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Blog da Lúcia Helena

No meio da festa tinha uma pedra na vesícula: é um dos riscos de não operar

Lúcia Helena

25/02/2020 04h00

iStock

Foi há muitos Carnavais, precisamente há 28, que eu fui parar no centro cirúrgico do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Motivo? Uma vesícula biliar repleta de cálculos. Pronto para iniciar o procedimento, o cirurgião gastroenterologista Thomas Szegö apontou para alguns instrumentos que, dali a instantes, se encaixariam com perfeição entre seus dedos, como se fossem os de sempre. Só que não era bem assim. 

Na extremidade oposta àquela que seria agarrada pela mão do médico, pinças e lâminas tinham o tamanho estranho de uma ponta de caneta, não mais do que isso. Eu, diante do que estava prestes a acontecer, me sentia anestesiada. Era incapaz de experimentar aquela aflição de sempre, na iminência de ver a carne sendo cortada e sangrando na mesa de operação. 

Até porque não haveria muito sangue. Melhor, não haveria nem sequer o velho corte, que antes se estenderia por uns 12 ou 14 centímetros. Aberto no lado direito do abdômen, ele era a porta de saída  para o saco de pedras dependurado na via biliar, o canal que brota do fígado para escoar um suco verde e espesso, a bile, na primeira porção do intestino delgado, o duodeno. Mas naquela ocasião, em vez de alcançar a bolsa e seus pedregulhos rasgando a pele e o músculo com o bisturi, Szegö apenas faria quatro furos de 1 centímetro pela barriga, afastando as fibras musculares sem muito trauma. 

Pelo primeiro orifício, injetaria gás carbônico, inchando temporariamente o ventre para separar os órgãos uns dos outros, facilitando as coisas. Pelo segundo, passaria a microcâmera para transmitir a uma tela a imagem da cavidade abdominal por dentro. Com olhos fixos nela, através de uma cânula instalada no terceiro furo, o cirurgião pinçaria a vesícula só para mantê-la na posição certa. E daí, com destreza, Szegö usaria alguns instrumentos pela quarta e última pequena incisão, determinado a cumprir o serviço: extrair e puxar a vesícula para fora por um dos buracos. 

Eu assistia a uma laparoscospia, realizada justamente pelo médico que trouxe a técnica para o Brasil para retirar vesículas problemáticas  — e, desde então, acabaram as desculpas esfarrapadas, como as minhas próprias, para adiar a operação. Sim, em 1992, quando fui conhecer a nova operação, já carregava comigo três pedras biliares.

A laparoscopia, cujo nome de origem grega significa "visão da barriga", tinha sido inventada em 1985 por um médico alemão, mas logo de cara ninguém deu muita bola. Até que, dois anos mais tarde, um cirurgião francês repetiu a façanha, a técnica atravessou o Atlântico até os Estados Unidos e, lá, se disseminou. O próprio Thomas Szegö foi aprender a laparoscopia com os americanos para realizá-la pela primeira vez no Brasil em 1990. Hoje, não deixa de ser arroz com feijão tirar a vesícula desse jeito, quase sem deixar cicatriz nem provocar tanta dor no pós-operatório. O paciente pode escapulir do hospital passadas 24 horas e retomar a sua rotina três ou quatro dias depois. 

Thomas Szegö, de lá para cá, passou a empregar a técnica em outras operações, principalmente na bariátrica para tratar a obesidade. Mas nunca me esqueci quando tudo era  novidade. Nem da reação imediata do médico quando, ao ver as pepitas verdes e negras que estavam na vesícula extraída do paciente, soltei que eu também carregava as minhas pedras. Pra quê! "Vamos operar?", ele disse. Silêncio. Eu o enrolei. 

Mas para que serve a vesícula?

Durante quase três décadas, meus encontros com o doutor Szegö são marcados por essa cobrança. Não foi diferente quando nos falamos neste Carnaval: "Já operou?", ouvi. Provoquei de volta: "Mas para que raios serve essa tal de vesícula que sempre quis me arrancar?". Tem serventia, sim, ele me garantiu. "Mais do que armazenar a bile, ela a concentra, absorvendo água por suas paredes", respondeu Szegö.

Produzida pelo fígado, a bile escorre por ductos que desembocam na via biliar. Esta despeja o líquido no intestino para que ele quebre a gordura da comida em gotículas, facilitando o trabalho da digestão. Toda vez que um alimento gorduroso chega ali naquele trecho intestinal — "pode ser até mesmo o azeite da salada", diz Szegö —, são liberados hormônios que dão o sinal para vesícula se contrair e liberar o suco digestivo concentrado — em tese, mais potente.

Bile em desequilíbrio: ficamos na lama

"A bile é um líquido complexo. Seus elementos  — basicamente colesterol, lecitina e sais biliares — precisam estar em um equilíbrio muito correto", ensina  Thomas Szegö. Se um deles sobra ou se um deles falta… "Aí temos o que chamamos de bile litogênica, isto é, uma bile formadora de pedras", complementa.  Azar, ninguém sabe explicar por que acontece de o fígado de uns e de outros errar na receita. "E nem adianta deixar de comer isso mais aquilo, mudar a dieta, nada", avisa o médico. "Você tem pedra por uma tendência pessoal e intransferível." 

