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Blog da Lúcia Helena

E se o novo coronavírus puder deixar quem teve a covid-19 com diabetes?

Lúcia Helena

23/06/2020 04h00

iStock

A pergunta acima veio à tona há dez dias, no último congresso da ADA, a American Diabetes Association, que desta vez foi online. Ora, surge um relato aqui e outro lá de pessoas que, coincidência ou não, se tornaram diabéticas tipo 1, dependentes de injeções de insulina, depois de terem se livrado da infecção pelo Sars-CoV 2.  

E não é só isso. Às vezes, os médicos na linha de frente passam apuros com pacientes de covid-19 cujas taxas de açúcar no sangue, mesmo sem terem nada antes, vão aos píncaros. Ou com doentes que, na UTI, apresentam um quadro alarmante que faz parte do jargão do diabetes — o da cetoacidose. Ele é tóxico e indica uma insulina que zerou. Mas aí, devidamente socorridos, inclusive com a reposição desse hormônio produzido pelo pâncreas, esses sujeitos parecem voltar ao normal após a recuperação da covid-19.

Por essas e por outras — para completar, por casos de diabetes tipo 2 que ficaram indomáveis só com o auxílio de medicação oral após a passagem do Sars-CoV 2 pelo organismo —, muitos médicos questionam até que ponto o pâncreas não seria mais um sequelado nessa guerra que travamos. 

Para encontrar respostas, criaram até uma iniciativa internacional, a CoviDIAB, liderada pelo King's College London, na Inglaterra, e pela Monash University, na Austrália, com cientistas de diversos cantos do globo, o Brasil incluído. O objetivo é, a partir de agora, registrar todos os casos de diabetes associados à covid-19 e tentar entender o que está acontecendo. 

Risco ou consequência

De uma coisa, não resta dúvida: se aquela pessoa que já tinha diabetes e que mal controlava suas taxas de açúcar der o azar de trombar com o novo coronavírus pela frente, o risco de ela desenvolver quadros graves de covid-19 será grande. E aqui estou falando principalmente do diabetes tipo 2, aquele que costuma andar de mãos dadas com a obesidade. 

Nesse tipo, com a trabalheira para lidar com o excesso de glicose, o pâncreas fica em frangalhos. Até produz insulina, só que ela já não funciona tão bem. E, sem um tratamento seguido à risca, a glicose elevada na circulação provoca inflamações por todo canto. Entenda: esse estado inflamatório é meio caminho andado para as confusões armadas pelo coronavírus.

"Mas a suspeita que se levanta agora é diferente. É de que o Sars-CoV 2 seria o gatilho para disparar uma reação maluca do sistema imunológico. Ele apontaria sua mira para destruir as células beta do próprio pâncreas, que são as produtoras de insulina", explica o endocrinologista João Eduardo Nunes Salles, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e 1.º secretário da Sociedade Brasileira de Diabetes.  Sendo assim, a covid-19  poderia causar o diabetes tipo 1.

Vírus e diabetes tipo 1, nada tão novo

Qual a surpresa? Não é de hoje que se acusam vírus de voltarem o sistema imunológico contra as células produtoras de insulina. O coxsackie do tipo B, um enterovírus que causa febre e dores abdominais, já está nesse banco de réus faz tempo, sob a alegação de induzir o sistema imune a maltratar o pâncreas até ele sucumbir ao diabetes tipo 1.

Outro suspeito: o vírus da caxumba. E um estudo com mais de 82 mil pacientes de infecções respiratórias em geral — que obviamente não incluíam a novíssima covid-19 — apontou que elas aumentaram, sim, a probabilidade de diabetes tipo 1 entre esses indivíduos. Aliás, quando o Sars-Cov 1, antepassado do coronavírus atual, fez estragos na China em 2002, no computo geral estavam casos de diabetes também.

Portanto, muito do bochicho de agora tem a influência desse contexto. "Mas lembre-se: nosso conhecimento sobre a covid-19 ainda é embrionário para afirmarmos que ela causaria diabetes", opina o professor Alexandre Hohl, da Universidade Federal de Santa Catarina,  ex-presidente da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM).

O endocrinologista  reforça que a infecção mal tem seis meses de estudos. "E mais: depois de tantas pesquisas sobre outros vírus que poderiam provocar diabetes tipo 1, acredito que, na prática, a probabilidade de o Sars-CoV 2 fazer isso seja baixa", tranquiliza. "No entanto, em tese sim, biologicamente é uma ideia bastante plausível." E, diga-se, é plausível até por causa da porta de entrada do Sars-Cov 2.

Como o coronavírus agiria no pâncreas

O causador da covid-19 tem em sua superfície uma tal de proteína S que lhe vem a calhar. Afinal, é a chave que usa para abrir, nas células, a porta de entrada de uma substância fundamental no controle da pressão — a ECA2 ou enzima conversora de angiotensina 2. Usando a entrada alheia, passa para dentro sem cerimônia.

