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Blog da Lúcia Helena

Na quarentena, cuidar das gengivas é fundamental para grupos de risco

Lúcia Helena

24/03/2020 04h00

iStock

"Quem sairia pelas ruas com uma ferida mais ou menos do tamanho da palma de sua mão, sangrando, inflamada, completamente exposta?", provocou a periodontista carioca Mariana Fogacci, professora da Universidade Federal de Pernambuco, em uma conversa que tivemos há cerca de 15 dias. Provavelmente ninguém em sã… Consciência que fala?

Bem, consciência é uma palavra difícil de usar no contexto. Por exemplo, muitos ignoram que, se fossem esticadas, suas gengivas ocupariam aproximadamente essa área, a da palma de suas mãos. E, sem enxergar o menor perigo nessa atitude, saem por aí com elas feridas, sangrando, inflamadas, completamente expostas a cada vez em que abrem os lábios. 

Volto a procurar a professora. Há duas semanas, afinal, as pessoas se beijavam, se abraçavam, se esbarravam em ruas lotadas, se apertavam para caber mais um no elevador… Parece que foi dois séculos atrás. Explico por telefone que segurei a publicação do texto com sua participação porque fomos, todos, atropelados pelo famigerado coronavírus. 

Nosso papo dias antes — que ficou suspenso como tantas festas, namoros recém-engatados, reuniões de trabalho — era sobre o elo entre os problemas nas gengivas, a obesidade e duas de suas principais comorbidades, que seriam os males cardiovasculares e o diabetes tipo 2. Aliás, diabetes tipo 2 que —aprendi com a professora Mariana —  pode tanto favorecer problemas nas gengivas quanto piorar por causa deles, em um ciclo nefasto. 

Mas nessa segunda conversa, ao me desculpar pelo adiamento, eu me lembro do óbvio: os grupos de risco da pandemia atual incluem justamente quem tem diabetes e doenças no coração. Ainda no último sábado, 21, a revista científica The Lancet divulgou um estudo da Academia Chinesa de Ciências Médicas que observou 191 casos bem graves de Covid-19, procurando compreender onde estariam os maiores riscos de sucumbir a formas severas dessa infecção.

Pois bem: 91 pacientes ou 48% do total tinham alguma doença prévia. Entre eles, quase um terço apresentava hipertensão, 19% eram diabéticos e 8% sofriam de outras doenças cardiovasculares, ou seja,  não tinham pressão alta.

Pergunto, então, se a saúde bucal teria sua contribuição nessa história. "Indiretamente, sem dúvida. Por isso, nesses tempos de reclusão, é ainda mais importante ter uma rotina para prevenir as doenças periodontais", diz a professora Mariana do outro lado da linha. "Ou elas podem agravar a situação de quem já faz parte dos grupos de risco e até mesmo os problemas respiratórios em si", alerta, pegando o gancho do que falamos anteriormente. Então, finalmente retomo o que queria lhe contar quando parecia existir um oceano inteiro entre nós e o coronavírus. 

A boca vai muito além dos dentes

Sorriso branco, com a dentição toda alinhada, bonito de se ver — é o que todo mundo quer. "Mas não adianta ter uma casa linda e maravilhosa sem bons alicerces, porque ela pode desmoronar", compara a professora Mariana. O que alicerça seus dentes, no caso, é um conjunto de tecidos — gengivas, ligamentos, ossos. E, acredite, essa estrutura pode ir ruindo aos poucos sem que você repare.

No início, a gengiva sangra de leve por qualquer bobagem, perto de um dente ou de outro, sinal da inflamação conhecida como gengivite."Não é normal uma gengiva sangrar com frequência, mesmo que seja em um único ponto", avisa a especialista.

Quando a inflamação avança, aí ela já pega os ligamentos que prendem os dentes feito amarras e até mesmo os ossos das arcadas. Então falamos em periodontite. Com o tempo, se esses tecidos permanecem afetados, os dentes ficam bambos. Dançam como se fossem de leite — e caem. Só que abrir uma janela no sorriso não tem graça alguma em gente crescida.

No entanto, embora ficar banguela seja sério — comprometendo a habilidade de mastigar alimentos e, consequentemente, a boa nutrição, sem contar os danos à autoestima —, esse ainda pode ser o menor dos males, segundo Mariana Fogacci, que é entusiasta de uma área da saúde relativamente nova, a medicina periodontal, a qual estuda como doenças infecciosas ou inflamatórias pelo corpo agridem os tecidos que suportam os dentes na boca. E como, por sua vez, as doenças da boca afetam outros órgãos. E é para esse caminho de mão dupla que chama a atenção. 

