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Blog da Lúcia Helena

Por que eu não confio na medida de temperatura na entrada dos lugares

Lúcia Helena

30/07/2020 04h00

iStock

Ainda prefiro ficar em casa, sentindo que a ameaça permanece do lado de fora. E nem dá para esquecê-la, se em quase todos os cantos apontam um revólver para a minha cabeça e para a de quem mais se atrever a se aproximar. Um…, dois…, três segundos bastam. Baixam a pistola e me deixam seguir. Não sinto, porém, o alívio que costumo observar no olhar sobre a máscara de quem passou pela mesma prova de fogo. 

Sendo honesta, a confiança alheia de que está tudo 100% tranquilo depois de medir a temperatura só me deixa ainda mais alerta. No contexto da covid-19,  o uso do termômetro na entrada dos mais diversos locais — aviões, hotéis, escritórios, comércios, academias… — não passa de teatro. Digo mais: o dispositivo que mede a calorosa radiação infravermelha do corpo, empunhado por aí feito uma arma de segurança, pode é nos dar um belo tiro no pé.

Medir a temperatura está se tornando algo bem normal no tal do novo normal. "Mas é mesmo um mito", concorda a infectologista Sylvia Lemos Hinrichsen, professora titular da Universidade Federal de Pernambuco. Considerada entre seus pares da Sociedade Brasileira de Infectologia como uma das maiores consultoras em biossegurança, controle de infecções e riscos do país, ela é uma criatura ensolarada, que entende a ansiedade das pessoas para escapulir da clausura. 

Aliás, o que mais a professora Sylvia estuda no momento são as estratégias para que o povo possa sair do confinamento de um jeito menos arriscado. "Só que, nessa história, o termômetro não ajuda", diz ela. "Primeiro,  80% dos infectados são assintomáticos ou têm sintomas leves, que não incluem necessariamente a febre ", fala, refrescando a nossa memória. "Também escapam do termômetro os pré-sintomáticos." Uns e outros, na maior cabeça fria, todos podem transmitir o novo coronavírus. 

Gente sem febre, "muito saudável", mas que esbanja coronavírus

No instante em que invade uma célula e domina a sua maquinaria de reprodução, o Sars-CoV 2 ordena que se inicie a produção em massa de suas réplicas. Quanto tempo uma pessoa infectada demora até ser capaz de passar esses vírus a outra? – perguntei à professora Sylvia. "Não demora. É possível que, no primeiro dia, ela se torne transmissora", ouvi. Logo nas primeiras 24 horas já são dezenas de milhares de cópias do novo coronavírus em seu organismo.

Só que pelo menos quatro em cada dez infectados não apresentarão nem sequer um único sintoma. Daí saem pelas ruas acompanhados desse serial-killer,  passando a batata quente adiante. E, se nunca vão apresentar sintomas, continuarão com o trânsito livre pelos mais diferentes lugares no que depender do termômetro na porta de entrada.

Gente sem febre, que ainda não sente nada. Ainda…

Os cientistas usam a expressão transmissão silenciosa — é quando o novo coronavírus passa sorrateiramente de um organismo sem dar sinais da infecção para os outros. Não só os assintomáticos contribuem para isso. Existem aqueles que continuam serelepes pelas ruas, soltando baforadas de coronavírus, nas vésperas de caírem de cama sentindo-se mal.

Nos Estados Unidos, o CDC (Centers for Disease Control and Prevention)  recomendou que todos os estabelecimentos e prédios comerciais se equipassem com o termômetro de infravermelho. Ouviu duras críticas de infectologistas e pesquisadores por isso. Hoje, porém, o mesmíssimo CDC estima que 40% das transmissões ocorram em um período antes de o paciente sintomático se sentir adoentado.

Portanto, a pistolinha na testa  libera o sujeito que está até aquele momento sem febre e não ajuda a evitar os 40% de novos infectados. Nesse contexto, é um brinquedo inútil.

Gente com sintomas, mas sem febre

A febre, dizem, é bastante comum entre os que manifestam sintomas da infecção pelo novo coronavírus. Já foi apontada, aliás, como o sintoma mais frequente. Uma baita meta-análise com 1.995 casos confirmados de covid-19 na China aponta que 89% dos pacientes ficaram com a testa pegando fogo. 

Mesmo assim, a febre nunca apareceu na quase totalidade dos casos para a gente botar tanta fé no termômetro e — piorando — , muitas vezes a temperatura subiu quando a pessoa já estava internada. Isso porque, de acordo com o mesmo estudo, na entrada do hospital, apenas perto de 50% dos pacientes estavam febris. A outra metade tinha outros sintomas e passaria de boa pelo teste do infravermelho. 

Em Nova York, aclamada como epicentro da pandemia nos Estados Unidos, a febre surgiu em apenas 64% dos profissionais de saúde que pegaram a covid-19.

