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Blog da Lúcia Helena

Hemofilia: muita coisa mudou, mas ainda temos o que aprender com a doença

Lúcia Helena

16/04/2020 04h00

iStock

Para a maioria de nós é assim… Basta um furinho de nada em qualquer ponto dos mais de 96 quilômetros de vasos do organismo que o fuzuê está armado. A lesão dispara uma mensagem química para as plaquetas, fragmentos de células grandalhonas instaladas na medula óssea. Fragmentos tão importantes que, por segurança, em uma mísera gota de sangue você é capaz de encontrar de 250 mil a 500 mil deles. Afinal, são encarregados de construir a barreira que dificultará o escape do líquido vermelho. Ao mesmo tempo, as plaquetas ativam uma enzima no plasma sanguíneo, que por sua vez ativa outra, a qual ativa a seguinte …São mais de uma dúzia de moléculas, os chamados fatores de coagulação, que entram em cena respeitando a ordem — o fator I aciona o II, depois vem o III, o IV, o V…Tudo culmina em uma rede que prende os glóbulos sanguíneos, impedindo a hemorragia.

Há quem diga que a complexidade desse processo é estratégica, cheia de etapas justamente para evitar que o corpo saia formando coágulos à toa, sem existir um machucado. O problema é que a falta de um único desses fatores corta a corrente de eventos da coagulação. Para cerca de 12.500 brasileiros é assim. Eles têm hemofilia. 

Cerca de 80% ou um em cada 5 mil homens têm o tipo A da doença. Nela, o organismo não produz o fator XIII. Já o restante ou um em cada 30 mil homens têm a hemofilia B e, neles, o que está ausente é o fator número IX.  "Por falta de um ou de outro fator,esses pacientes têm sangramentos ao longo da vida inteira, até mesmo quando são tratados. Embora, claro, o tratamento minimize a gravidade", conta a hematologista Margareth Ozelo, professora da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde também coordena o hemocentro. À véspera do Dia Mundial da Hemofilia — amanhã, 17 de abril — ela conta que é fascinada por essa doença há vinte anos, desde os tempos de residência, chegando a fazer pós-doutorado no Canadá em terapia gênica para tratá-la.

Segundo a médica, o maior problema da hemofilia não são os sangramentos quando a pessoa faz um corte ou qualquer outro ferimento — estes, além de minoria, são visíveis. Mas cerca de 80% das hemorragias são internas. "Elas acontecem dentro das articulações. Extremamente dolorosas, vão degenerando essas estruturas aos poucos, chegando ao ponto de, com o tempo, a pessoa não conseguir andar, nem erguer os braços", informa. "Ou seja, a hemofilia é uma doença capaz de ser altamente debilitante." 

Felizmente, nos últimos anos o tratamento mudou da água para o vinho e há perspectivas de boas novidades — incluindo a terapia gênica estudada pela professora Margareth Ozelo. Se bem que um desafio continua enorme: fazer com que as pessoas conheçam mais o problema.

Um terço dos pacientes não tem nenhum outro caso na família

A gente sempre ouve falar que a hemofilia é uma doença hereditária. A herança, no caso, é invariavelmente materna. Ora, são as mulheres que carregam o cromossomo X sem, digamos, a receita do fator de coagulação VIII ou do IX. Como elas próprias têm um par de cromossomos XX em suas células —lembra-se das aulas de Biologia? —, dificilmente desenvolvem a doença. Só de 1% a 3% dos pacientes são do sexo feminino. No entanto, nos homens a dupla de cromossomos é XY. Ou seja, com um único X, se eles herdam o gene com mutação, não têm escapatória.

No entanto — opa! —, 30% dos casos parecem acontecer do nada. Quero dizer, não há nenhum antepassado com a doença na família. Por isso fica o alerta: "Se o menino vive com sangramentos sem explicação ou inchaços nas articulações, é preciso cogitar se ele não poderia ter hemofilia", avisa a hematologista. 

Os sintomas aparecem cedo, geralmente quando o garotinho começa a andar e, como qualquer outra criança, leva seus primeiros tombos. Para ele, a queda pode fazer sangrar. Por dentro. "O triste é que já vi casos de mães que chegam no consultório e os profissionais, durante o exame, suspeitam que a criança foi vítima de violência, porque ela está cheia de hematomas."

Há casos e casos

Tanto a hemofilia A quanto a B podem ter a mesma gravidade, se compararmos as duas. Mas existe uma classificação. São considerados graves os pacientes que têm no máximo 1% do fator de coagulação VIII ou do IV. Esses, infelizmente, têm sangramentos espontâneos a torto e a direito. Já nos casos classificados como moderados, o organismo consegue produzir de 1% a 5% do fator de coagulação afetado — "e, mesmo produzindo tão pouco, já é incrível a diferença na qualidade de vida desses pacientes moderados para aqueles com hemofilia grave", observa a professora Margareth. Finalmente, nos casos leves, é possível encontrar uma quantidade que vai de 5% a 40% do fator de coagulação em questão.

