Seu estômago e intestino podem piorar o clima da quarentena. E vice-versa
Com a experiência de assistir pela janela de casa o mundo que conhecíamos desmoronar, somando os números alarmantes da pandemia e outras notícias que decididamente não fazem bem aos nervos, quem nunca sentiu um aperto no estômago por esses dias?
Pois bem, cientistas do Instituto do Cérebro da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos, publicaram nesta semana um estudo feito para mapear quais áreas do cérebro estariam conectadas lá mesmo, com o nosso estômago. E isso para tentar explicar por que o estresse promoveria o aparecimento de úlceras. Achei curioso. E — que tristes tempos… — bem pertinente.
Que a massa cinzenta e os órgãos responsáveis pela digestão têm uma bela intimidade, veja, isso não é exatamente nenhum conhecimento novo no pedaço da ciência. Ora, ora, quando o fisiologista russo Ivan Pavlov (1849-1936), que naquela altura já tinha faturado um Nobel por seus estudos sobre a digestão dos animais, demonstrou o que seriam os reflexos condicionados na década de 1920, isso começou a ficar claro.
Você provavelmente já ouviu falar de sua experiência clássica: toda vez que o médico alimentava cachorros, ele tocava uma sineta. Os cães, então, passaram a associar o som à hora do rango. E por isso, com o tempo, bastava que ouvissem as badaladas de Pavlov que já ficavam com a boca cheia de água, mesmo com a tigela vazia de comida. Como o aumento da salivação faz parte dos preparativos de estômago e companhia para o trabalho, a reação dos animais acusa que o cérebro dá os seus pitacos nesse serviço.
De lá para cá, porém, essa linha de investigação foi se tornando muito mais complexa— e, na mesma medida, muito mais fascinante. Porque entraram milhões de personagens na história. Eu me refiro aos microorganismos que habitam o aparelho digestivo. Eles ficam em uma eterna conversa-vai-conversa-vem com o cérebro. E agora — nos últimos dez anos, por aí — a ciência fala até em psicobióticos ou bactérias do intestino que, para o bem ou para o mal, afetam o nosso humor. Mas é preciso avisar: o nosso humor é capaz de afetar essas bactérias também. O caminho entre os órgãos da digestão e o cérebro é de ida-e-volta.
E, como todo caminho, tem um ponto de chegada — ou de partida, dependendo do ponto de vista nessa mão-dupla. Pois então, deixa eu voltar para o estômago e para a experiência recém-realizada em Pittsburgh. Era isso o que procuravam os cientistas: quais regiões específicas do cérebro poderiam dialogar com as paredes estomacais e, de alguma maneira, induzi-las a favorecer ou não a vida de bactérias. Ao menos, de uma delas, a Helicobacter pylori.
O estresse e as úlceras de estômago
Isolada em 1983 em pacientes com gastrite crônica, a H. pylori foi logo acusada de disparar as feridas estomacais. Cilíndrica e cheia de flagelos feito cílios, ela se agarra à mucosa estomacal como se fosse uma alpinista e sobrevive à incrível acidez do lugar. Aliás, até gosta. Transforma a ureia do suco gástrico em energia. Mas é fato: metade do planeta tem H. pylori no estômago. Nem por isso toda essa gente sofre de úlcera lá ou no duodeno, a parte inicial do intestino, onde ela também arruma confusão.
Por outro lado, como explica o neurobiólogo Peter Strick, um dos líderes do trabalho americano, "é sabido que em situações de estresse, como quando a pessoa perde o emprego, existe um aumento nas taxas de úlceras." Ao ouvir isso pensei: e agora então, haja estômago, humanidade!
Segundo ele, é bem possível que, nesses estados emocionais, os sinais do cérebro para o estômago ajustem as secreções gástricas, deixando o ambiente mais hospitaleiro para a H. pylori. Nessas condições, crescendo de maneira desgovernada, essa bactéria produziria mais enzimas tóxicas, que agrediriam as paredes do estômago ou do duodeno e que, com o tempo, virariam o estopim de um câncer.
Mas de onde viriam exatamente esses sinais? "Descobrir esse endereço cria a oportunidade de tratamentos futuros que cortarão o mal da úlcera pelo cérebro, no lugar dos antibióticos usados atualmente", afirma Strick.
Para saber essa localização, ele usou uma espécie interessante de rastreador: uma cepa do vírus da raiva, injetada diretamente no estômago de ratos. Isso porque o vírus da raiva tem uma facilidade danada para pular de neurônio em neurônio pelos nervos a partir da região mordida por um animal infectado, por exemplo, até alcançar o cérebro, seu destino. E foi o que aconteceu.