No início, a tal bile desequilibrada fica com minúsculos cristais, como um pó mal dissolvido. Quando se concentram na vesícula, o resultado é um barro, uma lama biliar. Mas ainda assim a bolsinha sadia consegue mandar tudo embora, sempre que requisitada. O problema é quando bate a preguiça…

Quem corre risco de ter uma vesícula preguiçosa

É assim que o povo chama a vesícula que fica doente e deixa de se contrair com a devida força. "Daí, ela nunca se esvazia completamente", descreve Szegö. Os cristais, então, se agregam, formando as malditas pedras. Podem ser grandes, podem ser pequeninas. Poucas ou muitas. É uma loteria. Existe o sujeito que vai ter problema por causa de uma pedrinha só, encrenqueira. Enquanto, em outros, a vesícula suporta algumas dezenas de pedriscos sem reclamar. 

Mas é bom eu confessar que falo, falo e falo de saúde e… corri da laparoscopia. Ignorância, porque ter pedras na vesícula é sempre um risco. Elas podem aparecer até em crianças, embora isso seja bem raro. "A maioria dos casos ocorre em mulheres com algum grau de obesidade, na faixa dos 40 anos, mas qualquer um pode ter cálculos na vesícula. Não há regra", explica Szegö. Bem, eu ganhei meu trio quando estava na faixa dos 20 e vestia manequim 38…

Existe saída fora da mesa de cirurgia?

Existe, sim, um remédio que mexe com a concentração dos sais da bile, tornando-os mais solúveis, e ele promete dissolver os cálculos. "Mas não funciona sempre e, quando dá certo, as pedras são pequeninas. No caso das maiores, nem adianta tentar", me diz Szegö.

O fato é que as doses devem ser relativamente altas e provocam efeitos adversos, como diarreias. Ainda por cima, o tratamento é longo e caro. Tão caro que, na ponta do lápis, talvez compense  ir direto para o centro cirúrgico.

E quem deve operar?

Para começo de conversa, deve operar quem apresenta sintoma: uma dor bem chata, principalmente depois de comer qualquer tipo de gordura, que parece atravessar o lado direito tronco feito flecha, irradiando pelas costas, na região das escápulas. Eu não sofria, por isso fui adiando, adiando…

Com ou sem dor, diabéticos com cálculos biliares devem partir para a laparoscopia. Isso porque, neles, as pedras inflamam a vesícula com maior facilidade e, curiosamente, muitas vezes não há sinal de que isso está acontecendo. Alerta máximo, então. A vesícula inflamada se fragiliza. Como a bile pode conter bactérias, há o risco de elas tomarem conta do pedaço e o quadro virar silenciosamente uma infecção severa.

Outras candidatas preferenciais à cirurgia são mulheres jovens que já formaram pedras e que ainda pretendem engravidar. Gravidez parece ser um convite para os cálculos darem problema. E, óbvio, tirar a vesícula quando se espera um bebê não parece ser boa pedida.

O problema de enrolar

Quanto ao resto, Thomas Szegö admite que não há consenso se todo mundo com cálculo na vesícula deveria mesmo operar. "Mas deixar o paciente em observação fazia sentido no passado, quando a cirurgia era mais agressiva", opina o médico. "Com a laparoscopia, pode valer a pena resolver de uma vez."

Isso porque há sempre o risco de uma pedra malandra tentar escapar da vesícula e, digamos, ficar entalada pelo caminho. Aí vem a dolorosa colicistite, que exige uma cirurgia de emergência e que não dá aviso prévio. Sei bem…

Pior, como já mencionei, o quadro pode se tornar infeccioso. Sem contar que a própria vesícula, literalmente sem saída, fica tão inchada e tensa que o sangue não consegue irrigá-la a contento. Resultado: pode necrosar  e essa é uma consequência capaz de ser fatal.

Existe, ainda, a suspeita de que a  presença de pedras favoreceria o câncer de vesícula, uma condição não tão frequente, mas extrememente agressiva. Para o doutor Thomas Szegö, no entanto, não dá para afirmar se seria coincidência existirem pedras e tumor ao mesmo tempo, como costuma acontecer, ou se uma situação levaria a outra. Ameaça garantida é a pedra, ao tentar sair, desviar caminho pela via biliar e seguir para o pâncreas. Aí é pancreatite na certa, uma doença preocupante.

Faz sentido viver perigosamente carregando pedras para cima e para baixo? Hoje acho que não. E me encabulo porque folguei no argumento de que não sentia nada. Um dia, porém, a dor me pegou de surpresa do outro lado do mundo. Fim de festa. Quando aterrissei aqui, não tive escapatória. Por isso respondi ao doutor: "Operei, sim".

Constrangida pelo ponto a que deixei tudo chegar, como dizem que a melhor defesa é o ataque, desdenhei: "Nunca senti falta da vesícula". Thomas Szegö diz que boa parte dos pacientes não sente nada mesmo. A bile continua a ser entregue pela via de sempre, sem que parte desse líquido seja desviada para a bolsa que, antes, estava ali no meio do seu caminho. Claro, será uma bile mais diluída e uns se ressentem disso com uma bela dor de barriga após uma refeição mais pesada. Já eu sigo sem dor — a não ser a na consciência por ter feito pouco caso do problema. Ao menos, até o dia em que as pedras rolaram.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.