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Blog da Lúcia Helena

Erros que os diabéticos brasileiros cometem causando muita hipoglicemia

Lúcia Helena

16/07/2020 04h00

iStock

É por absoluta falta ou ineficiência da insulina, o hormônio que bota a glicose dos alimentos para dentro das células, que esse açúcar fica sobrando no sangue de quem tem diabetes. E, enquanto ele circula em excesso, vai causando todo tipo de estrago, danificando os próprios vasos por onde passa, arrasando com os nervos, sobrecarregando os rins… 

Descrever tudo o que essa condição é capaz de aprontar pelo corpo valeria um tratado. Mas se engana quem acha que basta dar um jeito de baixar as taxas da glicose sanguínea.  Porque outro perigo enorme é essa glicose despencar, no fenômeno conhecido por hipoglicemia.

No entanto, ela só foi lembrada como um desafio no controle da doença por 24% de 831 diabéticos que participaram de uma pesquisa realizada  pela revista VEJA SAÚDE e pela Inteligência de Mercado Abril, com a curadoria do endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, pesquisador da Universidade de São Paulo em Ribeirão Preto. "A ideia era investigar os erros e os acertos dos pacientes com o tipo 1 e o tipo 2 da doença", conta o jornalista Diogo Sponchiato, redator-chefe da publicação. 

Na amostra, pouco mais de metade dos indivíduos — ou 51%, — tinham o tipo 1. Outros 43%, o tipo 2, mas já aplicando a insulina. A reposição do hormônio, quando mal orientada pelo médico ou feita do jeito errado pelo paciente, favorece a queda brusca do açúcar. Já os 6% restantes da amostragem não se declararam nem com um tipo, nem com outro e seguem sem a menor noção de qual diabetes é aquele para chamar de seu.

Os resultados de "Os Altos e Baixos do Diabetes na Família Brasileira" serão apresentados na noite de hoje para mais de 3 mil profissionais de saúde que, ao longo desta semana, vêm acompanhando o Endodebate 2020. E sou capaz de apostar: o retrato pintado pela pesquisa deverá causar um rebuliço no evento criado pelo próprio doutor Barra Couri, que tem o objetivo de construir uma ponte entre o mundo idealizado das pesquisas de ponta e a realidade no dia a dia nos consultórios.

E aí é que está: na tal da vida como ela é, 35% dos diabéticos não sabem nem sequer os valores do que estamos falando. Desconhecem que uma glicose abaixo de 70 miligramas por decilitro de sangue já é hipoglicemia, algo que 76% até acham ser bem perigoso — resposta certa! —, enquanto 16% acreditam que é perigoso, mas nem tanto, e outros 8%  mal e mal esquentam a cabeça.

"É uma maluquice porque, inclusive aqueles que têm uma noção do perigo, continuam fazendo tudo errado", espanta-se Barra Couri. "E olha que 56% já tiveram uma crise hipoglicêmica no trabalho, 48% sentiram a glicose cair durante o exercício físico e 25% apresentaram a hipoglicemia enquanto dirigiam. Já pensou no que é perder a consciência no volante?", indaga o médico. 

A  frequência desses eventos é assustadora e, por mais leves que sejam essas crises, elas danificam as células do cérebro e a somatória ao longo da vida está associada a danos cognitivos. Pois bem: quatro em cada dez diabéticos vivem passando por esse perrengue de uma vez por semana a todos dias. Arrasando com seus neurônios. Mas por que então é solenemente ignorado? "Porque as pessoas acham que a hipoglicemia é parte natural  do diabetes, esse é um erro". E há outros, que estão a seguir. 

Erro 1: não reconhecer os sintomas

Na pesquisa, os participantes podiam marcar mais de uma alternativa em uma lista de nove possibilidades: suor frio (69% marcaram esta opção), tremor nas mãos (61%), tontura (51%), visão turva (41%), palpitação (33%), fome excessiva (30%), perda de consciência (28%), irritabilidade (26%) e,  para completar, convulsão (10%). Absolutamente todas as alternativas são sintomas clássicos da queda da glicose. "O esperado então era que 100% das pessoas marcassem cada um deles, uai", diz o doutor Couri, com seu jeito mineiro. Pois é, não foi o que aconteceu.