O que há de novo no tratamento

O conceito do tratamento, que é oferecido a todo e qualquer brasileiro com hemofilia apesar do alto custo — palmas para o SUS! —, é repor a molécula ausente por via endovenosa. Até há oito anos, porém, a vida da pessoa com hemofilia era um caos, pois o esquema era sob demanda, ou seja, se tinha um sangramento, ela corria até um hemocentro para tomar uma dose de fator de coagulação e manter tudo sob controle. Isso mudou em 2012.

De lá para cá, o tratamento passou a ser profilático. A pessoa toma duas ou três doses por semana da enzima que está em falta na veia, deixando o sangue pronto para qualquer incidente, sem esperar nada acontecer.

Apesar do enorme benefício que o novo esquema proporciona à saúde, a psicóloga Mariana Batazza Freire, presidente da Abraphem (Associação Brasileira de Pessoas com Hemofilia), conta que uma de suas maiores batalhas é convencer os pais de algumas crianças muito novinhas e, na outra ponta, os pacientes mais velhos. "No caso destes, o que acontece é que muitos já têm sequelas, então se iludem e acham que não tem mais por onde piorar. Mas a verdade é que sempre tem. O que não falta no corpo é articulação. Se, hoje, ele vive com um tornozelo e um joelho travados e com dor, amanhã poderá estar com dois joelhos prejudicados e um cotovelo também", exemplifica ela.

Vale deixar claro que tomar mais de uma dose de fator de coagulação por semana não leva à regressão dos estragos já feitos, apenas impede que novas articulações sejam acometidas. Mariana, porém, reconhece que não é fácil para o paciente, por mais que ele receba a medicação de graça. "Ora, a aplicação é desagradável. Consome, no mínimo, 20 minutos. Às vezes, se a dose indicada para determinado indivíduo está dividida em duas caixas, até mais do que isso", descreve.

A coisa toda é mais delicada com as crianças, lembra Mariana. "O fator de coagulação precisa ser aplicado de manhã. Então, se o menino deve sair para a escola às 6 e meia, imagina o humor com que ele estará às 6 para fazer essa infusão", comenta ela, mãe de Fábio, que tem hemofilia e que agora está com 18 anos. "Quando a criança é muito pequena é ainda mais complicado, porque o acesso venoso não é moleza e muitas vezes a gente não acerta mesmo de primeira."

Ainda assim, vale demais a pena fazer o tratamento profilático. "Um dos grandes medos, por exemplo, é quando a criança bate a cabeça. E garanto: toda criança vive batendo a cabeça", diz a psicóloga. "E isso sempre parece acontecer quando os pais estão no meio da jornada de trabalho ou tarde da noite, quando todos querem dormir. Eu não consigo imaginar, hoje, quem passe a madrugada no hospital esperando um filho nessa situação ser atentido." E nem tem por quê: com o esquema profilático, depois de ligar para o médico, na maioria das vezes é possível esperar até o dia seguinte para ser examinado. Talvez tomando uma dose de reforço de fator de coagulação.

A complicação maior é com 30% dos tais pacientes com hemofilia grave. Como têm menos de 1% de um dos fatores de coagulação, quando receben a substância  seu organismo pode não reconhecê-la. Encarada como uma estranha, acaba sendo destruída e essa estratégia de tratamento vai deixando de funcionar.

Sem risco de infecções

Se no passado as pessoas com hemofilia passavam por transfusão sanguínea para obter os benditos fatores, hoje eles são produtos recombinados — isto é, criados em laboratório por meio de engenharia genética. "Sem contar que passam por diversos processos capazes de matar qualquer vírus", reforça a professora Margareth Ozelo.

O que há de novo

A ciência vem desenvolvendo fatores de coagulação de longa duração. Com eles, é possível tomar apenas uma ou duas doses por semana. Outro tratamento recente lança mão de anticorpos monoclonais criados em laboratório: "O anticorpo é uma molécula diferente do fator de coagulação, mas que se encaixa exatamente no lugar dele naquela cadeia de reações que estacam a hemorragia", descreve a professora Margareth. Essa espécie de dublê é mais cara, mas acaba sendo a alternativa para os pacientes graves cujo organismo não recebe bem a reposição.

Finalmente, existe a terapia gênica, da qual Margareth Ozelo é grande entusiasta. Um vírus leva até o interior das células do fígado o gene com a receita do fator que está em falta. Elas, então, passam a produzi-los. Isso é feito experimentalmente inclusive aqui no Brasil, no hemocentro coordenado pela professora, que já se tornou referência internacional. "A dúvida é se os pacientes continuarão assim, produzindo a substância no fígado, para sempre", explica. A excelente notícia que é a literatura científica relata casos de pessoas com hemofilia A que continuam bem depois de dez anos de terapia gênica. "No caso da hemofilia B, temos pacientes tratados há quase quatro anos", diz.

E a covid-19?

Para não dizer que a gente se esqueceu dela, bom esclarecer que a hemofilia não é fator de risco. Quem tem essa doença não sofre uma ameaça maior de se infectar por causa dela, nem de desenvolver as formas mais graves. "O que acontece é que, com o avanço da Medicina, hoje já temos pacientes hemofílicos com bem mais de 60 anos. E alguns, infelizmente, se tornaram hipertensos, diabéticos…", nota a professora Margareth. Mas aí já é outra história.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.