Blog da Lúcia Helena http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. Fri, 25 Sep 2020 16:13:32 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Os enganos que você pode cometer se tem alguém com covid-19 em casa http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/09/22/os-enganos-que-voce-pode-cometer-se-tem-alguem-com-covid-19-em-casa/ http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/09/22/os-enganos-que-voce-pode-cometer-se-tem-alguem-com-covid-19-em-casa/#respond Tue, 22 Sep 2020 07:00:29 +0000 http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/?p=9386

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Chega o diagnóstico de infecção pelo novo coronavírus e a casa cai. Se a pessoa não tem indicação para ser internada porque passa bem, como se nada estivesse acontecendo com ela, ou se fica no seu canto porque tem sintomas brandos que podem ser administrados fora de um hospital, é um alívio para todos — e, ao mesmo tempo, uma confusão geral. O que fazer? Todo mundo acha que sabe a resposta até a hora em que o bicho pega. 

A confusão pode começar no instante da suspeita de ter contraído o vírus. “Só o exame de RT-PCR, realizado com aquela espécie de cotonete comprido enfiado pelo nariz, é capaz de dizer se alguém está mesmo com a covid-19”, vai logo avisando a infectologista Raquel Stucchi, que é professora da Universidade Estadual de Campinas, no interior paulista, e consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia.

Na opinião da médica, não é para ninguém morrer de susto nem, ao contrário, sair confiante se o exame realizado foi o de sorologia. “Ainda estamos na primeira geração desses testes de anticorpos e eles continuam dando muito falso-positivo e muito falso-negativo” , justifica. 

Daí que covid-19 confirmada pra valer é aquela em que o RT-PCR acusa rastros do material genético do Sars-CoV 2 no organismo.  “E, diante de um caso assim, o correto seria que todas as pessoas vivendo sob o mesmo teto fizessem esse exame também” , diz a médica.

Tem lógica. A probabilidade de alguém de casa já ter o novo coronavírus é alta. Ele, afinal, não está para brincadeira e começou a ser transmitido três, cinco dias antes de o sujeito com a covid-19 confirmada apresentar sintomas, se é que os apresentou. 

Mas vamos imaginar que, por sorte, só uma pessoa na família esteja infectada: “No mundo ideal, ela ficaria imediatamente em um quarto sozinha, com um banheiro para si. Mas sabemos que as condições de moradia são muito diversificadas e isso quase sempre é impossível”, reconhece Raquel.

Seja como for, e o restante dos moradores? Sem pisar na rua, oras!  Mesmo que eles tenham um resultado negativo do RT-PCR em mãos. Isso porque, enquanto a pessoa infectada se recupera, sempre pode acontecer a contaminação de quem está por perto, embora esse risco caia se tudo é feito como manda o figurino da pandemia. 

No entanto, o que mais se vê é gente cometendo pequenos deslizes que liberam o Sars-CoV 2 para fazer a festa no endereço. E essas falhas são um perigo ainda maior quando, entre os habitantes da moradia, existem diabéticos, hipertensos, indivíduos com obesidade e idosos. Se alguém está relativamente bem apesar de infectado, nem todos ao redor poderão ter a mesma sorte.

Isolamento: a partir de quando a gente começa a contar?

Ter ou não ter sintomas não faz qualquer diferença. Nesse ponto, todos são iguais perante o novo coronavírus. Se o indivíduo está tossindo, com ligeira falta de ar e com dores de cabeça, se o corpo parece moído e se há febre, se deixou de perceber cheiros ou se sente maravilhosamente bem, pouco importa: são sempre dez dias no maior isolamento e ponto. ”Isto é, se ele não tiver alguma condição que o obrigue a usar medicações capazes de suprimir suas defesas, como pacientes de certas doenças reumatológicas e transplantados”, ressalva a infectologista. “Daí, então, o isolamento dura vinte dias.” 

Dez ou vinte dias, aceite. “Pode pegar um livro, ligar o computador, trabalhar e estudar, se está disposto. Só o que não pode, de preferência, é sair do quarto”, orienta a professora Raquel.

A contagem dos dias de isolamento começa a partir do primeiríssimo sintoma. Já para quem não sentiu nadinha e descobriu a covid-19 por acaso, depois de entrar em contato com uma pessoa infectada e fazer o exame, o cronômetro é acionado a partir da data em que coletou a amostra para o RT-PCR.

A rigor, o restante dos moradores que o Sars-CoV 2 colocou de castigo só poderá sair quando a pessoa infectada estiver liberada.“Nesse meio-tempo, o ideal é eleger um único indivíduo com teste negativo para fazer compras emergenciais no mercado ou na farmácia. Ou, ainda, para descer até uma portaria ou ir até o portão para apanhá-las”, explica a infectologista. 

Para a turma isolada, a máscara certa é a cirúrgica

Importante: a pessoa não infectada que, excepcionalmente, precisar atravessar a porta de casa, deverá estar vestindo uma máscara cirúrgica. Não se trata da famosa N95, modelo que, de fato, deve ficar reservado aos profissionais de saúde. “Mas também não é a máscara de tecido comum, que todos nós passamos a usar no dia a dia”, aponta a professora.

As fibras com que são feitas as versões cirúrgicas são um obstáculo muito maior ao novo coronavírus.“Por isso, quem está infectado deve vestir essa máscara sempre que outra pessoa entrar, igualmente de máscara cirúrgica, em seu quarto”, diz a professora Raquel. “Depois, quando estiver sozinho, poderá até tirar.  Também deverá usá-la se quiser ir a um banheiro que seja compartilhado e, claro, ficar com ela o tempo inteiro se não houver um espaço para estar completamente isolado, sendo obrigado a permanecer em cômodos com mais gente.”

A máscara cirúrgica, diga-se, está sendo distribuída em todas as Unidades Básicas de Saúde quando há um diagnóstico de covid-19 — para o paciente e para quem convive com ele. Ela é descartável e, se usada ininterruptamente, dura de seis a quatro horas. Então, é para ser colocada em um saquinho plástico e este deve ser depositado no lixo do banheiro, por ser um ambiente de onde ninguém sai — espera-se! — sem lavar bem as mãos. 

O problema é a umidade, que faz a máscara cirúrgica perder a eficiência. Ou seja, quem mora em locais muito úmidos não deve arriscar todo esse tempo para trocar o acessório. “Idem, quem acaba falando demais porque está trabalhando durante o isolamento”, exemplifica a médica. “Aí, o tempo máximo de uso da máscara cirúrgica gira em torno de umas três horas.”

Como fica a limpeza do lugar

Segundo Raquel Stucchi, se a pessoa infectada está disposta, ela bem que poderia cuidar da higienização do seu quarto, evitando o entra-e-sai de pessoas. “Basta fazer essa limpeza uma vez por dia”, ensina. Maçanetas, botões de descarga, torneiras de pias e chuveiros merecem um cuidado especial.

Para isso, serão necessários panos e um desinfetante. Qual? “Qualquer um que você encontre no supermercado e que alegue ser desinfetante no rótulo”, simplifica a médica.

Mas, se outro morador entrar para limpar tudo, ele deverá usar não apenas a máscara — sempre! — como luvas. Atenção para o detalhe: “Elas, depois, deverão ser lavadas. Faça isso como se você estivesse lavando as mãos, só que enluvadas, por 20 segundos, realizando todos aqueles movimentos para limpar bem cada área”, ensina a professora Raquel.

Outro aviso: o pano usado na limpeza do ambiente onde está o morador infectado deve ir direto para um balde com água e sabão ou para máquina de lavar, sem ser esfregado em nenhum canto pelo caminho. Depois de lavado e estendido no varal, quando já estiver bem seco, poderá ser usado mais vezes, inclusive em outros lugares da casa.

Uma poltrona para chamar de sua

Se não existe um local para a pessoa infectada se isolar dos outros, então fica o convite para ela escolher um canto exclusivo: por exemplo, uma poltrona da sala e, se for comer à mesa, deve procurar se sentar sempre no mesmo lugar.

“Essas áreas, no caso, precisam de limpeza duas vezes ao dia”, conta a Raquel Stucchi. E o certo, então, é que o banheiro compartilhado com os familiares seja higienizado a cada uso — de novo, com zelo dobrado nas maçanetas, na descarga e na torneira da pia. “Eu ensino os pacientes a ensaboá-la bem e deixar a espuma ali enquanto lavam as próprias mãos, para então enxaguarem tudo de uma vez”, comenta a médica.

Não custa reforçar: se quem tem a covid-19 precisa circular pelos cômodos, aí mesmo é que ninguém deve encostar as mãos na boca, nos olhos e nem sequer no nariz. Também se aconselha que todos passem o álcool em gel mais vezes, friccionando esse produto entre os dedos e fazendo uns bons movimentos circulares punhos, antes de esparramá-lo pelos antebraços.

E copos, louças, talheres?

Não, você não precisa separar pratos, garfos e facas para a pessoa que está com a covid-19, muito menos comprar descartáveis. Sossegue: o Sars-Cov 2 não suporta um detergente de pia no capricho. Lavou bem o copo, colocou no escorredor e… está novo. “Qualquer um poderá beber nele depois”, assegura a infectologista.

Roupas e lençóis: aqui tem um cuidado

Vale repetir: o Sars-CoV 2 odeia uma boa espuma. Portanto, não resiste ao sabão de lavar roupa, seja em pó ou líquido. “E, a não ser que aconteça algum incidente, como sujar de vômito ou de fezes, ninguém precisa trocar o jogo de cama ou de banho com maior frequência do que a habitual”, diz a professora Raquel. 

O único senão é aquela sacudida no pano que algumas pessoas dão, ao retirar os lençóis da cama ou ao tentar dobrá-los para levá-los à área de serviço. Pare com isso já! Essas manobras aéreas, dignas de propaganda de sabão, são ótimas para espalhar o novo coronavírus.

Procure deixar as janelas escancaradas

Estudos indicam que essa atitude simples também faz diferença, inclusive — ou principalmente — no quarto da pessoa em isolamento, se o clima permitir. Quanto mais o ar circular, menos o novo coronavírus ficará pairando por lá, à espreita de novas vítimas.

A volta à vida normal 

Não há necessidade de fazer novos testes passado o período de isolamento prescrito, garante a professora Raquel Stucchi. Mas, sinto dizer, se mais tarde outra pessoa da mesma residência ficar com covid-19, será como em um jogo de tabuleiro em que todos voltam umas dez casas: isolamento no lar, doce lar, outra vez. 

“Vale eu lembrar que existem cada vez mais comprovações de ser possível uma reeinfecção”, alerta a infectologista. Em outras palavras, não é porque alguém pegou a covid-19 e se recuperou que poderá perambular por ruas sem máscara e promover aglomerações. Isso é irresponsabilidade consigo e com o outro.

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Nervoso, sono e a própria covid-19: por que a dor crônica piora na pandemia http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/09/17/nervoso-sono-e-a-propria-covid-19-por-que-a-dor-cronica-piora-na-pandemia/ http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/09/17/nervoso-sono-e-a-propria-covid-19-por-que-a-dor-cronica-piora-na-pandemia/#respond Thu, 17 Sep 2020 07:00:59 +0000 http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/?p=9346

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Enquanto o novo coronavírus apronta, há um outro mal que cresce em paralelo e, no entanto, ainda parecemos insensíveis a essa situação, embora ela seja das mais penosas e gravíssima quando nada consegue aliviá-la. É capaz de deixar o corpo esmigalhado, arrasar com humor, destroçar a produtividade e acabar com o descanso do cidadão ao pé da letra, isto é, roubar-lhe o sono.

A contrapartida também é dura: a falta de noites bem dormidas, para dar um exemplo, agrava de vez problema, assim como o nervosismo e a ansiedade. É um sofrimento piorando o outro. Antes da covid-19,  esse era o calvário de 28% da população mundial — sim, até então, quase um terço da humanidade padecia de dor crônica.  E agora, apostam especialistas, tudo leva a crer que essa proporção já seja bem maior. Legado doloroso da pandemia.

No final de julho, cientistas de dez respeitáveis instituições europeias, americanas e canadenses publicaram na revista da Associação de Anestesistas do Reino Unido um consenso sobre como lidar durante o distanciamento social com o possível agravamento de dores persistentes  — das de cabeça às lombalgias. 

No entanto, cutucão mais forte veio de uma revisão parruda recém-publicada na Pain, a revista da Associação Internacional para o Estudo da Dor. Os autores — de universidades da Alemanha, dos Estados Unidos e do Canadá — não falam apenas de dores pré-existentes que devem estar à beira do insuportável. Eles apontam para a forte possibilidade de o mundo ter ganhado novos sofredores, pessoas que se tornaram portadoras de uma dor crônica no período da quarentena. Entre elas, inclusive, aquelas que se recuperaram da covid-19 e que ganharam esse padecer como suvenir da infecção pelo novo coronavírus.

“O cenário da pandemia proporciona o aumento de casos”, concorda o neurologista Rogério Adas, que é coordenador do Grupo de Dor do Hospital Santa Catarina, em São Paulo. 

O que seria uma dor crônica

A ideia que fazemos de uma dor é a de um alarme— algo de errado acontece e ela soa. “O canal de um dente inflama, isso produz substâncias que ativam determinados receptores e eles disparam uma mensagem que segue pelos nervos até o cérebro, onde a sensação dolorosa é decodificada e você a percebe”, simplifica o doutor Adas. 

Algo semelhante acontece se você berra por causa de uma apendicite, pisa em um caco de vidro, encosta a mão na panela quente… Se não fosse a dor, o tal dente cairia podre sem você procurar o dentista, o apêndice poderia supurar sem ninguém levá-lo a um hospital, você não afastaria o pé do vidro nem a mão da panela quente. 

Mas a dor crônica é um martírio inútil, não que avisá-lo de nada. “O fator que a desencadeou, se existiu, nem está mais lá. Não conseguimos enxergar a sua causa exata”, diz Adas. Mas ela insiste: arde, pinica, fisga, lateja.