Saiba: quando o açúcar cai, um hormônio sobe tentando segurar as pontas. É a adrenalina. E ela, ao aumentar, é que encharca o corpo de suor, provoca o tremelique nas mãos, acelera o peito e turva o olhar. "O problema de a pessoa ter hipoglicemia com frequência é que, com o tempo, o organismo desenvolve uma resistência à adrenalina e deixa de perceber seus sinais", explica o doutor Couri.

O açúcar, porém, pode estar ladeira abaixo, mesmo sem a criatura sentir quase nada.  Talvez apenas fome e olhe lá — outro mecanismo do corpo à procura do açúcar perdido. 

Se a queda livre continua, vêm os sinais do próprio sistema nervoso, que depende da glicose como combustível. Surge a confusão mental. Na sequência, a tontura e o desmaio. E, se tudo piorar de vez — entenda, se nada for feito —, a convulsão.

"Não reconhecer os sintomas é um problema daqueles", reforça o médico. Podemos especular que mais gente até sofra de hipoglicemia com uma frequência além do razoável, só que sem fazer a menor ideia. O que me faz lembrar do…

Erro 2: não monitorar a glicose com frequência

"Só dá para saber se está com hipoglicemia monitorando as taxas de açúcar", diz Barra Couri. Óbvio. Hmm, óbvio mesmo? Apesar de 81% dos respondentes falarem que monitorar a glicose com frequência é muito importante, apenas 57%  fazem isso sempre. Praticamente um em cada dez diabéticos só checa a quantas anda a sua glicemia uma única vez durante o dia. 

Quantas vezes seria o ideal? "Quanto maior a frequência, melhor", responde o doutor Couri. "Se eu tivesse um paciente querendo dosar de hora em hora, diria: 'está bem'", brinca, referindo-se à medição na ponta do dedo, usada por 84% dos entrevistados na pesquisa. Só 11% utilizam o sistema de monitoramento continuo, aquela espécie de adesivo que aponta como está a glicemia o tempo inteiro.

"Estudos mostram que, quanto mais uma pessoa mede, mais ela mantém suas taxas de glicose sob controle, sem mexer em remédio, só pelo fato de estar acompanhando", informa o endocrinologista. Provavelmente, mais conhecedora do seu organismo, ela planeje o cardápio, não abra mão de atividade física… E, para tudo dar certo, existem horários que são chave. Nem por isso são cumpridos.

A medição no meio da noite, por exemplo, seria obrigatória. É chato acabar com o descanso, mas todo diabético deveria acordar na madrugada, inclusive aqueles que se valem de adesivos de monitoramento contínuo, só para saber os valores da glicemia. "Convencionou-se que esse horário seria às 3 da manhã", explica Barra Couri.

Mas a pesquisa mostra que 84% dos diabéticos não botam o despertador para tocar e dormem direto. O problema é que, na madrugada, o risco de hipoglicemia é sempre maior.

A glicose também deveria ser checada logo após as refeições e, infelizmente, 41% das pessoas cruzam os talhares e se esquecem disso. "Esse seria o momento de ver se tudo o que elas fizeram deu certo, criando planilhas para planejar o futuro", justifica Couri.

Segundo o médico, às  vezes a pessoa calcula 1 unidade de insulina para cada 100 gramas de carboidrato no prato. No entanto, ao medir a glicose depois das refeições, vê que, no café da manhã essa dosagem não funciona, que precisaria dobrar em função da combinação de alimentos ou de outros fatores, por exemplo.

Erro 3: aplicar a insulina rápida bem na hora ou só depois de comer

Nesta, até os médicos derrapam:  23% dos entrevistados ouvem dos clínicos que é para injetar a insulina rápida mais de 15 minutos antes das refeições. O certo seria entre 10 e 15 minutos antes. Ora, como o próprio nome indica, essa versão do hormônio não tarda a agir. E, então, pode começar a fazer efeito antes de a pessoa se sentar à mesa e ingerir qualquer coisa. Insulina no sangue e barriga ainda vazia é hipoglicemia na certa.

Mas, como diz o doutor Couri, é um samba de doido. Os médicos falam uma coisa e os pacientes fazem outra. Por isso, nesse caso, a sorte é que 29% tomam a insulina no momento mais adequado. Em compensação, outros 28% só usam o hormônio na hora agá de comer e 27% aguardam o fim da refeição.