Mas o que fazem receptores da ECA2 nas células beta do pâncreas? "O pulmão também tem bastante desses receptores, assim como o intestino delgado e o tecido adiposo", conta o professor João Salles. "Imagino que por serem extremamente vascularizados. Essa enzima ajudaria a regular o fluxo sanguíneo nesses órgãos, que podem demandar maior pressão em determinados momentos." 

Sem contar que as células beta são complexas. "A secreção da insulina é uma de suas funções, mas existem outras de que ninguém sabe ao certo e que podem justificar essa quantidade de receptores da ECA2", diz João Salles.

O problema é que, uma vez dentro das células pancreáticas, o invasor Sars-CoV 2  despertaria a atenção dos mastócitos. "Essas são células de defesa bem nervosinhas. Elas deixam tudo inflamado", descreve João Salles . "E, a partir dessa primeira reação, toda a resposta imunológica talvez culmine na destruição das unidades produtoras de insulina."

Atenção: hiperglicemia não é diabetes

Se por um lado o vírus pode, em tese, disparar essa reação autoimune, não dá para se espantar com a glicose nas alturas observada em pacientes graves. "Desde o ano 2000, sabemos que todo e qualquer paciente crítico apresenta uma tendência à hiperglicemia", esclarece o professor Alexandre Hohl.

Segundo ele, "deixar mais glicose disponível, por ser o seu combustível, é uma estratégia de defesa de um organismo que está melindrado porque sofreu um acidentede carro, passou por uma cirurgia do coração ou enfrenta qualquer doença mais severa."

Tanto que, nas UTIs, os médicos às vezes prescrevem insulina em doses muito ajustadas, pois controlar a glicemia sempre faz total diferença no desfecho da história. Mas a moral é que, apesar do rebuliço no congresso da ADA discutindo pacientes de covid-19 que ficaram com a glicose elevadíssima no período de internação, isso não é prerrogativa da infecção pelo novo coronavírus. E até mesmo certos remédios aplicados em doentes nas UTIs— como os corticoides — podem catapultar esse açúcar. Vamos ter cautela.

Um outro tipo, então?

Na apresentação do CoviDIAB para a comunidade científica, essa foi uma hipótese levantada — a da covid-19 também causar um tipo de diabetes mais comum na população negra com algum grau de obesidade, que seria o de propensão à cetoacidose. "'É quando a insulina para de ser produzida de maneira abrupta", informa o professor João Salles.

Então, como a glicose não tem como entrar nas células para ser usada como combustível, o corpo se vira com uma fonte de energia alternativa. E ela é o tecido adiposo. Parece simples, mas não é: ao queimar sua própria gordura, ao invés restar água como na reação com a glicose, o que sobra são moléculas chamadas corpos cetônicos.

"É diferente de alguém que faz dieta para emagrecer, porque essa pessoa ainda tem insulina disponível e, se os corpos cetônicos aumentarem demais, esse hormônio voltará a agir para evitar seu acúmulo", explica João Salles.  Tóxicos, quando se acumulam deixam o sangue mais ácido, o que provoca efeitos deletérios inclusive no cérebro. Daí um dos sintomas da cetoacidose ser a confusão mental.

Em geral, o diabetes de propensão à cetose costuma ser revertido. Mas a pergunta deixada no ar durante o congresso da associação americana é se os pacientes com covid-19 que passaram por essa má experiência não teriam maior tendência, no futuro, a apresentarem o tipo 1 ou o tipo 2 de diabetes.

Só o tempo vai dizer, com a análise dos casos registrados pelo CoviDIAB."Não dá para ter certeza, mas  lógica diz que, se esse risco realmente for maior, provavelmente estará relacionado a quadros mais graves de covid-19 e não a quem teve apenas sintomas leves da infecçao", opina João Salles.

E o que muda?

"Para a ciência, é interessante saber a origem do diabetes tipo 1 e compreender o impacto do Sars-CoV 2 na doença", observa o professor Alexandre Hohl. "Para o paciente, porém, muda pouca coisa. Os cuidados durante a infecção pelo Sars-Cov 2 continuarão aqueles que já são tomados pelas equipes de saúde. E, se a covid-19 desencadear o diabetes como alguns colegas notam esporadicamente no consultório, essa possível causa não vai interferir no tratamento. Ele também será do mesmo jeito."

Para Hohl, estamos diante de um quebra-cabeças de 5 mil peças. "Cada estudo sério e até o que apontar o CoviDIAB  adiante representam uma única pecinha", diz. Haja então paciência até enxergamos com nitidez o que, de fato, a covid-19 pode aprontar.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.