melhor, desmascarado."O certo seria usar máscara para aproveitar o passeio", aconselha o professor Granato.

Por falar em máscaras…

Usá-las por aí, a torto e a direito, não faz o menor sentido. Primeiro, porque no Brasil o problema não está para tanto. Segundo, máscaras são úteis por tempo limitado, longe de serem acessório para você atravessar o dia. Até vale colocá-las em pronto-socorros, quando chega alguém com suspeita de doença respiratória, provocada coronavírus ou pelo velho influenza da gripe. Afinal, ninguém vai ficar — opa, não deveria ficar —  por longos períodos na sala de espera.

"A questão é que, ao respirar, você solta vapor pela boca e a máscara vai ficando umedecida. Então, ela começa a perder eficácia", ensina Granato. "Por isso, precisaria ser trocada no máximo a cada duas horas", avisa.

Se quer saber o que funciona mesmo para barrar o coronavírus, é tudo aquilo que diminui a ameaça de contrair a gripe ou o resfriado. Lavar sempre as mãos ao chegar da rua ou depois de levá-la à boca para tossir ou espirrar — aliás, por favor, seja um ser educado e tape mesmo boca nessas horas! Evitar ficar pertinho de quem está com alguma infecção respiratória, especialmente se for criança ou idoso. Também fugir de lugares lotados de gente e pouco ventilados. Tudo isso é mais velho do que canja e cama. 

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.