A ameaça de infecções e de mais e mais inflamação

Os tecidos ao redor de um dente são repletos de vasos. E, se está saindo sangue, é sinal evidente de que há uma brecha capaz de permitir a entrada de uma bactéria que se encontrava na cavidade bucal ou na superfície dentária, isto é, na tal da placa."Se a parede gengival está lesionada, bactérias nocivas podem ganhar a circulação com facilidade e viajar até órgãos distantes da boca, como os pulmões, provocando doenças ali", ensina a periodontista. 

Mas não é só isso. As gengivas adoentadas liberam, sem trégua, mediadores inflamatórios. Assim como um germe cai no fluxo sanguíneo para agir em outros cantos, essas moléculas também são levadas pela correnteza da circulação. E causam estragos pouco a pouco— por exemplo, em quem está acima do peso. "A obesidade já é reconhecida como uma doença inflamatória, porque o tecido adiposo acumulado produz essas mesmas moléculas. Portanto, se há uma espécie de reforço, por causa das substâncias inflamatórias que vêm  da boca com periodontite, em princípio as complicações do excesso de peso têm tudo para se intensificar."

Em outras condições de saúde, porém, há mais evidências de que as moléculas inflamatórias vindas da boca causam encrencas a distância. "Sabemos que elas tendem a se alojar em lesões já iniciadas nas artérias do corpo, acelerando a formação de placas que põem em risco a saúde cardiovascular", exemplifica.

Segundo a professora Mariana, no caso de quem tem diabetes, a maior prova de que os tecidos periodontais inflamados têm relação com doença é que pacientes que se submetem à limpeza da gengiva periodicamente e que seguem à risca as orientações do periodontista no que diz respeito à higiene bucal acabam melhorando o controle glicêmico. "Estudos mostram que o resultado é comparável a você dar um segundo medicamento para baixar as taxas de glicose no sangue", informa. "Provavelmente porque o estado de inflamação constante agravaria a resistência das células de todo o organismo ao hormônio insulina, que colocaria esse açúcar para dentro delas, varrendo-o da circulação."

Diabetes e periodontite: relação de mão-dupla

A boca, por sua vez, também é afetada pelo diabetes. O excesso de açúcar no sangue gera moléculas conhecidas por AGEs, do inglês produtos de glicação avançada, que agravam a inflamação gengival. E tem mais: quando o diabetes não é bem controlado, as defesas do organismo se tornam mais vagarosas e ficam com dificuldade para chegar onde existe uma ameaça — que pode ser um machucado na gengiva. Logo, maior o risco de bactérias indesejáveis crescerem ali. "E, para completar, a produção de colágeno e, consequentemente, a reparação dos tecidos são prejudicadas no diabetes. Daí as lesões que fazem a gengiva sangrar não cicatrizam com facilidade", diz Mariana.

O tamanho da encrenca

Existem graus diferentes de doença periodontal. Para saber o estágio, os especialistas lançam mão de um exame chamado periograma. É quando introduzem uma sonda, que lembra um pequeno gancho afiado, no sulco entre a gengiva e cada dente, um por um — "o normal é a sonda penetrar de 0 a 3 milímetros". Mais do que isso? Problema à vista. Outros aspectos também contam na avaliação, como a quantidade de pontos que estão sangrando.

O jeito certo de escovar seus dentes

"Enquanto a cárie pode ser causada por uma única bactéria, a Streptococcus mutans, a periodontite é uma doença mais complexa, provocada por diversos micróbios ao mesmo tempo que, para você ter ideia, voltam a formar uma película sobre todos os tecidos da cavidade bucal quase imediatamente após a limpeza", ensina a professora.

Por isso, para mantê-los sob controle rígido, a higienização deve ser feita com disciplina, passando o fio dental e escovando do jeito certo. Qual seria o jeito certo? A resposta é que não existe uma técnica universal, que sirva para todo mundo.

"Muita gente aprende a limpar os dentes quando criança como se desenhasse bolinhas com as cerdas da escova só porque é um movimento fácil de realizar e termina escovando assim pela vida afora ", comenta Mariana. "No entanto, a técnica ideal de escovação depende de inúmeros fatores. Posso orientar quem está com uma boca saudável a manter a escova em um ângulo que faça suas cerdas entrarem nos sulcos", exemplifica. "Mas, para um paciente que já está com uma periodontite avançada, uma fricção com mais força nessa região poderá provocar a retração nas gengivas", compara.

Uma sugestão é aproveitar esse tempo de reclusão para, quem sabe, perguntar ao seu dentista como você deveria fazer a limpeza — as consultas à distância podem servir para isso. Não dê moleza aos sangramentos, ainda mais agora. Porque queremos, logo mais, sorrir pelas ruas.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.