Por definição, para ser crônica uma dor precisa durar mais de três meses. Definição esquisita porque é vaga, afinal pode doer todo dia ou não. “Por isso, é importante incluir nesse critério se ela tem um impacto psicossocial”, complementa o neurologista. Ou seja, se ela lhe tira do sério ou acaba com a sua alegria. Aliás, é o que acontece pra valer com muitos portadores.

De acordo com pesquisadores da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, 16% dos pacientes com dores crônicas se irritam por qualquer bobagem no dia a dia. O sofrimento constante está associado a uma perda de 5,4 horas de produtividade no trabalho por semana e quase metade desses indivíduos, ou 49%, acorda incomodado no meio da madrugada.

A região lombar e a cervical estão entre os alvos mais comuns dessas dores famigeradas, ao lado de atordoantes enxaquecas e outras cefaleias. Problemas articulares — as amaldiçoadas artrites e as artroses  — também provocam muitos  desses “ais”. A fibromialgia, que deixa o corpo todo dolorido,  entra nessa categoria. Mas um quarto das condições crônicas são dores neuropáticas, quando os nervos disparam sinais do nada, como se só quisessem provocar sofrimento. Uma em cada dez mulheres amargam uma neuropatia.

“Às vezes, as neuropatias têm como estopim uma doença, como o diabetes ou o herpes”, conta o doutor Adas. “Mas a causa também pode ser um trauma. Existem pessoas que passam a conviver com uma parede abdominal eternamente doída após uma cirurgia simples, como uma cesárea. Isso é muito pouco comentado e é uma dor difícil de tratar”, exemplifica o médico. Então, a vítima fica pulando de consultório em consultório sem obter alívio.

No cérebro, não importa o tipo de dor crônica, o que os exames acusam é uma espécie de desorganização em sua atividade elétrica. E, entre outros fenômenos, essa atividade diminui bastante em redes de neurônios que os cientistas chamam de monoaminérgicas. Ah, que diferença isso faz…

Dor, ansiedade, insônia, mais dor e, pra piorar tudo, a pandemia

As tais redes mono-aminérgicas estão envolvidas com neurotransmissores que nos trazem um alívio danado — eu me refiro à famosa serotonina ligada ao bem-estar, à dopamina e à noradrenalina. E essas redes vão na contramão dos sinais dolorosos que sobem à cabeça, filtrando-os pelo caminho.

A todo instante, o organismo envia mensagens de dor por coisas bestas. Mas, naquela comparação com um alarme, é como se as tais redes mono-aminérgicas baixassem o seu volume a ponto de o cérebro não ouvir queixas tolas. Daí, a gente não sente nada. Mas em quem não tem esse sistema funcionando direito qualquer dorzinha vira um martírio. E diversas regiões do corpo podem sofrer à toa. 


“O paciente, então, deixa de dormir direito. Não encontra posição na cama ou a dor é mais forte que o sono”, continua Rogério Adas. “O problema é que a insônia vai atrapalhar ainda mais a produção daqueles neurotransmissores que diminuiriam a sua dor.” Ou seja, de madrugada em claro em madrugada em claro, a sensação dolorosa vai se tornando mais forte e mais presente. Dormir seria um remédio. Mas o sofredor não tem condições de seguir essa prescrição.

De quebra, a falta de repouso leva ao nervosismo e ao estresse no dia seguinte. E esse estado de espírito favorece a ansiedade. A ansiedade, por sua vez, com os neurotransmissores por trás dela,  é mais um fator dificultando a chegada do sono. ‘’É um pacote, tudo vem junto”, garante o doutor Adas. “É por isso que, muitas vezes, tratamos as dores crônicas com antidepressivos.”

De fato, no cérebro a dor envolve as mesmas áreas e as mesmíssimas substâncias que modulam o humor e o sono. Por isso, não é coincidência ser tudo junto e misturado. “Eu diria que a dor é mais do que uma sensação física, ela é também uma emoção. Isso não é poesia, nem figura de linguagem. É pura neurobiologia”, assegura o médico.

Os especialistas nesse assunto falam na tríade dor, ansiedade e sono ruim. E é por causa dela que receiam os efeitos da pandemia  — ora, o que não falta é gente com dificuldade para dormir e temendo se tornar mais uma vítima do novo coronavírus. O circo da dor está armado. E não tem graça alguma.

As dores de antes se tornando mais fortes agora

“No sistema nervoso central, o medo — seja o de ficar doente, o de morrer, o de perder o emprego por causa da crise atual —,  envolve áreas e neurotransmissores capazes de ampliar a experiência de uma dor”, explica Adas.

No artigo publicado na Pain, os cientistas reconhecem que, apesar do pânico gerado pelo ataque terrorista, não houve um aumento de queixas de dores crônicas entre os nova-iorquinos após o 11 de setembro da queda das Torres Gêmeas. Mas eles insistem que agora é diferente — metaforicamente, caem Torres Gêmeas todos os dias — e há meses. Mais: quem já tinha algum problema doloroso muitas vezes não está dando continuidade ao tratamento, que deve ser multidisciplinar, envolvendo médicos, fisioterapeutas, psicólogos e profissionais de educação física.

Aliás, aqui está mais um fator que pode levar a agravamentos de dores pré-existentes: confinadas em casa, as pessoas vêm praticando menos atividade física. “E, na maioria das vezes, ela faz parte da estratégia de tratamento, induzindo a produção dos neurotransmissores que, ao mesmo tempo, agem feito analgésicos naturais, chamam o sono e baixam a ansiedade”, justifica o neurologista.

Dores nascidas na pandemia

A enxurrada de substâncias relacionadas ao estresse na circulação e, novamente, a falta de sono adequado na pandemia vêm sendo apontadas como uma dupla capaz de deflagrar dores crônicas nesse período pelos estudos que surgiram nos últimos dois, três meses. Um deles, realizado na Universidade de Soroka, em Israel, com 206 enfermeiras, concluiu que nada menos do que 9,7% passaram a apresentar sintomas de fibromialgia após a temporada na linha de frente. 

E nunca podemos deixar de lado a depressão, que também cala os nossos analgésicos naturais. Estudos preliminares indicam um crescimento que varia de 14% a 28% na prevalência dessa tristeza sem fim. A falta de convivência social contribui para isso. No Brasil, um levantamento de Universidade do Estado do Rio de Janeiro mostra uma realidade mais cruel: aqui, a depressão teria praticamente dobrado. “Podemos, infelizmente, esperar muitas dores pela frente”, observa Adas.

O próprio Sars-CoV 2 é um gatilho

Qual a novidade disso? Não é de hoje que viroses agudas são relacionadas a dores que chegam para ficar. Um trabalho pequenino realizado pela Universidade de Toronto, no Canadá, com 22 profissionais de saúde que contraíram Sars na epidemia de 2002, na China, mostrou que 21 deles, maioria absoluta, manifestaram dores musculares e de cabeça até dois anos após a  recuperação.

Os estudos sobre os impactos dolorosos do novo conoravírus engatinham. Mas investigações mundo afora sobre outras viroses que exigiram internação na UTI apontam que de 38% a 56% dos sobreviventes sentem alguma dor que reaparece de tempos em tempos até quatro anos após a hospitalização e que não existia antes.

“A explicação, em parte, tem a ver com os danos que essas viroses mais graves causam em vários tecidos do corpo. Eles seriam o estopim de dores que continuam após a própria infecção ter ido embora”, diz Adas. “Além disso, muitos pacientes apresentam estresse pós-traumático depois de um bom período na UTI.” Sim, e 15% desenvolvem depressão.

Qual o alívio então?

Automedicação é roubada. Segundo Aras, o maior erro é tentar lidar com uma dor crônica com o mesmo raciocínio — e receita do vizinho — usado para encarar uma dor aguda. Tirando aqueles analgésicos velhos de guerra vendidos sem prescrição — mas que podem aliviar pouco em uma situação dessas —,  uma medicação equivocada transforma uma dor que iria embora em dor crônica.”Antiinflamatórios podem piorar o quadro”, exemplifica o neurologista.

O que fazer? Rogério Adas é direto: “Buscar ajuda. Se não há um especialista em dor ao alcance, encontrar um clínico geral, um reumatologista, um geriatra…”.  Quem se sente deprimido ou ansioso deve procurar profissionais que tratem essa condição.

A atividade física é mandatória para aqueles que não estão com o corpo travado de vez.. E, claro, procure não brigar com o travesseiro. Mas saiba: do mesmo modo como ansiedade, dor e sono ruim andam de mãos dadas, ao resolver um desses três fatores, você estará aliviando ou até mesmo solucionando os outros dois. O que não dá, porém, é para sofrer calado esperando a pandemia passar.

 

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Já que se fala tanto em vacinas, já viu se está em dia com a da meningite? http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/09/15/ja-que-se-fala-tanto-em-vacinas-ja-viu-se-esta-em-dia-com-a-da-meningite/ http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/09/15/ja-que-se-fala-tanto-em-vacinas-ja-viu-se-esta-em-dia-com-a-da-meningite/#respond Tue, 15 Sep 2020 07:00:01 +0000 http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/?p=9320

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Manter a carteira de vacinação em dia é o que podemos fazer para impedir que, ao trem-fantasma da pandemia de covid-19, se some uma explosão de doenças que, se a gente der bobeira, poderão voltar com tudo. Elas são imunopreveníveis e esse adjetivo já indica o caminho para evitar o pesadelo: preparar o nosso sistema de defesa para enfrentá-las. 

Deixar de tomar essa atitude, ou melhor, deixar de tomar vacina é comprar ingresso para um festival de horrores protagonizado por paralisia infantil, difteria, sarampo e muitos outros males. Mas talvez um dos mais temidos seja a meningite. Pudera: ela pode ser disseminada por gotículas expelidas pela respiração, por tosses e espirros soltos por alguém passando ao seu lado, por beijos e abraços em pessoas contaminadas, mas que não necessariamente  ficarão doentes. Já ouviu uma história parecida? Só que, neste caso, existe vacina. 

A meningite é assustadora porque aparece do nada. Aliás, em teoria, pode aparecer em qualquer um, mas na prática ocorre principalmente em crianças e jovens com menos de 25 anos que estavam absolutamente saudáveis e serelepes. Confunde todo mundo com sinais iniciais parecidos com os de uma gripe se aproximando. Só que a diferença é fatal: em alguns casos, ela mata sem mais, nem menos, em 48 horas no máximo. 

Mas há uma boa novidade e ela foi menos alardeada do que merecia, pelo tamanho da ameaça que ajuda a riscar do nosso mapa: desde junho, o SUS oferece aos adolescentes de 11 e 12 anos a vacina meningocócica conjugada ACWY. Cada uma destas letrinhas corresponde a um grupo de bactérias Neisseria meningitidis. “Elas não as únicas causadoras de meningite. Mas, hoje, são as mais preocupantes”, justifica o infectologista pediátrico Marco Aurélio Sáfadi, presidente do Departamento de Imunizações da Sociedade de Pediatria de São Paulo.

Afinal, o que causa uma meningite?

O termo meningite aponta para uma inflamação nas três membranas que embrulham todo o cérebro e a medula espinhal para protegê-los. Elas são a dura-máter — a mais externa de todas —, a aracnoide e a pia-máter. O espaço entre uma e outra é preenchido por um líquido viscoso que ajuda no amortecimento, caso você se acidente, por exemplo, e leve uma bela pancada na testa. 

O problema é que, quando tudo está inflamado, não só as membranas incham como o volume desse líquido aumenta. E, como não dá para escapar do confinamento da caixa craniana, o sufoco interno cria a sensação de que os miolos vão estraçalhar os ossos da cabeça.

Diversos fatores podem inflamar o trio de meninges — às vezes até certos remédios e tumores que acometem o sistema nervoso. “A lista de agentes infecciosos, porém, é disparadamente maior, a começar por uma gama enorme de vírus, como o do herpes e os enterovírus, que são de longe os principais causadores das meningites virais”, conta Sáfadi. Mas, salvo uma exceção ou outra, esses casos provocados por vírus dificilmente ameaçam a vida. O mesmo, porém, não se pode dizer quando existe uma bactéria por trás. 

Segundo Marco Aurélio Sáfadi, as bactérias  Haemophilus influenza tipo B, a pneumococo e a meningococo — que é o nome popular da Neisseria meningitidis — respondem pela quase totalidade das menigites que provocam hospitalizações. Elas matam entre 8% e 15% dos pacientes infectados. Detalhe: até 20% daqueles que escapam da morte rápida ficam com  sequelas irreversíveis, como surdez, cegueira, amputações e alterações neurológicas. 

“Felizmente, os casos provocados pela Haemophilus diminuíram no mundo inteiro. No Brasil, a vacina contra essa bactéria é oferecida há mais de 15 anos”, comenta Sáfadi. Para a pneumococo também existe imunizante de longa data. Já os grupos A, W e Y da meningococo ainda representam de 10% a 20% dos casos de meningite em nosso país. E o tipo C é responsável por mais da metade dos episódios.

Existem outros agentes infecciosos culpados por meningites. Às vezes, indivíduos que operaram o cérebro desenvolvem a doença porque precisaram ficar com um catéter na cabeça e ele acabou contaminado por bactérias hospitalares. É horrível dizer, mas acontece.

Assim como bebezinhos podem ser infectados durante o parto por bactérias, como a estreptococo B, que estavam no trato genital da mãe e vão parar em suas meninges. É raro, mas acontece também. 

“Menos frequentes ainda são as meningites causadas por parasitas e até por mesmo fungos, que geralmente acometem pessoas bastante imunodeprimidas em função de outras doenças”, acrescenta Sáfadi.

A questão é saber qual é a causa para agir depressa. Lembre-se: se a infecção é bacteriana, a corrida contra o relógio pode ser perdida em dois dias apenas. Se bem que o bacilo de Koch, o causador da tuberculose — doença que nunca foi embora — , também pode afetar as meninges e, no caso, a evolução é lenta. Mas ele é um ponto fora da curva.

