O que a hashtag #MedBikini nos ensina sobre preconceito e pseudociência
Só nos últimos cinco dias, da sexta-feira passada até o fechamento desta coluna, mais de 1,6 milhão de médicas fizeram posts nas redes sociais em sua melhor versão moda praia marcando #MedBikini. Tudo bem que alguns poucos homens também publicaram fotos de sunga e usaram a mesma hashtag em apoio às colegas, mas eram minoria.
A campanha, que não para de crescer inclusive entre profissionais de saúde brasileiras, é a reação a um pretenso estudo que rotula fotos de jovens cirurgiãs de biquíni em seus perfis no Instagram, no Facebook e no Twitter como manifestações "potencialmente pouco profissionais".
A única conclusão legítima que se pode tirar de um desserviço desses é que infelizmente ainda há muito sexismo e misoginia na medicina. E, se essa ao menos fosse a intenção dos autores — não era—, seria como gastar tempo e recursos para provar que a chuva molha.
Mas, como se diz no jargão dos cientistas, há mais achados para discussão — como outros preconceitos, censura, uma incompreensão das redes sociais e, no final das contas, um exemplo dos mais bem desenhados para a gente enxergar o que é pseudociência e notar como ela pode confundir à primeira vista.
Para começar, o artigo não saiu da faculdade desconhecida na cidadezinha no meio do nada, que poderia ser honesto, mas que faria arregalar o olhar crítico. O texto já ofusca a visão porque vem da brilhante Universidade de Boston, nos Estados Unidos.
E, como se não bastasse, saiu no prestigiado Journal of Vascular Surgery. Lamento dizer, mas até o povo de Boston faz bobagem. E até revistas científicas às vezes erram e aceitam trabalhos que são ruins de doer. Sorte da ciência, azar da revista — e dos autores do disparate —, as médicas prestaram atenção e não estão deixando barato.
Gosto pessoal, opinião particular e moralismo nunca foram ciência
Para a realização do tal estudo, os autores criaram contas "neutras" no Twitter, no Facebook e no Instagram. Vamos traduzir para o bom português: perfis falsos, desses dignos de denúncia. Por trás deles, três médicos homens entre 28 e 35 anos. Fizeram isso para bisbilhotar o comportamento de 480 residentes em cirurgia vascular que se graduaram entre 2016 e 2018, sem qualquer declaração sobre como tiveram acesso a essa lista.
Descobriram que metade desses jovens médicos podia ser encontrada nas redes sociais e 26% das contas apresentavam conteúdos que seriam "claramente não profissionais" e "potencialmente não profissionais". Vem daí a primeira crítica: "Eles tiraram isso da cabeça, baseados em opinião pessoal. E, de cara, o grande problema desse estudo é a criação de critérios completamente fora do racional, algo inadmissível nas publicações científicas", diz, com clareza, o médico mineiro Bruno de Lima Naves, presidente da SBACV (Sociedade Brasileira de Angiologia e Cirurgia Vascular), que procurei por representar, no país, justamente a especialidade vítima dos pesquisadores stalkers.
O que seria um conteúdo claramente sem profissionalismo? A definição, só neste pedacinho, é justa: violar o HIPAA, sigla de Health Insurance Portability and Accountability Act, uma conquista de 1996 na legislação federal americana que garante, entre outras coisas, a privacidade dos pacientes. Ou seja, nenhuma informação sobre a saúde deles poderia vazar. E ninguém discorda que isso seria uma falta de ética condenável.
No entanto, tudo fica cinzento no que seria potencialmente não profissional: aparecer consumindo álcool; fazer comentários políticos controversos (fico matutando, contra ou a favor de quem seria controverso?), fazer comentários religiosos, de novo, controversos; abordar os temas aborto e controle de armas.
Aí fecham afirmando que também se enquadraria em comportamento pouco profissional escrever ou falar palavrão, sair na foto em trajes provocantes de Halloween (opa, isso sim é caça às bruxas!) ou ser clicado em roupas de banho, com destaque para o biquíni. Pra quê?!
"O curioso é que esses critérios, errados e cheios de moralismos, não excluem a sunga, mas os homens parecem não ter lido ou não deram bola. As mulheres, sim", observa o doutor Naves. Pergunto se talvez essa área, a da cirurgia vascular, não seria particularmente dominada por homens. "Na SBACV, são 918 cirurgiãs e 2.500 cirurgiões homens. Ou seja, a proporção está mudando aos poucos", diz ele. É, mas alguma coisa ainda pode estar faltando…
O espaço das mulheres
Tanto nas faculdades de medicina americanas quanto nas brasileiras, mais de metade dos alunos são mulheres. Mas, também, tanto lá quanto cá, o espaço mais difícil de o sexo feminino ocupar ainda é o centro cirúrgico. "Isso deve ser levado em conta na reação das médicas, já que o trabalho envolveu a área da cirurgia", nota a advogada Neila Carvalho, especializada em marketing digital pela Fundação Getúlio Vargas e criadora da Health Content, empresa dá consultoria para profissionais de saúde que querem ganhar relevância nas mídias digitais.