O vírus despejado na cavidade estomacal das cobaias pegou o caminho da roça e mostrou direitinho onde desembocava a estrada de nervos: na área chamada ínsula, que tem a ver com sensações vindas das vísceras, sim, e também com a regulação emocional. Mas, nesse caso, não há evidência de que a bactéria das úlceras influencie no estresse ou no nervosismo em contrapartida. Ela apenas se beneficia desses maus momentos. Já os tipinhos encontrados no intestino, estes mexem com a nossa cabeça.
Quando o clima de quarentena chega ao intestino
"Ansiedade, medo, estresse, depressão, todos esses sentimentos modulam as bactérias que vivem no nosso intestino", garante a nutricionista Karina Al Assal, especialista em microbiota intestinal, foco de seu mestrado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. "Ainda não existem pesquisas sobre o efeito do estado de ânimo criado pela pandemia nesses micro-organismos. Mas eu diria que é improvável que eles não estejam sendo afetados", diz ela.
O nervo vago, comprido como só ele, desce do crânio e, com suas ramificações, vagueia por diversos órgãos do tórax e do abdômen, incluindo os da digestão. Aliás, o nome vem do latim vagare, ou seja, vaguear. "E ele tem, ao longo de todo o seu trajeto, receptores para neurotransmissores que informam como nos sentimos, causando determinadas reações", descreve Karina. "Não à toa, períodos de tensão podem provocar prisão de ventre em uns ou diarreia em outros. Em casos extremos podem até levar à síndrome do intestino irritável."
Mas, lembre-se, há também o caminho de volta. Segundo a especialista, trabalhos tanto com animais quanto com seres humanos mostram que substâncias produzidas pelas bactérias intestinais pegam o mesmo nervo vago pelo sentido oposto e ainda caem na circulação, chegando à cabeça e mexendo com o nosso humor.
"O intestino não é Las Vegas. Porque o que acontece nele todos ficam sabendo de alguma maneira", costuma brincar Karina. "Substâncias como a serotonina e o gaba produzidas por algumas de suas bactérias vão aumentar a serenidade e espírito de bem-estar. Porém, outras bactérias que habitam ali produzem, por exemplo, o glutamato que, no cérebro, aumenta ansiedade e a irritabilidade." Todas essas bactérias que influenciam a saúde mental são as tais psicobióticas.
E o intestino imita a própria vida: assim como nós não temos como evitar fases difíceis de encarar, como esta de agora, para ele é impossível eliminar aquelas bactérias de despejam o glutamato como doses extras de ansiedade. "O que é possível é tentar manter o equilíbrio da microbiota, aumentando a presença daquelas bactérias que nos ajudam a enfrentar de um jeito mais positivo o dia a dia."
Nesse aspecto, destacam-se três tipinhos: a Bifidobacterium longum, a Lactobacillus rhamnosus e a Lactobacillus helviticus. Claro, devem existir muitas outras, mas o trio é o mais conhecido no que diz respeito a interferências bem-vindas no humor.
E como alimentar as bactérias do alto astral?
Fica a dica: frutas, verduras, legumes, cereais integrais, enfim, tudo aquilo que tem muita fibra costuma apetecer as bactérias que nos fazem bem. Já excesso de gordura animal, por exemplo, agrada a turma irritadiça. É uma regra geral, que não tem muito erro. "Mas hoje sabemos que cada bactéria tem as suas predileções", conta Karina. "As bifidobactérias gostam de um substrato que é encontrado na aveia. E outras bactérias que ajudam no estado de ânimo crescem mais quando lhes oferecemos o amido resistente, presente na farinha de banana verde. Outras, ainda, aproveitam muito mais os frutanos, substâncias químicas que são achadas no alho e na cebola. E por aí vai…".
Para agradar todas, aqui também é preciso reforçar a necessidade de um cardápio variado. "Durante um tempo, os estudiosos da microbiota focaram muito na quantidade de bactérias benéficas e de bactérias que não nos fazem tão bem, acreditando que manter o primeiro grupo em maioria era essencial. Claro que isso continua sendo importante, mas não basta", diz a nutricionista.
Os últimos achados sublinham que é igualmente fundamental ter uma microbiota bem sortida. Karina até menciona um trabalho científico publicado no ano passado que mostrou o seguinte: indivíduos com menor diversidade de bactérias no intestino tendem a ser menos sociáveis.
E voltamos à velha cartilha do prato multicolorido com ingredientes diferentes, alternando as fontes de fibras nas refeições, já que cada tipo de bactéria vai ter o seu gosto. É bom incluir a aveia no cardápio? Sem dúvida. Mas se esbaldar no seu mingau e deixar outros alimentos de lado não vai ajudar tanto. Aliás, só mais uma indicação de Karina Al Assal: "Procure ingerir fontes de triptofano, como a banana e o grão-de-bico". Bem lembrado. O tripfano serve de matéria-prima para a microbiota produzir moléculas de serotonina, que pegando a rota do cérebro vão nos acalmar. Haja serotonina também! Precisamos.
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