O exame que acusa o responsável pelo quadro é feito por meio de uma punção na coluna para colher uma amostra do líquido existente ali e investigá-lo.  Mas, para que seja feito, a premissa óbvia é a seguinte: as pessoas  devem perceber os sinais de uma meningite e correrem para um hospital. Uma vez lá, se os médicos concordarem com essa suspeita, podem nem aguardar o exame dedurar o agente culpado. Já vão logo dando antibióticos potentes. Pelo sim, pelo não, esperam o pior: uma meningite bacteriana.

Manifestações das mais variadas

Toda meningite — não importa a causa — cria de início a mesma confusão. O termômetro pode subir de uma hora para outra. A dor de cabeça costuma ser das mais terríveis — “as meninges doem tanto que a pessoa não consegue dobrar a cabeça, daí a impressão de rigidez na nuca”, descreve Sáfadi.

E existem os famosos vômitos. “São jatos incrivelmente fortes, diferentes de quando alguém passa mal do estômago”, diz o médico. É que o sintoma não tem a ver com a barriga. Vomitar com força é a reação que surge sempre que a pressão intracraniana aumenta demais. E pense: tudo dentro do crânio está mesmo no maior aperto.

Para bagunçar de vez, nenhum desses sinais é obrigatório, muito menos tem uma ordem certinha para surgir. Tem gente com meningite bacteriana das bravas que só apresentou febre, sem botar os bofes para fora. E gente que se acabou de vomitar sem ficar quente. Portanto, confie quando o instinto lhe sopra que há algo de estranho, mais intenso e mais ligeiro, nesses velhos sintomas.  “Nas meningites mais agressivas, há uma confusão mental e aparecem manchas feito hematomas pelo corpo, que crescem e se espalham”, completa o médico. Isso já é o prenúncio de uma sepse.

Como notar os sinais em bebês

Quando a vítima não diz o que sente, o desafio de flagrar a tempo uma meningite é enorme. O doutor Sádafi dá a dica: “Os pais devem estranhar quando percebem que o bebê está com muita irritabilidade, não suportando ser tocado, nem aguentando ficar na luz”, ensina.“Também é comum ele gemer o tempo inteiro, como se estivesse sem forças para chorar. Aliás, geralmente fica tão prostrado que não consegue sugar na hora de mamar.” 

Se é muito pequeno, há uma pista visível. Basta você olhar a moleira, o espaço amolecido entre os ossos do crânio do recém-nascido, que os médicos chamam de fontanela. “Como tudo está inchado lá dentro, o que se vê é um abaulamento, lembrando um ovo”, diz o pediatra.

Por que oferecer a nova vacina aos adolescentes

Segundo o pediatra, além de proteger contra quatro tipinhos de meningococos em uma picada só, a vacina conjugada provou ser capaz de impedir que essas bactérias colonizem o nariz e a garganta de quem recebeu a sua dose, barrando a transmissão da doença.

Uma das coisas que fazem essas meningites terem um alto poder de contágio é que muitas pessoas se tornam portadoras de meningococos. Saem por aí levando esses clandestinos para cima e para baixo. Transmitem a infecção em cada passeio, mas não ficam elas próprias doentes. E aí que está: adolescentes e adultos jovens são os maiores portadores assintomáticos dessas bactérias. 

Daí por que o SUS — que já incluía doses da vacina contra a meningite C para bebês de 3, 5 e 12 meses em seu excelente programa de imunização — incorporou a versão conjugada para meninos e meninas na entrada da adolescência. Trata-se de uma estratégia esperta para derrubar os casos.  Quem é mais velho ou mais novo também pode tomar a vacina conjugada, só que em clínicas particulares.

A novidade no calendário de vacinação do SUS é a boa notícia. “E a má é a nossa atual cobertura vacinal”, lamenta o doutor Sáfadi. Para meningite, ela anda baixíssima — quase 40%. O que significa que seis em cada dez crianças e adolescentes estão sem proteção. E, por tabela, jovens adultos na faixa de maior risco, idosos e imunossuprimidos de qualquer idade que cruzem o caminho de um adolescente assintomático. “O melhor seria a gente imitar programas de sucesso em países como a Austrália, onde a vacinação é escolar”, opina o médico.

Faz sentido. Além de existir um descaso de pais que já são de uma geração que não viu doenças como o sarampo matarem — ironicamente por ser uma geração vacinada —, há um problema social. Muitas vezes, eles trabalham duro e não conseguem levar os filhos para serem imunizados nos horários em que os postos de saúde estão abertos.

Claro, existem ainda as notícias fantasiosas sobre os perigos das imunizações. Mas agora que todos querem tanto uma vacina para a covid-19, espero alguma coerência: aproveitem para colocar em dia a carteira de vacinação da família inteira.

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Morte súbita de atletas: o que quem teve covid-19 precisa saber ao treinar http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/09/10/morte-subita-de-atletas-o-que-quem-teve-covid-19-precisa-saber-ao-treinar/ http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/09/10/morte-subita-de-atletas-o-que-quem-teve-covid-19-precisa-saber-ao-treinar/#respond Thu, 10 Sep 2020 07:00:10 +0000 http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/?p=9275

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O mundo esportivo está com o coração na mão. Nos Estados Unidos, os festejados campeonatos universitários estão suspensos até segunda ordem, embora a pressão da torcida do contra seja enorme, exigindo uma revisão dessa decisão por parte da National Collegiate Athletic Association (NCAA). A justificativa da NCAA para todos tirarem o seu time de campo você já sabe qual é: a pandemia. 

Só não fique achando que o medo é de um atleta contaminado transmitir a covid-19 para outra pessoa de sua delegação. Claro, isso também deve passar na cabeça. Mas o grande receio é o risco de morte súbita entre jovens que contraíram o novo coronavírus, mas que parecem prontos para vestir o uniforme. Surge um caso aqui e outro ali apontando que, quando aparentemente perdeu o lance porque o atleta driblou a infecção e já está treinando outra vez, o novo coronavírus marca um ponto decisivo, vira o jogo e mostra que é mesmo um adversário de respeito. 

Em agosto passado, o pivô de basquete Michael Ojo — que ficou conhecido entre os americanos ao jogar quatro temporadas no Florida State —, praticava arremessos na quadra do seu novo time, o Estrela Vermelha, da Sérvia, quando morreu do nada. Ele tinha testado positivo para covid-19 um mês antes. 

Não é um caso isolado, dizem especialistas, que temem um aumento de mortes súbitas entre esportistas com menos de 35 anos ao longo da pandemia. Alguns apostam que isso já está acontecendo. De acordo com um levantamento do Atlantic Health System, pelo menos dez das principais universidades americanas têm mais de 12 atletas que testaram positivo para covid-19 e que agora apresentam sinais de miocardite. E a miocardite é o “x” da questão nessa suspeita que relaciona a covid-19 à morte repentina de esportistas durante o esforço físico. 

Essa inflamação do músculo cardíaco — é disso que se trata uma miocardite —  já fez estrelas em ascensão no esporte anunciarem que não voltarão a treinar tão cedo, como o jogador de beisebol Eduardo Rodriguez, do Boston Red SoxNele, a miocardite também foi flagrada após ser infectado pelo novo coronavírus.

Já no outro lado do Atlântico, a Sociedade Europeia de Cardiologia publicou um artigo em que levanta a bola: “Apesar de atletas não serem grupo de risco para quadros severos de covid-19, surgem alguns questionamentos, como até que ponto a infecção pelo Sars-CoV-2, com ou sem sintomas, deixa a pessoa apta a voltar treinar ou, pior, a competir”. E dá a cortada: “O risco de problemas no coração não pode ser descartado nem sequer nos jovens atletas que pegaram o novo coronavírus e foram assintomáticos.”

Mas será que a covid-19 está mesmo por trás de mortes súbitas de atletas jovens? “Ainda estamos digerindo esses dados, eu diria”, responde o cardiologista Otavio Rizzi Coelho-Filho, que é professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), onde coordena justamente o laboratório de miocardiopatias, ou seja, de doenças que afetam o músculo cardíaco.

“Não existem dados certeiros de que esses episódios fatais estejam aumentando, mas os casos que vieram a público de atletas que tiveram a covid-19 e que infelizmente morreram de repente levantam essa hipótese. Precisaríamos de necrópsias para saber o que de fato aconteceu”, diz ele, que é também o atual primeiro secretário da Socesp (Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo). 

Vírus que inflamam o coração

Vale lembrar que de 1% a 5% dos quadros de infecções virais agudas acabam inflamando o músculo cardíaco — “e, não raro, o pericárdio junto, que seria a membrana envolvendo todo o coração”, conta o médico. O parvovírus B-19 que provoca erupções na pele, alguns enterovírus bem conhecidos, o vírus da herpes e até mesmo o velho influenza são tipinhos por trás das miocardites. Por que então com o novo coronavírus seria diferente, não é mesmo?  

“Um vírus pode provocar a miocardite direta ou indiretamente”, explica Rizzi Coelho-Filho. “Pode ter uma vocação especial para invadir as fibras do músculo cardíaco ou simplesmente disparar uma resposta do sistema imunológico tão forte que a inflamação termina por afetar o corpo dos pés à cabeça — e o coração no meio disso tudo.”

Covid-19 e miocardites

Segundo o cardiologista, as evidências de que o Sars-CoV-2 invada diretamente o coração ainda são fracas. Mas ninguém duvida da fúria da inflamação que sua presença pode desencadear. Não em todo mundo, bem entendido. “Nem todos os que têm a covid-19 desenvolvem uma miocardite”, tranquiliza o professor. De fato, essa é uma condição que afeta apenas de 7% a 23% dos pacientes hospitalizados por causa da infecção pelo novo coronavírus, aponta a literatura médica. Quer dizer…. 

No finalzinho de julho, pesquisadores da Hospital Universitário de Frankfurt, na Alemanha, publicaram no JAMA Cardiology um estudo que jogou lenha na fogueira. Eles usaram uma ressonância magnética de última geração para avaliar o coração de 100 indivíduos que tinham se recuperado da covid-19. E esse exame, capaz de entregar detalhes de um músculo inflamado, como áreas mais inchadas, acusou a miocardite em nada menos do que 60 participantes. Ou seja, em 60% dos casos. “Mas, apesar de os autores serem cientistas extremamente sérios, o trabalho vêm sendo criticado por falhas e talvez esse número não seja tão alto”, pondera Rizzi Coelho-Filho.  

Mesmo assim, a porcentagem deve ser maior do que muita gente imaginava. O que, por si, também não significa o fim do mundo para gente comum. “Um ponto que precisa ser compreendido é que, na maioria das vezes, seja qual for o vírus causador, a miocardite se resolve sozinha com o tempo, como se fosse — vamos brincar — uma espécie de gripe do coração”, explica o professor. 

Esta é uma boa figura de linguagem para você  entender a encrenca: se a antiga receita para legítimos gripados seria permanecer na cama até o pleno reestabelecimento da saúde, corações inflamados também mereceriam um descanso para ficarem bons. E se há uma coisa que um atleta não dá ao seu peito é um pingo de sossego. Daí que, estima-se, 9% das mortes súbitas de esportistas jovens acontecem porque resolveram dar canseira a um músculo cardíaco todo inflamado.

Por trás das mortes súbitas em jovens

Atividade física, em condições normais, faz um bem danado. Quem segue à risca o conselho da Organização Mundial da Saúde e se exercita 200 minutos por semana, o que não é nenhum sacrifício, reduz em 15% o risco de ter problemas no coração. Acontece que um atleta de alta perfomance faz muito mais esforço do que isso, o que gera um estado de inflamação em seu organismo que, muitas vezes, piora as coisas em vez de ajudar. 

O exercício extenuante pode, por exemplo, desestabilizar placas nas artérias. Onde quero chegar: “Quando um atleta profissional com mais de 35 anos morre repentinamente do coração, a causa costuma ser um problema nas coronárias que ele já tinha”, avisa Rizzi Coelho-Filho. Em esportistas com menos de 35 anos, porém, a história é outra.

Segundo o professor da Unicamp, existem três grandes causas de ataques fatais do coração em jovens durante a prática esportiva. Anomalias que mudam o trajeto das coronárias são uma delas. “Então, pode acontecer de, durante o esforço, uma coronária ficar espremida”, descreve. O sangue não passa, o coração deixa de ser irrigado direito e… Já viu o fim da novela.

Outra causa é a miocardiopatia hipertrófica, que leva o músculo cardíaco a crescer além da conta. Trata-se de uma doença genética que é relativamente frequente: ocorre em 1 para cada 500 indivíduos nascidos. Hoje existem testes até de saliva para mapear os mais de 400 genes que podem ter alterações capazes de causar essa condição. Pois não pense que é fácil reconhecê-la só de bater os olhos no coração. “Afinal, ele sofre várias adaptações ao exercício intenso que podem confundir”, diz Rizzi Coelho-Filho. 

Ora o músculo cardíaco não é diferente de um bíceps que hipertrofia ao malhar. Sua espessura, no caso, aumenta. Mas deve aumentar para fora, deixando um espaço confortável no interior para o sangue fazer o seu trajeto. Na miocardiopatia hipertrófica, porém, o miocárdio também cresce para dentro. 

“Em geral, a espessura do músculo no ventrículo, uma das câmaras do coração, tem em torno de 11 milímetros”, exemplifica o médico. “No atleta, por causa da adaptação ao esforço, pode ficar com uns 13 milímetros. Se passa de 15, acende a lâmpada amarela e a gente investiga se não é a miocardiopatia hipertrófica.”

Caso o diagnóstico se confirme, a Medicina lança mão de drogas para remodelar esse músculo ou, digamos, enxugar suas medidas. No entanto, a bola da vez diante do drama da pandemia é mesmo a miocardite, cuja parcela de culpa pode estar aumentando.

Os sintomas e o diagnóstico da inflamação

“Falta fôlego e o peito dói, como se fosse a angina de quem está infartando”,  conta Rizzi Coelho-Filho. O cardiologista já fica cabreiro quando ouve que aquele paciente teve um quadro viral dias ou semanas antes. “Mas, primeiro, a gente precisa afastar a hipótese de ser uma trombose ou um infarto pra valer”, conta.