Nos Estados Unidos, de acordo com a Association of American Medical Colleges (AAMC), 35% dos médicos em atividade são mulheres. No entanto, nas dez especialidades cirúrgicas existentes no país, elas são menos do que um quarto. Na cirurgia ortopédica, não passam de 5%. A inversão só existe em ginecologia e obstetrícia — então as mulheres representam 57% dos especialistas. Em todas as escolas médicas americanas, por sua vez, só há 24 professoras titulares em departamentos de cirurgia.
No Brasil, olhando para a faixa mais jovem, até os 29 anos de idade, as médicas já são 57,4% dos profissionais. Mas são 8% de todos os neurocirurgiões brasileiros, por exemplo.
Vale eu lembrar a hashtag #MedBikini é, no mínimo, a segunda grande campanha de mulheres médicas nas redes sociais e a anterior, de 2015, surgiu justamente entre as cirurgiãs, cansadas de ouvir a seguinte pergunta: "quando vai chegar o médico?". A hashtag, daí, foi #ILookLikeASurgeon, algo como "eu aparento ser uma cirurgiã".
Falta de consentimento
Procurei o farmacêutico-bioquímico Rui Curi, hoje professor de pós-graduação no programa interdisciplinar em ciências da saúde da Universidade Cruzeiro do Sul e um dos pesquisadores brasileiros com maior número de citações em revistas científicas de peso. Ele logo chamou a atenção: "Os médicos cujas páginas nas redes sociais foram analisadas não assinaram o que chamamos de termo de consentimento livre e esclarecido", lembra.
O documento tem esse nome porque a pessoa precisa aceitar participar, estar livre para dizer que não quer mais e ficar completamente por dentro de tudo o que os pesquisadores pretendem fazer. "Vale para examinar uma amostra de sangue, vale para observar uma página na rede social", compara o professor Curi.
Ora, os médicos e as médicas investigados no tal trabalho não faziam a menor ideia de nada. E a falta do consentimento exclui toda e qualquer possibilidade de um trabalho ser aprovado. "A questão é que muitas revistas científicas nem perguntam pelo termo, partem do princípio da boa fé, embora sejam rigorosas", explica o professor.
Admitindo o erro, o Journal of Vascular Surgery já retratou o estudo. No "cientificês", é como se ele nunca tivesse sido publicado. O que, porém, mais 1,6 milhão de médicas de biquíni não vão deixar esquecer.
Onde se queria chegar?
O irônico é que esse número gigante de médicas postando suas fotos — muitas vezes colocando lado a lado uma imagem na praia e outra atuando em hospitais, por exemplo — só existe porque nove moças apareceram nas redes sociais usando biquíni, de acordo com o trabalho cancelado. "Um número ínfimo para qualquer conclusão, se ela pudesse ser científica", aponta o doutor Bruno Naves.
"Sem ter um grupo como controle ou referência, um trabalho não chega a canto algum", explica, ainda, o professor Curi e exemplifica:"Eles poderiam comparar médicos com profissionais de outras áreas. E, aliás, por que exigir que médicos se comportem de um modo diferente?" questiona. "Qual o problema de um brinde na folga? Problema seria se fossem trabalhar embriagados."
Os médicos nas redes sociais
Para Neila Carvalho, não faz mais sentido o médico manter um perfil público ou profissional e outro privado nas redes sociais. "Essa divisão está acabando", observa. "Cabe ao médico decidir como irá mesclar posts mais pessoais com a disseminação de informações confiáveis sobre saúde, que é uma das grandes oportunidades dessas plataformas."
O médico Bruno Naves concorda e acha até que os pacientes se identificam mais e preferem seguir os perfis híbridos, com pitadas do que seus colegas fazem no dia a dia. "É saber publicar aquilo que não será ofensivo aos seus pares e aos seus pacientes", diz ele. E, decididamente, um biquíni não é ofensivo. Muito menos é capaz de cobrir a competência das profissionais que o vestem quando não estão de jaleco cuidando da nossa saúde.
A Associação Médica Brasileira ainda não discutiu o assunto
Procurei a AMB dois dias antes do fechamento. E insisti, deixando claro que gostaria de saber se existiria uma orientação para médicos em redes sociais ou alguma iniciativa em favor das médicas. Sem contar a opinião sobre a hashtag do biquíni, já que muitas brasileiras se engajaram.
A resposta chegou por escrito e apenas na noite de ontem, após consultarem a diretoria: "Infelizmente não vamos conseguir participar dessa pauta. Desculpa a demora. A AMB não discutiu esse assunto, por isso não vai se manifestar. Não tem uma posição oficial."
Seria irresponsável eu afirmar que são coniventes com o machismo, com o sexismo ou com a perseguição em redes sociais. Só posso constatar que espantosamente não têm uma resposta na ponta da língua. E que optaram pela omissão já que ainda precisam se reunir, quem diria, para decidirem se isso tudo é certo ou errado. Enquanto uns pensam, as médicas agem nas redes e não se omitem no #MedBikini, bravíssimas doutoras.
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