Vamos reconhecer que existe um obstáculo. A insulina rápida exige que o sujeito planeje com exatidão de quantas colheres de cada prato  irá se servir para, então, calcular a quantidade do hormônio a ser aplicada. É difícil fazer isso quando as travessas estão bem à sua frente. 

"O ruim é que, desse jeito, a glicemia pós-prandial, aquela logo após as refeições, fica muito alta. Por mais que a insulina seja rápida, aplicada bem na hora de comer ou, pior, em seguida, ela não tem tempo para agir", explica Couri. "E essa glicemia elevada após as refeições é que está mais associada ao risco de problemas no coração.'

Erro 4: fazer da hipoglicemia um tabu no consultório

De acordo com a pesquisa, 13% das pessoas não comentam se, por acaso, tiveram hipoglicemia durante a consulta. Mas 24% dizem que o médico também não pergunta. E fim de papo.

Erro 5: Não ser um pouco mais imediatista

Repare, 67% das pessoas têm medo da cegueira, 57% têm pavor da ideia de amputação dos membros, 52% receiam  problemas nos rins — e, sim, o excesso  de açúcar no sangue pode causar tudo isso a longo prazo. Mas fique esperto: a hipoglicemia tem efeito imediato, que vai da sonolência derrubando a produtividade no trabalho ao acidente de trânsito, passando pelo desmaio na rua e, claro, ao risco de morte. 

Erro 6: Não usar um cartão de identificação

Isso deveria ser o básico 1. Se você cair na rua, todos à sua volta deverão ter como saber que tem diabetes e o que precisam fazer para prestar o socorro correto, sem perder tempo até o cérebro convulsionar. Mas 69% dos diabéticos entrevistados não têm a tal carteirinha e 8% até têm essa identificação com orientações, mas não andam com ela por aí. Portanto, dá na mesma.

Erro 7: Buscar doçura na coisa errada

Quando a glicose tomba é preciso devolvê-la ao corpo depressa, sem criar a oportunidade para o cérebro entrar em pane.  O jeito mais eficiente é morder um sachê de acúcar líquido, encontrado em farmácias. "Todo diabético deveria levá-lo  consigo", aconselha o doutor Couri.  E 14% — muito pouco! — têm esse hábito. 

Já o restante, a maioria, pisa na bola. Chocolate, por exemplo, tem muita gordura na receita e ela vai retardar a absorção do açúcar no aparelho digestivo — 68% dos entrevistados, porém, disseram que comeriam esse ou outro doce. 

Chupar bala, pela lentidão com que derrete na boca, pode ser uma perda de tempo fenomenal — e 57% falaram que colocariam uma balinha na boca ao se sentirem em apuros. Suco de fruta? É a saída para 31% dos entrevistados. "Mas o suco sempre tem fibras e elas também retardam a absorção do açúcar", avisa Couri. 

Na falta do sachê, o refrigerante convencional seria uma opção melhor e 41% dos diabéticos se lembraram dele. Atenção: não vale light nem diet,  a escolha errada de 3% dos participantes. Chamar a ambulância? Correr ao médico? Foram outras atitudes que apareceram nas respostas. Mas fique claro:  em uma crise brava de falta de glicose, não dá tempo.

Erro 8: Confiar que basta ter glucagon por perto

O glucagon é outro hormônio produzido pelo pâncreas, só que tem um efeito oposto ao da insulina. Isto é, ele libera as reservas de açúcar no fígado. "E, de fato, resolve a hipoglicemia no mesmo instante", admite o doutor Couri.

O obstáculo é que se encontra em pó, o qual precisa ser misturado a um líquido e colocado na seringa.  "Geralmente zonza, a pessoa com hipoglicemia não dá conta dessa tarefa", observa o médico. A não ser que haja alguém em casa que tenha sido treinado para aplicar esse hormônio. Mas isso remete a outro problema…

Erro 9: A família não ser treinada

Além de pacientes, a pesquisa de VEJA SAÚDE também ouviu 533 familiares de pessoas com diabetes. E, para ter ideia da encrenca, metade contou que não saberia agir diante de uma queda brusca da glicose. 

Tudo isso só mostra que olhamos o tempo inteiro para os famosos picos de açúcar, sem nos lembrarmos do ditado de que diz: quanto mais alto, maior o tombo. E ele machuca.

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.