Só que nem isso é tão simples. Quando alguém infarta, o músculo cardíaco expressa o seu penar liberando no sangue proteínas chamadas troponinas. “Mas elas  ficam igualmente elevadas  se existe uma miocardite”, diz o médico.

O eletrocardiograma de um sujeito com essa inflamação, por sua vez, também pode registrar sinais parecidos com os de um infarto. A diferença sutil é que, se alguém está infartando, as alterações no eletro aparecem em uma parede do coração, onde o sangue não está chegando. Enquanto, na miocardite, essas alterações tendem a ser difusas, por todos os cantos.

Muitas vezes, os cardiologistas só sossegam quando comprovam, com a ajuda do cateterismo, que não há nenhuma artéria obstruída. Então, o exame que fecha o diagnóstico é o ecocardiograma. Com a vantagem de não ser invasivo, ele revela indícios da inflamação na imagem. 

“A biópsia, nessas horas, pode dar o azar de pegar um pedacinho do músculo que não está inflamado”, diz o cardiologista. Mas, sim, o médico pode até solicitá-la em uma minoria de casos — os que complicam. É quando a inflamação não vai embora e pode culminar em uma insuficiência cardíaca. O coração se vê incapacitado de bombear o sangue para todo o corpo, o que representa um risco de morte equivalente ao de um tumor de pulmão avançado.

Daí, sim, seja em um atleta ou em um mortal sedentário, valerá a pena descobrir até mesmo o agente causador para saber como tratar — se devem ser usados antivirais ou remédios para suprimir a reação violenta do sistema imunológico.

Um último exame, mais usado em pesquisa, é a ressonância magnética capaz de mapear mínimos inchaços no músculo cardíaco e pequeníssimas fibroses.

O que um atleta que teve covid-19 deveria fazer?

O coração de um atleta é enganador.  A miocardite pode ficar mascarada. “O exercício intenso, afinal, também aumenta as troponinas no sangue”, diz Rizzi Coelho-Filho, que até se lembrou do trabalho de um colega dos tempos em que ficou na Universidade Harvard, nos Estados Unidos. “Esse médico resolveu dosar as troponinas de todos os participantes da maratona de Boston e, na média, os níveis foram similares aos de uma pessoa com angina.”
Para piorar, os sintomas da miocardite em atletas também são menos específicos. Em vez da dor, o que costumam sentir é uma queda no rendimento. No entanto, na opinião do professor Rizzi Coelho-Neto, não há motivo para sair fazendo ressonância magnética em todos os esportistas que testaram positivo para o novo coronavírus. “O que se deve fazer é dosar uma série de marcadores de inflamação no sangue, como a proteína C reativa e uma molécula conhecida pela sigla BNP”, ensina. “E, conforme o resultado, complementar com exames de imagem”.
Mas, se você é um esportista, fique sabendo: toda e qualquer infecção viral pede interrupção dos treinos para evitar uma miocardite. Até uma gripe. No caso da covid-19, a pessoa já teria de ficar isolada por 15, 20 dias para barrar a transmissão. “Só que o final desse período não significa necessariamente a liberação para treinar”, avisa o cardiologista.
O atleta deve fazer exames para saber se os marcadores de inflamação estão elevados ou não. E só voltar para campos, quadras e pistas quando eles baixarem de vez, o que em alguns indivíduos demora algumas semanas. Caso contrário, como a inflamação consome uma energia enorme do coração, ele poderá apresentar arritmias e sucumbir na exaustão física. Diante do novo coronavírus e da possibilidade de ele causar miocardite, ser um atleta pode ser o contrário de um atestado de segurança.
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“A gente não pode cair na armadilha da corrida pela vacina” http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/09/08/a-gente-nao-pode-cair-na-armadilha-da-corrida-pela-vacina/ http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/09/08/a-gente-nao-pode-cair-na-armadilha-da-corrida-pela-vacina/#respond Tue, 08 Sep 2020 07:00:08 +0000 http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/?p=9222

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Tive um chefe que repetia: uma empresa contrata um funcionário e leva um ser humano junto. Não pude deixar de me lembrar da frase ao entrevistar José Carlos Felner, presidente da GSK no Brasil. Fico imaginando se quem o contratou há mais de 40 anos, quando ele passou a atuar no setor farmacêutico, vislumbrava o quanto a história de vida do rapaz refugiado, que então trabalhava em um posto de gasolina no Rio de Janeiro, impactaria a sua maneira de enxergar os desafios de uma pandemia.

Felner nasceu em Moçambique, como sua mãe, filha de indianos de religiões e castas diferentes que tiveram de abandonar o país de origem, onde o casamento deles jamais seria aceito. Já o pai, um português de família alemã e austríaca, se mudou para a África para trabalhar como engenheiro agrônomo. 

Os amigos de infância eram negros, paquistaneses, indianos e alguns chineses. A educação foi católica, mas boa parte dos colegas era muçulmana. Portanto, o garoto Felner acabava entrando na mesquita umas três vezes por dia nos horários das orações. E assim se familiarizou com o Alcorão tanto quanto com a Bíblia.

“Por conta da diversidade, meus pais fizeram uma lavagem cerebral nos filhos: não deveríamos fazer nenhuma distinção entre seres humanos”, ele conta.  E esse ensinamento pesa quando todos correm atrás de uma vacina para a covid-19. Felner se recusa a correr. Porque não acredita que, na disputa de velocidade, vamos chegar em uma imunização para todos.

A GSK, diga-se, distribui 2 milhões de vacinas por dia ao redor do mundo. Só no nosso país, entrega três doses a cada ínfimo segundo. Há mais de três décadas é parceira do Programa Nacional de Imunizações do governo, que derrubou em mais de 77% a nossa mortalidade infantil.

Depois de ter passado por várias áreas da companhia, Felner aterrissou no universo das vacinas em meados dos anos 1990 e nunca mais quis sair. “A ficha caiu: eu não estava mais falando de tratar doenças e, sim, de manter as pessoas saudáveis”, justifica.

Como o executivo veio parar aqui? Na Guerra Civil que explodiu em Moçambique no final dos anos 1970, o pai teve autorização para retornar à Europa, levando a esposa e o filho caçula. Mas a Felner, por ser maior de 18 anos, só restou a alternativa da fuga.

As Nações Unidas, então, lhe deram três opções de destino. Ele escolheu o Brasil, inclusive pela lembrança afetuosa do avô materno, anarquista, que organizava protestos pela construção de uma represa ao som de “Tomara que Chova”, marchinha de Carnaval das antigas, criada por Romeu Gentil e Paquito.

Hoje, o executivo está tremendamente ligado ao Covax, a coalização de 165 países para garantir que todos, incluindo os mais pobres, tenham acesso a uma vacina contra o novo coronavírus quando ela chegar. E a própria GSK está desenvolvendo uma delas, em uma parceria inusitada com a Sanofi. Inusitada por ser a sua maior concorrente.  E porque não querem ser os primeiros a cantar vitória na tal corrida. Na entrevista a seguir, José Carlos Felner explica por que “‘ gente não pode cair na armadilha da corrida pela vacina” e ensina um bocado sobre o mundo da produção de imunizantes.

VivaBem: Muitos especialistas dizem que pensar em uma vacina para uso individual é uma coisa e pensar em vacinação para a saúde pública é outra completamente diferente. Por que motivo?

José Carlos Felner: Para explicar, devo esclarecer alguns conceitos. Um deles é a questão das doses. Vamos pegar o exemplo da vacina contra a hepatite A. Se eu faço uma única dose coletiva, isto é, em toda a população, eu contenho a sua transmissão em massa. E talvez você estranhe, porque se for a uma clínica de vacinação particular, vai tomá-la uma segunda vez como reforço. É que, no caso da vacina de hepatite A, a dose ótima equivaleria a duas aplicações. Mas sabemos que os orçamentos dos governos são limitados e que, se eles oferecerem uma única dose, já evitarão um enorme problema de saúde pública. Aí, se a pessoa por acaso desenvolver a doença, ela será branda. E, mais importante do que isso, esse indivíduo que tomou a vacina uma única vez deixará de ser um vetor de contaminação, prevenindo surtos e epidemias. Outro conceito crítico, pensando em saúde pública no contexto de uma pandemia, é o da tecnologia para produzir a vacina.

Como assim?

Felner: Simples, você pode ter a melhor tecnologia do mundo e, se não conseguir produzir vacina para um atendimento global, essa tecnologia não servirá para nada. Em uma pandemia, pensar em vacinação para uso individual é um egoísmo como nação e como classe social. Sem contar que é uma ilusão, porque americanos e ugandenses, ricos e pobres, ninguém está a salvo. Se não vacinarmos todos de uma vez, muitas pessoas continuarão sujeitas a adoecer, porque não ficarão para sempre trancadas em casa. São preocupações assim que a GSK tem em comum com a Sanofi. Daí fazer muito sentido as duas companhias estarem desenvolvendo em colaboração uma vacina contra o novo coronavírus. Sem contar a diversidade de centros de produção que essas duas empresas têm pelos continentes.

“Boa parte das vacinas doadas a países africanos perde eficácia por causa das variações de temperatura no transporte”

Só GSK tem dezesseis fábricas de vacinas ao redor do mundo. Na sua opinião, esse é um ponto importante, digo, a vacina ser produzida em diversos continentes?

Sem dúvida. Não adianta a gente cumprir os requisitos anteriores de uma vacina — como ser eficaz e capaz de ser produzida em massa — , se não distribuí-la direito pelo mundo inteiro. A logística de distribuição sempre se revela um elo frágil durante uma pandemia. E isso vale para qualquer coisa, de comida a sapatos. Mas garanto que, com vacinas, é ainda mais complicado. Para ter ideia, boa parte das vacinas doadas a países africanos pobres perde eficácia por causa das variações de temperatura no transporte e de outras condições logísticas.  Elas se tornam inócuas e, em alguns casos, até perigosas. Por isso que afirmo: ter centros de produção por todo o globo facilitará a distribuição de uma vacina contra o coronavírus.

“Se precisarmos produzir milhões de vacinas e, depois de quatro meses, tivermos de produzir tudo de novo para um reforço, será inviável”

Precisar ou não precisar tomar uma dose de reforço seria outro aspecto crítico?

Existem muitos aspectos críticos. Mas, sim, o que chamamos de sustentação da proteção é um deles. Imagina eu produzir todo esse volume de vacinas e, depois de quatro meses, precisar produzir tudo de novo e distribuir mais uma vez. Depois de um ano, repetir. Isso fatalmente irá estressar o sistema, se tornar inviável economicamente e, pior, é possível que a cobertura vacinal caia com o tempo. Infelizmente, é o que costuma acontecer quando há a necessidade uma sucessão de doses — as pessoas vão deixando de tomá-las. Justamente por termos tantos desafios é que faço a seguinte provocação: a gente não pode cair na armadilha da corrida pela vacina. Se eu pensar só em mim, claro, a vacina que chegar primeiro me interessará bastante. Vou querer colocar no carro a minha família e as pessoas de que gosto para sermos os primeiros da fila. Mas, quando estamos falando de uma pandemia — e, portanto, da humanidade —,  essa não pode ser a discussão central. Temos, aliás, coisas bem mais importantes para discutir.

A questão da propriedade intelectual de quem desenvolver uma vacina contra a covid-19 seria uma delas?

Claro que sim. Não adianta apelar para a solução simplista de quebrar a propriedade intelectual, fazer uma licença compulsória e dizer que determinada vacina é do mundo e não pertence a ninguém. Ora, passaremos por outras pandemias. Como, aliás, já passamos, se a gente lembrar daquela de H1N1 em 2010, quando a GSK forneceu a vacina. Portanto, se você desrespeita a propriedade intelectual, em uma próxima vez em que precisar de vacinas, não irá ter, porque a fábrica irá falir. Quando existe uma pandemia, os investimentos são brutais. Imagine agora: só para o Brasil, vamos precisar de 220 milhões de doses, que deverão ser produzidas em um curto espaço de tempo. Isso exige um complexo industrial enorme, inclusive. E depois, faz o que com essa fábrica?

Agora, vamos falar desse casamento entre a francesa Sanofi e a área de vacinas da GSK, que tem origem belga. As duas são concorrentes há décadas e agora se juntam para desenvolver uma vacina contra o Sars-CoV 2. Como é essa parceria?

A GSK é líder, disparado, em vacinas. A liderança no mercado de vacinas, bom eu explicar, não se mede pelo valor do negócio,  mas pela quantidade de doses distribuídas e pelo tamanho do portfólio, porque esse seria o impacto real na sociedade. Temos uma incrível diversidade de tecnologias — vírus vivo, atenuado, elementos genéticos replicados… Já a Sanofi é a segunda maior companhia de vacinas do mundo. Depois é que vêm os outros, com três vacinas, quatro vacinas cada um, algo assim. Sanofi e GSK, unidas, têm dezenas de centros de produção em quatro continentes e um baralho de opções enorme em termos de tecnologias para criar uma vacina contra o novo coronavírus que atenda aos critérios que já mencionei — eficácia, sustentabilidade de proteção, ser logisticamente viável, tornando possível adaptar rapidamente plantas industriais já existentes e, depois, também depressa, readaptá-las para não termos fábricas ociosas. Sinceramente, não vejo nada de mais em trabalhar em colaboração com uma concorrente por uma causa de saúde pública global.

Nesse trabalho de colaboração, vocês dividiram tarefas, por assim dizer. Quem faz o quê?

Estamos entrando com um sistema do que chamamos de adjuvante — um sistema, diga-se, que já foi bastante utilizado e, portanto, testado na vacina pandêmica de H1N1 e na vacina contra o câncer do colo do útero, entre outras. Toda vacina tem um elemento central, que é o famoso antígeno, aquele que é capaz de gerar anticorpos contra a doença — é no que a Sanofi está se concentrando. Mas toda vacina tem ainda um adjuvante, uma substância com o papel de estimular o sistema imunológico para desencadear a reação de proteção. O mais usado por aí é o hidróxido de alumínio, mas o nosso sistema de adjuvante é bem diferente.