Já um levantamento na Europa com pacientes que apresentaram quadros brandos e moderados da doença acusa a temperatura alta em apenas 45% dos pacientes. Logo os outros 55%…

Os australianos acabam de botar mais lenha nessa fogueira. Eles tomaram a temperatura em 86 pacientes com suspeita de covid-19 no momento em que fizeram o teste. Assim, descobriram que somente 16 deles estavam com febre. Um número baixo perto de outros países, o que, segundo os autores, pode ser explicado pelo fato de a Austrália apresentar uma quantidade menor de quadros severos da doença.

No entanto, o mais curioso é que, no dia seguinte, os pesquisadores voltaram a apontar o termômetro para os pacientes e 18 deles estavam febris. Duas pessoas a mais, que na véspera estavam com a testa fresquinha. 

"Isso só demonstra mais uma vez que o termômetro não é o melhor caminho para indicar quem pode estar infectado", comenta a professora Sylvia. "Sem contar que alguém pode dar entrada com febre por causa de uma gripe ou de outra doença qualquer que não seja a covid-19", complementa.

Saiba quem, no geral, tem menor probabilidade de ficar com febre

Pelos estudos, existem três grupos que, uma vez infectados, podem escapar da triagem feita pelo termômetro. Crianças, adolescentes e jovens adultos formam um deles. É que essa faixa etária concentra os casos que são completamente assintomáticos.

"Os outros dois grupos juntam aqueles que são justamente os mais vulneráveis à covid-19", explica a professora Sylvia. "Eu me refiro a indivíduos acima dos 60 anos. Com o passar da idade, a tendência é a pessoa fazer cada vez menos febre por qualquer doença e a covid-19 não é exceção", diz ela. "E temos ainda os imunossuprimidos, como os pacientes em tratamento de câncer, para citar um exemplo." Esses grupos, portanto, apresentam maior probabilidade de, mesmo infectados e transmitindo o vírus, não terem alterações de temperatura.

De onde veio essa ideia de todo mundo usar o termômetro

A estratégia de medir a temperatura da população pelas ruas fez todo o sentido na epidemia causada pelo Sars-CoV 1 na China, em 2002. Mas a infecção provocada pelo antecessor do novo coronavírus era diferente, porque fazia o corpo arder em 86% dos episódios e não era transmitida com tanta facilidade durante a fase de incubação. 

Aí, usar o termômetro era um jeito rápido, barato e eficaz de barrar a transmissão da doença. E, assim, quando surgiu a covid-19, as autoridades em saúde pensaram que ela se comportaria do mesmo jeito. Só que não. Há uma proporção bem maior de doentes sem febre e pode ser passada adiante por assintomáticos.

Também podem acontecer erros de interpretação

O termômetro de infravermelho tem uma vantagem e tanto nesses tempos: não precisa encostar em ninguém para entregar a temperatura. Nosso corpo, como tudo o que é quente, tem partículas em movimento que aceleram quanto maior for a temperatura. E, por sua vez, quanto mais se mexem, mais emitem raios infravermelho.

O dispositivo que lembra um revólver tem lentes que, apontadas para a sua testa,  focam essa radiação para que ela alcance e esquente um detector dentro dele. Esse calor é convertido em eletricidade e outro detector traduz os sinais elétricos em temperatura. Espetacular. Mas alguns cientistas dizem que essa tecnologia capta melhor a temperatura da pele, que é mais instável. Se alguém sai caminhando sob o sol, o resultado no dispositivo pode ser uma temperatura mais alta do que ela está de fato.

Os quatro pilares para sair com segurança

"O problema é que pessoas se sentem enganosamente seguras quando entram em um lugar onde acham que todo mundo ali dentro não tem o vírus", resume  Sylvia Lemos Hinrichsen. "Daí, abrem mão de quatro pilares essenciais para protegê-las."

Segundo a infectologista, o primeiro deles é higienizar a todo instante as mãos, especialmente se você está fora de casa. O segundo é usar máscara o tempo inteiro e evitar, inclusive, sair comendo pela ruas — ora, o que a gente mais vê são pessoas consumindo alimentos e bebidas em calçadas, tirando o pano do rosto. "O certo  é pegar o seu lanche para viagem e levá-lo para casa ou para um canto reservado do escritório", orienta.

O terceiro pilar é evitar ambientes cheios de gente. "De preferência, fique naqueles onde estejam reunidas só duas, três ou quatro pessoas de cada vez, conforme o espaço", ensina. E finalmente, procure manter o maior distanciamento físico  tanto nos espaços públicos quanto na firma, no restaurante, onde for. No mínimo, 1,5 metro de distância é o ideal.

Tudo isso é muito chato? É. Mas é também o que temos para hoje. "A vida não espera, por isso devemos ser felizes apesar das limitações, nos acostumando a essas novas exigências", opina Sylvia Hinrichsen.  "Está louco em casa? Se der, pegue o carro e dê uma volta. Precisa visitar algum lugar? Então, tome esses quatro cuidados", sugere.

É isso, lembrando que somos responsáveis por todos os que cruzam os nossos caminhos literalmente. Não se descuide por nada. Muito menos por causa do que vê o termômetro marcar na sua testa ou na dos outros. 

 

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.