“Há uma hipótese de a vacina oferecer proteção cruzada contra outros tipos de coronavírus, que possam causar pandemias no futuro”

Por que ele é diferente?

Porque, além dessa propriedade de aumentar a resposta imunológica, ele melhora a sustentabilidade desse resultado em uma linha do tempo. Daí que precisamos de muito menos antígeno na produção do que se usássemos o adjuvante tradicional. O que significa que, em uma pandemia como esta, conseguimos produzir mais e mais doses. Além disso, os cientistas que estudam esse nosso sistema de adjuvante pensam que ele talvez possa favorecer o que chamamos de proteção cruzada. Ou seja, imagine que há um vírus com várias cepas, como se fossem primas do ponto de vista genético. Podemos, em tese, desenvolver a vacina contra uma ou duas cepas e ela também se mostrar eficaz contra outras variantes genéticas do vírus que, em princípio, não eram alvo da formulação. Foi o que aconteceu na vacina contra o H1N1, que, embora tivesse sido criada para duas cepas desse vírus, acabou se revelando eficaz contra outras cinco variações que foram aparecendo. 

Pode acontecer algo assim com o novo coronavírus?

Sim, ao menos é no que muitos pesquisadores acreditam. A covid-19 é causada por um tipo de coronavírus. Mas qual será o próximo capaz de disparar uma pandemia? Essa é uma boa preocupação. Por isso a afinidade da GSK com a Sanofi. São duas empresas que não estão na corrida para ver quem chega primeiro. Não temos a menor pressa. Porque queremos uma vacina que realmente colabore para o controle global da covid-19. E, embora a gente tenha feito pré-acordos com a Inglaterra e com os Estados Unidos para distribuir a nossa vacina, porque temos centros de pesquisas nesses dois países, a nossa prioridade é trabalhar com a Covax, a coalização para vacinas da OMS, e a Fundação Bill e Melinda Gates.

Outras vacinas, então, deverão chegar primeiro?

É possível. Essas novas tecnologias que estão sendo usadas na busca de uma vacina para o novo coronavírus são bastante interessantes. Mas precisamos levantar algumas perguntas sobre a segurança.

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“Usar outros vírus, que não nos fazem mal, como um cavalo de Tróia escondendo partículas do novo coronavírus, é um caminho conhecido e mais seguro”

Afinal, essa busca frenética, ao menos para pessoas leigas como eu, dá uma impressão de que algumas etapas para garantir a segurança serão puladas. Exagero?

Todos nós estamos trabalhando muito. Mas entenda: algumas tecnologias aplicadas para produzir uma vacina já são bastante conhecidas e, portanto, dominadas. Assim, podemos criar vacinas com um vírus vivo atenuado. Ele seria um vírus inteiro, completo. O nosso sistema imunológico vai reconhecê-lo fácil e criar anticorpos. O detalhe é que esse vírus teria passado por processos de pasteurização e sido exposto a produtos químicos tornando-se incapaz de desenvolver a doença. Temos ainda a possibilidade de criar vacinas com um vírus inativado. Nada mais é do que um vírus morto. Usamos apenas a sua capa proteica, que seria oca, por assim dizer. E depois temos as famosas partículas virais. É quando pegamos um elemento genético que seja minimamente o suficiente para o organismo reconhecer a identidade desse alvo. No caso do conoravírus, essas partículas seriam relacionadas às suas espículas, estruturas que lhe dão aquela aparência uma coroa de espinhos. E há muitos caminhos para se obter uma vacina a partir de partículas. Vou simplificar e falar apenas de dois. Em um deles, pegamos uma partícula e a colocamos em um hospedeiro que, depois, é injetado no indivíduo.

Qual seria esse hospedeiro?

Normalmente são vírus com letalidade baixa e que a gente conhece muito bem. Agem como um cavalo de Troia. Nós introduzimos nele a partícula genética do vírus causador da doença. Ele a absorve e a carrega para dentro do organismo humano. Mas note bem que esse elemento genético do agente causador da doença está dentro de um outro vírus. E friso: um outro vírus que é bem conhecido, que não nos faz mal. Essa é uma tecnologia segura e o que precisamos agora é cumprir os ritos, testando a eficácia e a sustentação do resultado de uma vacina assim para o Sars-CoV2, lembrando que existem diversas vacinas por aí que já fazem exatamente isso. 

“O que preocupa em algumas vacinas é a ideia de introduzir um elemento genético do novo coronavírus dentro das nossas próprias células.”

Mas algumas vacinas que prometem chegar na frente na tal corrida têm uma tecnologia de mensageiro genético…

Sim, e elas estão causando uma euforia no mercado. No entanto, você escuta um ou outro cientista pedindo muita cautela. Eu não vou dizer que essas vacinas serão arriscadas, porque ainda não sabemos. Mas o que está por trás do receio de parte da comunidade científica é o seguinte: em vez de acoplar uma partícula genética do novo coronavírus em outro vírus bem conhecido e inócuo, a ideia é colocar essa partícula genética relacionada à espícula do Sars-CoV dentro das nossas células. E essa estratégia, de cara, dispara duas dúvidas.

Quais seriam essas dúvidas?

Uma delas é, na realidade, praticamente certeza: a proteção não será sustentável. O mais provável é que as pessoas precisem de uma segunda dose dali a seis meses. E alguns defendem que será necessária até mesmo uma terceira dose. Esse tipo de tecnologia costuma criar memória no sistema imunológico, mas sem um número suficiente de anticorpos para as defesas detonarem o seu alvo. O que preocupa ainda mais todo mundo, porém, é introduzir um elemento genético do novo coronavírus dentro daquilo que é o mais íntimo de qualquer ser vivo, que seria a estrutura de sua célula.

E, por experiências passadas, isso pode ser perigoso?

Ao longo dos anos, iremos viver com aquilo, com a partícula do vírus dentro das nossas células. O que poderá acontecer daqui a uma década? É o que me pergunto. Vamos nos lembrar que a primeira vacina assim que chegou a ser testada em seres humanos, criada para combater o HIV da Aids, provocou leucemias em 80% das pessoas que a receberam. Daí que acabou sendo completamente abandonada. Então, esse é um dos grandes medos a respeito do resultado dessa corrida para ver quem chega primeiro. 

“Não adianta proteger só aqueles países que poderão pagar mais”

E a vacina de vocês, pelo que sei, quando muito deverá ficar pronta apenas no segundo semestre de 2021… Em que etapa vocês estão agora?

Estamos na chamada fase 1, em uma etapa bastante preliminar. Em compensação, temos uma razoável certeza de que não iremos dar passos para trás. E nós realmente não faremos parte dessa corrida porque o seu ponto de chegada não será uma solução para a pandemia. Não adianta protegermos dois, três ou quatro países, aqueles que poderão pagar mais, porque no mundo de hoje as fronteiras geográficas são simbólicas. Ninguém vive isolado e o vírus faz a festa, pega avião, pega tudo, circula livremente.

“Começo a configurar o risco de falta de outras vacinas no ano que vem”

A pandemia está afetando a produção de outras vacinas?

A GSK é parceira da Fiocruz, da Fundação Ezequiel Dias e do Butantan com transferência de tecnologia.  E estamos já há dois ou três meses sem a certeza de que as operações para a produção de vacinas não estão sofrendo interrupção. Não sei se sabe, mas os ciclos de produção de vacinas são longos. Alguns chegam até a dois anos. E eu confesso que começo a configurar um potencial risco de falta de outras vacinas no segundo semestre do ano que vem. Alguns processos estão praticamente parados ou muito lentos porque os investimentos do governo andam se resumindo à covid-19. Não sabemos qual o impacto dessa ruptura adiante. E lembre-se: as necessidades do Brasil em volume de vacinas são tão grandes que não temos como buscá-las no mercado internacional.

Por outro lado, as pessoas andam se vacinando cada vez menos. Como vê essa situação?

As nossas coberturas vacinais estão, de fato, muito, muito baixas. E parte disso é efeito do sucesso do Programa Nacional de Imunização (PNI), que é uma referência mundial por ser dos mais completos. Só que, ironicamente, o fato de a gente não ter tido grandes problemas com doenças infecciosas que ainda estão matando gente pelo mundo afora faz com que as campanhas de vacinação percam tração. Até algumas gerações atrás, manter a carteira de vacinação dos bebês em dia era um atributo de uma boa mãe. Hoje isso está se perdendo, o que me preocupa. Sem contar que vacina não é só coisa de criança. 

“Coqueluche, o bebê fica exposto, porque a doença é quase assintomática em idosos”

Pode dar um exemplo menos conhecido das pessoas?

Por exemplo, o PNI oferece a vacina contra coqueluche para gestantes e, no entanto, pouquíssimas grávidas vão atrás. Quando a mãe não se imuniza, o bebê fica três meses sem nenhuma proteção, que poderia obter por meio dela. Ele terá esperar 90 dias, até ter um sistema imunológico maduro para ser vacinado ele próprio. E, nesse período, fica extremamente exposto, porque a coqueluche é quase assintomática em idosos —  no vovô e na vovó que vão pegar o neto no colo com aquela tossinha que a gente confunde com pigarro de quem é mais velho. É uma questão da dor que você quer escolher: o risco de ver o filho ter uma doença séria ou o afastamento da convivência de pessoas queridas? Mas, no Brasil, felizmente, não precisamos fazer essa escolha porque a vacina está disponível e é segura. E assim como a coqueluche, que mata também, temos uma série de doenças graves que não podem voltar a circular, como a poliomielite. Porque, se isso acontecer, será muito difícil controlar. 

“A decisão sobre quem terá prioridade para tomar uma vacina contra a covid-19  não deve ser de uma farmacêutica, nem de um governo”

Por fim, quem deverá ser priorizado quando surgir uma vacina contra o novo coronavírus?

Essa decisão não pode ser da GSK, nem de qualquer outra farmacêutica que desenvolva uma vacina. Nem do governo desse ou daquele país. Não adianta um presidente dizer ‘essa vacina foi criada aqui usando dinheiro público’. Estamos em uma pandemia e ninguém tem esse direito, a não ser uma organização supranacional, que zele pelo critério epidemiológico em primeiro lugar e, depois, examine as faixas da população que são mais vulneráveis — e daí não deverá importar se essas pessoas estão nos Estados Unidos ou em Uganda.

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Boas perguntas sobre anticorpos que o uso do plasma convalescente levanta http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/09/01/boas-perguntas-sobre-anticorpos-que-o-uso-do-plasma-convalescente-levanta/ http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/09/01/boas-perguntas-sobre-anticorpos-que-o-uso-do-plasma-convalescente-levanta/#respond Tue, 01 Sep 2020 07:00:22 +0000 http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/?p=9206

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Nas tentativas de armar o cerco ao novo coronavírus, diversas terapias estão sendo estudadas pelo mundo afora e você sabe bem disso. Algumas chamam a atenção quando mal são cogitadas, mas logo esfriam e são descartadas. Outras, depois de se apresentarem como promessa, parecem ficar em um longo banho-maria — leia, em testes — e por um tempo a gente não fala tanto delas. É o caso do plasma convalescente, assunto que voltou a aquecer bastante nos últimos dias.

Afinal, em meados de agosto, cientistas do Houston Methodist Hospital and Research Institute publicaram um estudo envolvendo 316 indivíduos infectados pelo Sars-CoV-2, todos em estado grave. Eles garantem que o plasma sanguíneo doado por pessoas que já tiveram a covid-19, transfundido em 136 desses doentes, foi capaz de diminuir a mortalidade em comparação com o que aconteceu com restante do grupo, que não foi tratado desse jeito.

Os americanos de Houston disseram mais: segundo eles, os resultados são melhores se os médicos apelam para o plasma convalescente nas primeiras 72 horas após a internação na UTI.

A coisa toda ferveu quando, dez dias depois, o FDA — órgão regulatório nos Estados Unidos — autorizou o uso emergencial desse plasma carregado de anticorpos produzidos pelo sistema imune de pessoas já recuperadas da infecção pelo novo coronavírus. Por uso emergencial, entenda: o quadro deve ser severo pra valer e o diagnóstico de covid-19 precisa ter acontecido no máximo três dias antes, não mais.

A aprovação do FDA, na certa, vai facilitar o acesso de pessoas em estado crítico a uma terapia que continua sendo promissora. Já ouviu aquela do “não custa tentar”? É bem isso. Pelo menos até que se prove o contrário em estudos realizados por aí — inclusive, entre nós.

Para entender essa segunda onda de alvoroço em torno do plasma convalescente, fui atrás de um dos responsáveis pela primeira pesquisa nessa linha de investigação no Brasil, o hematologista José Mauro Kutner, gerente médico do departamento de Hemoterapia e Terapia Celular da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein, em São Paulo.

“Por enquanto, não há motivo forte o suficiente para a gente deixar de lado a hipótese de o plasma convalescente funcionar em alguns casos de covid-19”, diz ele, que começou a testar o tratamento ainda em março, ao lado de médicos de outro grande hospital paulistano, o Sírio-Libanês.

Mas nem por isso Kutner recomenda que a gente bote muita fé por antecipação. Falta de uma série de respostas para perguntas que essa terapia levanta. Uma delas, bombástica: para quem já está muito doente, será que os anticorpos são capazes de fazer tanta diferença assim?

No estudo em que Kutner está envolvido, foram 60 pacientes no total. “Metade recebeu o plasma convalescente aqui conosco e a outra metade, no Sírio”, explica. “O fato é não podemos dizer que esses pacientes melhoraram muito, mas eles também não pioraram”, revela.

Ou seja, o plasma convalescente continua em cima do muro. Outra etapa de pesquisa, com mais 60 pacientes, deve começar em breve. E existem mais de 20 outros centros pelo país que também estão experimentando essa terapia.

Uma história de velhas frustrações

Vamos combinar que a sacada do plasma convalescente de novidade não tem nada. É uma velha ideia que a medicina recauchutou no desespero de se ver desafiada por uma doença completamente estranha. Remonta do século 18 e o princípio é dos mais simples: se alguém já teve determinada infecção e se curou, isso é prova de que seu organismo produziu defesas. Por que, então, não transferi-las para quem está precisando se defender depressa neste exato instante? Uma pronta-entrega!

O plasma é a parte líquida do sangue onde os anticorpos defensores ficam boiando, depois de serem extraídos os glóbulos vermelhos e os brancos nos hemocentros. Logo, doar o plasma repleto dessas moléculas para alguém doente seria uma espécie de gambiarra biológica, dando um jeitinho de o paciente pegar para si o que o outro produziu ao se safar da doença. De novo, por que não?

“Isso é diferente do que pode fazer uma vacina, que ensina o organismo a se defender sozinho contra um agente infeccioso”, esclarece Kutner. “O plasma com anticorpos não ensina nada. Simplesmente entrega as moléculas defensoras para agirem de imediato, enquanto elas durarem na circulação.” É o que se chama de imunização passiva. E é passiva porque o sistema imunológico do doente não precisa fazer nada, recebe os anticorpos de mão beijada.

Ao ouvir essa saída, ela é até uma boa pedida. A questão desanimadora é que isso foi tentado algumas vezes no passado sem resolver grande coisa. O plasma convalescente saiu da cartola, por exemplo, na gripe espanhola e… não deu em nada. “No nosso século, na epidemia de Sars na China há dez anos, ele também foi utilizado”, diz Kutner, refrescando a nossa memória. E o mesmo aconteceu na epidemia de Mers, no Oriente Médio, e de Ebola, na África.

Pena que não tenha dado certo nessas ocasiões. Mas, fazendo justiça, talvez os cientistas não tenham ido tão a fundo para analisar os seus efeitos. “Primeiro, por não ter muito plasma disponível. Um dificultador era depender de doações”, lembra o hematologista do Einstein. E — que bom! — o mundo melhorou pelo menos nesse quesito. Na marra ou no susto, penso eu com leve amargura. “Preciso reconhecer que, aqui no Brasil, muita gente que teve a covid-19 apareceu para doar”, conta Kutner.

Outro ponto que interrompeu as experiências do passado foi o fato de as epidemias, de alguma maneira, terem se resolvido. Daí, todas as lições preciosas que poderiam ter sido aprendidas com elas não foram completadas. E agora vivenciamos uma pandemia. “No final das contas, porém, a realidade é que, como os estudos anteriores pararam, o uso de plasma convalescente acabou sem comprovação”, conclui Kutner.

Será então que, pelas experiências frustradas — para não dizer frustrantes —, podemos imaginar que esse tratamento também será um fracasso na covid-19? “Não dá para dizer. São doenças diferentes, talvez esse tratamento funcione para algumas infecções e não funcione para outras”, responde o médico. A ver.

A garantia dos anticorpos

Anticorpos por si só — vale explicar — não garantem muita coisa. Para dar um exemplo claro: “Na Aids, temos anticorpos”, aponta Kutner. “Tanto que podemos flagrar a infecção pela presença deles no sangue. Nem por isso esses anticorpos conseguem eliminar o HIV”. Covid-19 e Aids são viroses bem direrentes entre si, fique bem entendido. A comparação apenas ilustra como um raciocínio simplista nunca se dá bem no mundo das infecções.

Aliás, se os anticorpos prontinhos do plasma um dia se mostrarem ineficientes, isso também não quer dizer que anticorpos criados pelo próprio organismo vacinado — no dia em que existir vacina — não conseguirão deter o novo coronavírus.

“Não sabemos nem quantos, nem que tipo de anticorpos estamos oferecendo ao paciente quando lhe injetamos em uma ou, no máximo, em duas doses o plasma de outro indivíduo. Pode ser que, por azar, eles acabem se ligando a uma parte do vírus que não o impeça de agir. E tudo isso pode ser muito mais controlado no desenvolvimento de uma vacina”, diz Kutner.

Como é o procedimento

Ele é o mesmíssimo de uma doação de sangue normal para coleta do plasma. E a transfusão para o paciente, idem. Até aí, sem mistério. “O problema é que, em teoria, deveríamos oferecer um plasma com a maior carga possível de anticorpos. Mas ainda não temos resposta para o seguinte: em qual momento quem já teve a covid-19 está no ápice de anticorpos no plasma, depois de já ter, com toda a segurança, se livrado do vírus?”, provoca Kutner.

Aliás, esse é um problemaço. Se o tratamento não faz o efeito desejado, não dá para saber se o resultado ruim foi devido a um plasma com menos anticorpos do que o necessário.

Os testes para flagrar os chamados anticorpos neutralizantes, diz o médico, nesse caso não são fáceis como aqueles que são feitos só para acusar se uma pessoa teve ou não teve a covid-19. No caso, eles vem sendo realizados no Instituto de Biocências da Universidade de São Paulo, em uma parceria para a pesquisa. A tecnologia é complexa demais e não é encontrada em laboratórios de análises clínicas.

Para saber se o que ajuda é mesmo o plasma

Os resultados do trabalho brasileiro ainda estão sendo analisados, se você quer saber. É também complicado enxergar as proezas do plasma — se é que elas existem. Explico: ninguém brinca com a vida de um sujeito internado na UTI e com dificuldade extrema para respirar. Em outras palavras, o paciente continua recebendo remédios que podem ajudar a salvar a sua vida. Eles vão de antibióticos a anti-inflamatórios. E, portanto, como saber quem fez o quê?

Se um participante do estudo a respeito do plasma se livra da covid-19, o que realmente pode ter feito a diferença para ele ter final feliz? “Aplicamos alguns métodos estatísticos que conseguem limpar esses dados, separar os outros tratamentos e nos dar uma noção mais clara do papel do plasma convalescente de maneira isolada. Mas isso é muito trabalhoso. Daí a demora”, justifica o médico.

Atrás de respostas

Em caminhos paralelos, há quem busque meios de criar, digamos, concentrados de anticorpos para resolver aquela questão da quantidade. Ou até mesmo quem esteja correndo atrás de anticorpos monoclonais, fabricados em laboratório. Mas isso ainda vai demorar um bocado para se tornar realidade dentro de hospitais. Melhor ficar ligado nas questões do presente, ou seja, com os estudos do plasma convalescente que estão sendo realizados.

Quem seria o doador ideal e qual o momento certo para doar? — estas são duas das perguntas que os médicos se fazem. “Por enquanto, estamos usando o plasma doado por quem já teve a doença por mais de 15 dias para evitar que ainda exista vírus circulando em seu organismo”, conta Kutner. Por outro lado, ele e seus colegas não aceitam o plasma depois de 30 dias que a doença passou. Porque sabidamente o número de anticorpos vai caindo com o tempo. E daí talvez não haja quantidade suficiente dessa molécula para surtir um efeito positivo.

Outra boa pergunta é mais cabeluda: qual paciente seria beneficiado? O tratamento, hoje, é aplicado experimentalmente nos casos mais graves. “Só que, nessa fase avançada, uma das questões mais debatidas é que destruir o vírus talvez já não seja a medida mais importante e, sim, atenuar a a resposta inflamatória por todo o corpo, que passa do ponto”, diz Kutner.

Com certeza, ter ou não ter anticorpos seria útil para evitar a doença ou impedir o seu avanço quando o novo coronavírus ainda está pegando leve. Mas, quem sabe, não significaria a cura de quem já apresenta quadros bem avançados. No máximo poderá ajudar e olhe lá. Mas, ok, não estamos em condições de negar ajuda.

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Durma sossegado: a reinfecção pelo novo coronavírus não é o fim do mundo http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/08/26/durma-sossegado-a-reinfeccao-pelo-novo-coronavirus-nao-e-o-fim-do-mundo/ http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/08/26/durma-sossegado-a-reinfeccao-pelo-novo-coronavirus-nao-e-o-fim-do-mundo/#respond Wed, 26 Aug 2020 13:24:40 +0000 http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/?p=9162

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No dia 15 de agosto passado, o chinês de 33 anos voltava da Espanha para casa e, quando seu avião pousou em Hong Kong, como todos os outros passageiros do voo, fez o teste para a covid-19. Fico imaginando que fez isso de boa. Afinal, 142 dias antes, ele tinha sido diagnosticado como mais uma vítima do novo coronavírus, quando passou 72 horas tossindo, com febre alta e quebradeira intensa no corpo. O exame de RT-PCR, então, não deixou margem à dúvida: ele tinha sido infectado pelo Sars-CoV-2. 

Desta vez, apesar de não apresentar nenhum sintoma, o moço foi levado diretamente para o hospital. E lá confirmaram: era esse vírus dando um bis, mas não exatamente o mesmo. O sequenciamento genético mostrou que havia uma diferença mínima aqui, outra ali. Sinal de que não era um descendente direto ou uma cópia do primeiro invasor, como se a mesmíssima doença tivesse sido, digamos, reativada. Era de fato um segundo Sars-CoV-2, uma história novinha em folha, começando do zero. 

Trata-se da primeira reinfecção documentada de que se tem notícia. E há dois dias ela provoca estardalhaço, depois de o artigo que a descreve ter sido publicado. “Mas não é para ninguém perder o sono por isso”, tranquiliza, cheio de confiança, uma das maiores autoridades brasileiras nesse cenário da pandemia, o imunologista Luiz Vicente Rizzo, diretor superintendente do Instituto Israelita de Ensino e Pesquisa Albert Einstein, em São Paulo, e coordenador da Covid Brasil, a coalizão de 70 hospitais que avalia a eficácia e a segurança de novas terapias para tratar a doença provocada pelo Sars-CoV-2. E, bem, se ele diz isso, é mesmo para a gente dormir tranquilo.

Primeiro, respire fundo e pense nos números

É bem verdade que, depois do caso chinês, já apareceram dois outros só ontem — o de uma mulher de cerca de 50 anos, na Bélgica, que ao ser infectada a primeira vez, dizem os relatórios, “não apresentou muitos anticorpos” — o que não quer dizer nada, porque seu corpo se defendeu suficientemente bem para ela se safar do problema. 

O outro episódio, registrado na Holanda, foi o de um senhor octogenário. Prepare-se, porque possivelmente vai ouvir falar de mais casos assim. Agora que os chineses documentaram o primeiro deles, poderá ocorrer uma enxurrada de artigos, relatos, suspeitas à primeira vista. Mas calma: na perspectiva da pandemia, essa enxurrada é chuvisco.

“As pessoas não devem tirar os números da mente”, aconselha o professor Rizzo. “São milhões de pacientes infectados ao redor do mundo e, com muita boa vontade, deve existir apenas uma centena ou, no máximo, poucas centenas de casos de uma possível reinfecção. Ou seja, mesmo se todos eles forem confirmados como tal — e alguns podem nem ser —, estamos diante de um fenômeno muito raro.” 

De fato, bem raro:  de acordo com a Organização Mundial de Saúde, até ontem, 25 de agosto, existiam registrados precisamente 23.518.343 de casos confirmados de covid-19. E todos nós sabemos que essa conta é por baixo, porque existem outros milhões de indivíduos que foram infectados sem a menor desconfiança disso. Ora, reflita: o que são uns cem casos perto desse mar de gente? Um nada. E este é apenas um primeiro ponto para nos tranquilizar.

Reinfecção: por que, no fundo, ela já era esperada

“Esse fenômeno costuma acontecer com outras infecções virais e é sempre assim, com um pequeno número de pacientes perto da quantidade de gente infectada”, explica o professor Rizzo. E saiba que nessas outras doenças — o vírus da catapora e o da rubéola são bons exemplos —, quando há vacina, ela continua cumprindo perfeitamente o seu papel. Não tem lógica alguma imaginar que seria diferente com o Sars-CoV-2.

Portanto, por mais que você leia sobre reinfecção pelo novo coronavírus por esses dias — ninguém garante que não existirão novas notícias do gênero —, jamais se esqueça do seguinte: “Isso não significa que nunca existirá vacina porque nenhuma delas irá funcionar”, resume o professor Rizzo. Se um ou outro imunizante sendo testado por aí não for aprovado, decididamente não será devido ao vírus ser tão imbatível que “até” infectou uma segunda vez raríssimos pacientes.  Não cisme com algo fantasioso assim.

Talvez se pergunte então por que, nesses poucos indivíduos, a reinfecção acontece. Vai saber! “Existe uma série de hipóteses, desde aquela apontando que a resposta das defesas à primeira infecção não foi completa até outras mais complexas”, explica o médico.

Entenda por que o caso chinês é a primeira reinfecção “oficial”

Durante esses seis meses de pandemia que parecem eternos, vez ou outra a gente ouviu a notícia de uma pessoa que poderia ter sido reinfectada. Então, uma boa pergunta é por que razão o paciente chinês está sendo considerado pela ciência como  o primeiro caso de reinfecção. “Por causa do sequenciamento genético, um exame complicado e bastante caro, que não costuma ser feito a torto e a direito, mas que acabou sendo realizado para analisar o vírus desse paciente na primeira vez, naquela infecção inicial, e repetido agora, nessa segunda aparição do Sars-CoV-2”, responde o professor Rizzo.

Quando não é possível fazer essa comparação, a gente não pode jurar de pés juntos se o que parece ser uma nova infecção não seria, em linguagem popular, a mesma de antes que, daí, não teria sido inteiramente superada. Isso sem contar os casos de pessoas que, no início da pandemia, foram tratadas como pacientes de covid-19 por mera suspeita e excesso de cautela, porque em alguns países houve um período em que era mais fácil achar agulha em palheiro do que teste no mercado para confirmar o diagnóstico.

Sofrer mutações é da natureza

Vírus, como me lembra o professor Rizzo, vivem sofrendo pequenas mutações em sua sequência genética. “Aliás, não só vírus, mas toda espécie na face da Terra”, completa o imunologista. Ora, faz parte… Este mundo oferece pressões evolutivas a todo instante e só se salva nele quem conseguir lidar bem com elas. 

Conhecemos de longa data um vírus que — para sorte dele, para azar nosso — sofre mutações que o ajudam a escapar ileso do sistema imune de seus hospedeiros, que somos nós. Eu me refiro ao velho influenza da gripe. “Por causa disso, precisamos tomar uma nova dose da vacina contra ele todos os anos”, diz o professor Rizzo. O imunizante, no caso, é sempre atualizado, acompanhando essas mutações e desmontando a tempo essa estratégia evolutiva.

Outros vírus, porém, sofrem pequenas mutações do mesmo jeito, só quem em outro ritmo — não tão veloz quanto o do influenza — ou em outros pontos de sua sequência genética, que não interferem no reconhecimento que o sistema imune poderá fazer deles. Qual seria então a do Sars-CoV-2? “Ainda vamos aprender”, diz Rizzo. “E, na pior das hipóteses, teremos de repetir a vacina de tempos em tempos, como no caso da gripe. Mas qual seria o problema disso?  Nenhum. Digo que não se trata de um novo grande desafio para a ciência. Muita calma: esse vírus já nos desafiou o que poderia desafiar.”

É natural, portanto, que o novo coronavírus tenha sofrido mutações.  E, mais, que elas sejam minimamente diferentes ao redor do planeta. Pare para pensar: somos mais de 7 bilhões de pessoas neste mundo e temos características diferentes. O novo coronavírus, ao se espalhar por todos os continentes, encontra um sortido e variado de seres humanos como seus hospedeiros.

A pressão que o organismo de uns oferece para o Sars-CoV-2 seguir em frente na evolução é diferente da pressão imposta pelo organismo de outros. Ele provavelmente desenvolve táticas diversas para avançar em grupos de pessoas igualmente diversas. Cada aprimoramento do vírus seria uma pequena alteração em seu, digamos, projeto genético. 

Para saber se é um vírus diferente do primeiro

“Ao analisar o sequenciamento dos genes, os cientistas fazem uma espécie de regressão”, conta o professor Rizzo. “Ou seja, eles conseguem imaginar os passos anteriores desse vírus em seu processo de mudanças e perceber as divergências em relação a como ele era lá atrás.”

Imagine-se examinando o retrato de uma pessoa idosa e conseguindo enxergar o seu rosto quando moça. Em uma comparação um tanto simplista, ao realizarem um exercício do gênero —  só que olhando bem para os genes —, os pesquisadores notaram que, mesmo sabendo que o coronavírus do passado poderia ter se alterado com o avançar desses quatro meses, tal qual uma pessoa que envelhece, não, o vírus desta vez não era o mesmo. Era um outro sujeito. Logo, temos uma legítima reinfecção.

Quanto tempo, então, duraria a nossa imunidade?

Bom aproveitar para esclarecer um papo de que a imunidade para o novo coronavírus só duraria uns três meses: “Ele é furado”, garante o professor Rizzo. De fato, ninguém sabe disso. É um terrorismo desnecessário — já temos a nossa dose de terror com essa pandemia, pra que mais, não é mesmo?

Pergunto ao professor Rizzo de onde viria essa ideia sem fundamento dos “três meses de duração”, a qual parece estar na boca do povo amedrontado. “Vem da experiência com o Sars-Cov 1, na epidemia que aconteceu na China em 2002, e com a epidemia do Mers, em 2012, no Oriente Médico”, ele me diz.

Mas ponto número 1: ninguém sabe como seria com o novo coronavírus. Ponto número 2: a imunidade induzida por uma vacina, quando ela chegar lá adiante, poderá durar até mais. E, finalmente, ponto número 3: repetir a dose de um imunizante de tempos em tempos, se for necessário, não será nenhum drama. 

Drama, na minha opinião, é eu ver gente aglomerada pelas ruas e, pior, sem máscara. Porque para isso a ciência já tem resposta certeira: distanciamento social, higienização constante das mãos e máscaras são as medidas que comprovadamente nos protegem do perrengue. E até das raríssimas reinfecções.

O que podemos aprender com as reinfecções

Se surgirem mais casos de gente reinfectada — e eles devem surgir —, a ciência poderá tirar suas lições. “Será importante saber se essas pessoas  tiveram um segundo quadro de covid-19 mais brando, igual ou até pior”, exemplifica o professor Rizzo. “Ou entender se ele durou mais ou se durou menos, se o paciente sentiu mais ou menos falta de ar.”

A lógica diz que o segundo episódio tende a ser mais fraco do que o primeiro. Afinal, mesmo sendo um reinfectado, esse indivíduo já tem, de partida, um sistema imunológico vencedor, que deu conta do recado. Não importa se apresentou mais ou menos sintomas na infecção inicial, nem mesmo se ficou internado em estado grave no passado. O que vale é que se curou e superou a doença. Então, é dono de um organismo vitorioso no aspecto imunológico.

“Observar as reinfecções não mudará em nada o tratamento”, avisa logo o professor Rizzo. Sim, entendo, uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.  “Mas será ótimo para melhorar ainda mais o desenho das vacinas”, completa. “E principalmente, o que acho até mais interessante, será útil para nos preparar para quando a casa cair de novo.”

Sim, ela deverá cair outra vez — e o professor Rizzo já está de olho no futuro. Novas infecções virais acontecem o tempo inteiro. “Podemos não estar atentos a elas, porque estão acometendo leões e outros bichos na natureza. Com a covid-19, foi a nossa vez. E logo será a nossa vez de novo”, diz o imunologista.

Quando o Sars-CoV-1 na China e o Mers, no Oriente Médio, há quase vinte e dez anos respectivamente, mataram menos gente do que se previa e se resolveram antes de ganharem o mundo, muitos estudos foram engavetados. “Por falta de ânimo ou até mesmo de dinheiro”, lamenta Rizzo. Concordo, talvez a situação fosse diferente se esses trabalhos tivessem seguido.

“Já estamos escapando aos poucos dessa pandemia, por mais que ela ainda tenha um tempo a durar”, observa o professor. “E eu espero que a gente aprenda alguma coisa com ela no sentido também de a ciência não ser deixada de lado, como nos últimos anos. Afinal, diferentemente dos leões do meu exemplo, entre todos os animais o homem é o único que pode ser preparar para uma próxima ameaça.” E ela chegará um dia. Sem desespero, porque a premissa é boa: chegará porque seguiremos vivos.

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Volta da criançada às escolas: faz sentido elas continuarem fechadas? http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/08/25/volta-da-criancada-as-escolas-faz-sentido-elas-continuarem-fechadas/ http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/08/25/volta-da-criancada-as-escolas-faz-sentido-elas-continuarem-fechadas/#respond Tue, 25 Aug 2020 07:00:02 +0000 http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/?p=9115

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Não entra na minha cabeça por que cargas d’água pode ter bar aberto, shopping aberto, restaurante aberto, academia aberta, cabelereiro aberto e… escola de portas cerradas. Queria só entender a lógica, porque me parece que o risco de alguém ganhar um coronavírus de brinde em uma ida a qualquer um desses locais é tão ou mais alto do que na sala de aula. Será que faz sentido, então, a escola permanecer fechada? Sim. Estou convencida disso, mais ainda depois de ouvir o infectologista Francisco Ivanildo Oliveira, chefe do Serviço de Controle de Infecção do Sabará Hospital Infantil, em São Paulo, que é referência em pediatria no país.

“Só daria para as aulas voltarem ou haver uma expansão em seu processo de abertura quando a transmissibilidade do Sars-CoV 2 começasse a cair”, diz o infectologia. Isso, porém, mal e mal dá indícios de acontecer aqui e acolá. E cada cidade terá de avaliar a sua própria situação antes de decidir pela reabertura de creches e escolas. 

“Não existe um número mágico para a gente dizer que ‘a partir daqui será seguro mandar meu filho para a aula’. Portanto, o critério seria observar se há uma tendência de queda nas transmissões por vários dias seguidos — e isso,  para dizer o mínimo. O ideal mesmo seria aguardar uma redução sustentada de novos casos ao longo de, pelo menos, algumas semanas”, ensina o médico.

Ou seja, a gangorra atual — sobe o número de pacientes em um dia e cai no outro — não dá segurança a ninguém. E atenção, como lembra o doutor Francisco Oliveira, isso valeria não só para as escolas, mas para abrir qualquer lugar no final de uma quarentena. Então, do ponto de vista da saúde, a falta de lógica não seria a escola fechada, mas bares, restaurantes, academias, cabelereiros, shoppings e o escambau escancarados. 

Sim, sim, existe o aspecto econômico. E sim, sim, em algum momento a vida teria de tomar um rumo fora de casa. O que, durante uma pandemia, deve acontecer aos poucos e, ainda assim, sempre implicará em algum risco. No entanto, se não dá para voltar totalmente ao normal — e vamos reconhecer que não dará tão cedo —, diz muito sobre uma sociedade por onde ela quer recomeçar e o que ela prioriza.

A maior interrupção da História

Por toda parte do mundo o povo quer saber quando as escolas poderão funcionar numa boa. O Sars-CoV 2, estima-se, afastou cerca de 1,5 bilhão de crianças e adolescentes das salas de aula. O período da pandemia já é considerado pela Unesco — o braço da Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura — como a mais longa interrupção no Ensino de toda a História moderna. 

Tanto a Unesco quanto a OMS afirmam que o afastamento da meninada dos bancos escolares trará um prejuízo inestimável, inclusive para a cognição. Aliás, uma das recomendações é se aplicarem testes para avaliar os déficits de aprendizagem no período de ensino a distância.

Segundo estudo da consultoria McKinsey, nos Estados Unidos cada estudante branco deverá ficar com uma defasagem equivalente a sete meses de conteúdo. No entanto, entre os jovens negros e de origem hispânica, as lições perdidas ou mal assimiladas deverão equivaler a até dez meses de aulas presenciais e tudo devido às desigualdades sociais — uns têm desde sinal de internet melhor até mais espaço para aprender sem outros moradores atrapalhando com outras atividades por perto.

E a volta às aulas presenciais não promete ser fácil. O novo coronavírus se dissemina com facilidade em ambientes cheios e pouco ventilados, como o de muitas salas de aula do Brasil. Sem contar que, se a criança é menos suscetível a ficar doente ao se contaminar com o Sars-Cov 19, isso não significa que ela não possa passar esse vírus para professores e outros funcionários.

A covid-19 na infância

É um erro sair dizendo que crianças e adolescentes são imunes ao novo coronavírus. Os números brasileiros logo desmentem esse papo: segundo o Ministério da Saúde,  até agosto 5.331 meninos e meninas entre 0 e 19 anos foram hospitalizados por causa da covid-19.  Infelizmente, 585 deles morreram.

No entanto, a maioria da garotada abaixo dos 10 anos nem sequer tosse ou dá um espirro. Não fica com coriza, nada. É completamente assintomática. O que lavaria à dedução de que também transmita menos a doença.

A capacidade de transmissão das crianças

Em tese — atenção, apenas em tese —, o próprio fato de uma criança infectada não sair tossindo, nem espirrando por aí e, consequentemente lançando milhares cópias do vírus em gotículas de saliva suspensas no ar, já diminuiria o risco de ela passar o causador da covid-19 adiante.

Algumas boas pesquisas vinham apontando que, abaixo dos 10 anos, a probabilidade de um menino ou de uma menina transmitir o novo coronavírus parecia baixa. Mas um estudo da Universidade Harvard, nos Estados Unidos, abalou essa confiança. 

Segundo o trabalho americano, a carga viral de crianças infectadas é bem maior do que a de adultos  doentes. Entenda: quanto maior a quantidade de um vírus no organismo, a tal carga viral, maior a capacidade de ele se espalhar por onde essa criatura passar. 

Uma crítica é que essa carga foi examinada em crianças com sintomas. Talvez não seja tão alta nas assintomáticas, dizem uns. Aí chegam outros — no caso, pesquisadores do Lurie Children’s Hospital, em Chicago — e demonstram que existe uma carga viral 100 vezes maior no narizinho de pequenos de até 5 anos em relação ao que foi encontrado em adultos. 

Ou seja, a única certeza é de que o perigo de uma criança desenvolver a doença é menor e ele chega a encolher ainda mais olhando para as  formas graves da covid-19. No entanto, se criança transmite muito ou não, essa ainda é uma belíssima dúvida.

Como está sendo lá fora

Se a gente olhar para a experiência de outros países, os problemas surgiram onde a volta às aulas foi precipitada ou feita como se tudo estivesse calmo como antes do primeiro paciente na China. Foi o caso de Israel, que entrou em uma rígida quarentena em março e, quando tudo parecia bem, em maio, reabriu as escolas no esquema velho normal. 

Só que, por lá, não foi uma boa pedida. Em apenas duas semanas de aulas, havia 2.026 alunos e professores infectados. Dos 1.307 casos de covid-19 registrados em Israel no mês de julho, cerca de metade foi contraída no ambiente escolar. 

A Europa, por sua vez, está seguindo a cartilha da cautela. Na Alemanha, por exemplo, as aulas presenciais retornaram agora em agosto, mas de maneira muito escalonada. Professores de grupos de risco foram afastados. O restante faz testes duas vezes por semana e não dispensa  equipamentos de proteção individual. Os alunos foram divididos em turmas menores e nunca podem se aproximar demais de um coleguinha.

Já na Dinamarca, para citar outro exemplo, as refeições são feitas nas classes para evitar aglomerações em cantinas. E a cada duas horas toca o sinal: é para a criançada lavar as mãos.  

Muito além do álcool em gel

“A gente quer mesmo voltar ao normal?”, questiona Tania Araújo-Jorge, coordenadora da pós-graduação em Ensino em Biociências e Saúde da Fiocruz, no Rio de Janeiro. “Afinal, foi esse ‘normal’ que nos trouxe essa situação”, diz ela.

Tania não se refere apenas ao novo coronavírus em si, cuja chegada muitos atribuem ao desequilíbrio ambiental. Ela quer falar das dificuldades dos alunos na própria escola. Pensando nelas, a pesquisadora e seus colegas da Fiocruz lançaram um documento com cinco prioridades para o retorno às aulas.

“A primeira é ter ações para reconectar jovens, famílias e professores”, conta. “E, ainda, criar um esquema de acolhimento emocional para alunos e funcionários, pois  todos podem estar com a saúde mental abalada.”  

As outras medidas têm a ver com o vínculo com o ambiente escolar, a organização de um novo cotidiano — em que o ensino deverá continuar híbrido — e a criação de uma comissão. “Sem receita de bolo, conhecendo a sua realidade, cada escola deverá criar o seu plano”, afirma.

O que os pais precisam saber

“Escuto que é melhor dar esse ano por perdido e o filho só voltar a ter aulas em 2021, imaginando que as coisas estarão diferentes até lá”, conta o doutor Francisco Oliveira. “Ou pais que preferem esperar a vacina chegar. Ou, ainda, que aguardam sentir que as escolas se tornaram lugares seguros. Pois sinto dizer: não vamos ter 100% de segurança nos próximos anos.”

Portanto, vamos ter de nos acostumar com novos hábitos como — batendo na tecla outra vez — manter certo afastamento e reforçar a higienização das mãos. “Também será necessário diminuir o número de contatos na escola”, diz o médico. “Tudo bem que a criança não ficará restrita aos moradores da sua casa. Mas ela não deveria cruzar com várias pessoas, como antes, todos os dias.”

Por isso, os protocolos de segurança incluem medidas para evitar que recreios de turmas diferentes coincidam e aulas presenciais com vários professores diferentes.“Restringir contatos ganha uma importância maior se a criança convive com parentes em grupos de risco, como avós idosos”, explica o médico.

Crianças não devem ser vacinadas tão cedo

Quem espera uma vacina para deixar o filho voltar ao seu mundo deveria saber: quando ela surgir e se surgir depressa, não fará milagres, devolvendo a rotina que conhecíamos do dia para a noite.

“É possível que até mesmo uma vacina boa só consiga oferecer 50%, 60% de proteção”, especula Francisco Oliveira. “E então os cuidados na escola e em outros ambientes não poderão ser relaxados de vez.” 

O principal ponto, porém, é outro: o mais provável é que essa futura vacina seja direcionada para aqueles grupos de maior vulnerabilidade, como idosos, diabéticos, profissionais de saúde… Decididamente, não tem por que crianças estarem à frente nessa fila. “Para completar, nenhum imunizante está sendo avaliado em crianças. Só depois que os cientistas tiverem certeza de que está funcionando em adultos é que os testes serão expandidos para o público infantil.”

Portanto, não dá para esperar a tão sonhada vacina para entregar o filho ao professor. Ainda que aulas presenciais se misturem às pela internet, quando a escola abrir suas portas no tempo certo — leia, com as transmissões despencando — e com os devidos cuidados, o lugar da criança será lá dentro.

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Pecado seria permitir o que uma gravidez pode causar em um corpo de 10 anos http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/08/20/pecado-seria-permitir-o-que-uma-gravidez-pode-causar-em-um-corpo-de-10-anos/ http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/08/20/pecado-seria-permitir-o-que-uma-gravidez-pode-causar-em-um-corpo-de-10-anos/#respond Thu, 20 Aug 2020 07:00:49 +0000 http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/?p=9055

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O caminho que leva uma menina de 10 anos à sala de parto pode ser o seu corredor da morte. Aqui faço o exercício cirúrgico de catar nos escombros da infância — já soterrada, se uma criança vai dar à luz outra criança depois de ser abusada —, só aquilo que pode acontecer com o organismo. Isto é, quando aqueles que são insensíveis à alma dilacerada, mas que ousam pregar a sua salvação, levam uma menina de 10 anos a enfrentar uma gravidez até o final.

Talvez se pergunte por que insisto no tema. Afinal, a menina de 10 anos já está em casa e acabou. E então vou lhe dizer: ela foi para a sua casa assim como outras tantas meninas de 10 anos, aí é que está. Eu me refiro àquelas que não morreram no parto e àquelas que fizeram um aborto em centros de referência, já que o Código Penal, desde 1940, classifica como estupro o sexo com menor de 14 anos, mesmo que a adolescente tenha aceitado a relação.

Sim, há um número absurdo de meninas de 10 anos que voltaram, com ou sem bebê nos braços, para o teto que, muitas vezes, abriga o seu abusador. Aliás, isso é difícil de precisar em um país onde apenas cerca de 10% dos casos de crianças e adolescentes abusados sexualmente são notificados.

O fato é que uma em cada cinco brasileiras se torna mãe antes de virar mulher feita. A América Latina só perde para a África em gravidez na adolescência. E o Brasil com certeza contribuiu para esse segundo lugar. Entre nós, a cada hora são 55 partos em adolescentes, quase 1 por minuto.  

Só em 2015, 5.828 garotas que nem completaram 13 anos tiveram um filho. E note que esse número não considera as que perderam a vida na maternidade ou nas tentativas de interromper a gestação sem assistência hospitalar, tampouco as mães dos bebês que morreram por complicações, nem os abortos feitos legalmente.

Parafraseando o que saiu em redes sociais, lamentável presenciar aqueles que dizem representar Deus, com a missão de defender a vida, abençoarem esse calvário. A gente precisa entender o que acontece e não se calar mais — só não adianta ir reclamar com o bispo.

A idade para engravidar

Cada país classifica a adolescência de um jeito. Para a Organização Mundial de Saúde, ela vai dos 10 aos 19 anos. Mas os quatro primeiros — entre os 10 e os 14— englobam o que se chama de primeira adolescência. “Especialmente nessa etapa, do ponto de vista biológico, o organismo está longe de sua maturidade para suportar as alterações de uma gravidez”, avisa o médico Robinson Dias de Medeiros, presidente da  Comissão Nacional Especializada em Violência Sexual e Interrupção Gestacional Prevista em Lei da Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia).

No passado, ensinavam às meninas que a primeira menstruação — ou menarca — indicava que elas já poderiam de se tornar mães. Na intimidade do organismo de uma garota, porém, isso não confere. “As ovulações não são regulares, nem frequentes, justamente porque o corpo não está pronto”, explica o doutor Medeiros. 

Para começo de conversa, devemos lembrar de cara dos hormônios sexuais, que mal e mal estão entrando na jogada. E são eles que, ao longo dessa primeira parte adolescência,  vão completar o desenvolvimento de todo o aparelho reprodutor feminino — colo do útero, trompas e até mesmo genitais. 

“Com o estímulo sexual repetitivo— e vamos nos lembrar que essas meninas foram abusadas, frequentemente mais de uma vez —,  o organismo pode até entender que é hora de ovular e isso então aconteceria de maneira precoce. Daí uma menina de 10 anos pode dar o azar de engravidar em sua primeira ovulação, vai saber… Mas todo o resto do processo de desenvolvimento acontece depois e precisaria de um tempo maior”, me conta Silvana Quintana, professora da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, onde chefia o departamento de Ginecologia e Obstetrícia e, mais do que isso, lidera o Seavidas (Serviço de Atenção à Violência Doméstica e Agressão Sexual), que atende 26 municípios paulistas como centro de referência para interromper a gravidez em casos de estupros.

O corpo só fica pronto para gestar um filho por volta dos 16 anos — e olhe lá. “Antes disso, fisiologicamente a gravidez é considerada precoce.”, explica a médica. 

Gestação de alto risco

Quanto mais nova é a menina abaixo dos 16 anos — imagine aos 10! —, maior o risco dessa gravidez. “Ele é, no mínimo, cerca de cinco vezes mais elevado em comparação com jovens que engravidam depois dos 20”, calcula o doutor Medeiros. 

Fique claro, no entanto, que não existe gestação sem risco. “Ele pode ser baixo ou alto, conforme a probabilidade de problemas comprometendo a saúde da mãe e de bebê”, explica Silvana Quintana. Entre os exemplos de coisas erradas que costumam ocorrer em gestações de alto risco, onde se enquadram todas as que acontecem cedo demais, estão pré-eclâmpsia, diabetes gestacional, bebês de tamanho muito pequeno, prematuridade…

O osso da bacia pode não ser o maior problema

É na segunda metade da adolescência que os ossos dos quadris se alargam. Mais do que criar o contorno típico do corpo feminino, isso deixa um espaço confortável para um bebê passar. Tal abertura nunca acontece aos 10 anos de idade e isso já foi muito apontado como um dificultador nos casos de gravidez precoce. 

“Só que, na prática, não é bem assim. A maioria das meninas consegue ter parto normal porque o bebê não se desenvolve direito e costuma ser pequeno demais Na verdade, tão pequeno que pode passar por uma bacia estreita de criança”, diz a professora Silvana.

O tamanho do filho, em geral bem abaixo dos parâmetros saudáveis, é prenúncio de complicações para ele — com maior risco de morrer na barriga, asfixiado no parto ou apresentar uma série de dificuldades vida afora. Mas ninguém deve fantasiar essa criança arrebentando os ossos da outra, que lhe deu à luz. 

Isso, porém, não significa ausência de outras questões que merecem cuidado. “Quando falamos no parto, não há só os ossos dos quadris. Existem os ligamentos, por exemplo, que podem não suportar a sobrecarga nessa idade. E não podemos nos esquecer do períneo ”, lembra a médica.

O doutor Robinson Moreira completa que, por menor que seja o filho, o útero de uma menina de 10 anos pode se estirar demais no momento de ele nascer, “como se as fibras chegassem a uma exaustão”, e esse seria um dos fatores capazes de complicar sua vida reprodutiva futura.

Competição por nutrientes?

Essa é uma especulação, ainda sem comprovação científica, para explicar por que filhos de mães adolescentes são tão pequeninos e apresentam deficiências importantes ao nascer — aliás, às vezes nascem bem antes até por isso, porque o ventre materno, em vez de porto seguro, não lhe oferece todo o suporte à vida. 

A ideia é de que o organismo da menina-mãe, também em pleno desenvolvimento,  entre em competição por comida com o do filho. Nessa queda-de-braço, os dois saem perdendo.

Para ter noção, em uma gestação em adulta, a necessidade de cálcio da mulher aumenta até 50% para atender ao filho. Na adolescência, por sua vez, esse mineral também é crucial. “Agora, imagine uma gestação que acontece antes de a menina entrar no estirão, quando a adolescente ganha algo entre 10 e 12 centímetros!”. Nem ela, nem o filho terão cálcio nos ossos para crescer.

Mais importante ainda é a falta de ferro. Espera-se que toda e qualquer gestação provoque uma anemia. “Mas os estudos apontam que ela é muito pior na gravidez precoce, provocando subnutrição fetal, com toda sorte de sequelas, e alterações drásticas no fluxo sanguíneo da menina”, observa Robinson de Medeiros. A prevalência de anemias graves é duas vezes maior em grávidas adolescentes em relação a gestantes com mais de 20 anos.

Falta de pré-natal

A questão nutricional aponta para dois agravantes. Primeiro, a maioria das gestações precoces ocorre em adolescentes de classes sociais mais vulneráveis, segundo o IBGE, que também informa: 7 em cada 10 meninas grávidas são negras e 6 em cada 10 não estudaram ou pararam de estudar por causa do filho na barriga.

A gestação fora do tempo é o risco social mais citado para evasão escolar de meninas de baixa renda. O que, parênteses, já denota certa hipocrisia na situação recente. Se uma menina de classe mais favorecida engravidasse depois de um estupro, não peregrinaria atrás do direito de interromper essa gestação.

“A realidade triste é que essas garotas, quando chegam grávidas no serviço de saúde, costumam já ter anemias e outros problemas decorrentes de carências nutricionais e, daí, tudo piora de vez, tornando o seu estado muito frágil”, comenta Silvana Quintana.

Os profissionais de saúde poderiam contornar a situação orientando a reposição do ferro no sangue, por exemplo. Mas, em parte pela condição social, em parte por não terem maturidade para compreender a importância desse cuidado, 80% das meninas gestantes não fazem o pré-natal direito.  Isto é, quando fazem. “E deve contar para essa baixa aderência ao pré-natal, claro, não ter sido uma gravidez desejada”, reforça Silvana. 

Diabetes gestacional e eclâmpsia

O pré-natal tardio ou inexistente deixa escapar situações que deveriam ser acompanhadas muito de perto. Uma delas é o surgimento do diabetes gestacional, bem mais frequente nas meninas abaixo de 14. A outra é a elevação brusca da pressão sanguínea, que pode disparar a partir da vigésima semana gestacional, no fenômeno da pré-eclâmpsia, duas vezes mais comum em adolescentes, por uma dificuldade maior do organismo jovem para se adaptar a esse estado tão diferente.

Se nada é feito, o problema só piora, muitas vezes levando a um parto bem antes da hora, extremamente prematuro, para tentar salvar a vida da mãe. 

Na hora do parto

Se a gravidez é levada adiante, a pré-eclâmpsia pode virar eclâmpsia pra valer. Ela é capaz de literalmente  fazer explodir vasos por todo o corpo no momento de parir, levar o cérebro a convulsionar e, por um excesso de proteínas que precisam sair de circulação, deixar os rins falidos. A eclâmpsia é, atenção, nove vezes mais frequente nas adolescentes do que nas mulheres acima de 20 anos.

Mesmo sem eclâmpsia, podem ocorrer hemorragias severas — mais comuns no primeiro filho, o que costuma ser o caso das adolescentes. Por essas e por outras, complicações ao dar à luz são a sétima causa evitável de morte entre as nossas meninas. 

Pedras na mão

“As repercussões orgânicas, porém, não chegam aos pés das emocionais. Não há sentido algum em deixar seguir uma gravidez aos 10 anos”, sublinha Silvana Quintana, que só nesta semana atendeu duas garotinhas na mesma faixa etária, na mesma situação que ganhou manchetes.

E esse é o nosso normal de sempre: quatro meninas entre 10 e 13 anos são estupradas por hora em nosso país. Muitas engravidam. Mas os profissionais em toda a cadeia para lhes poupar a vida resguardam a sua identidade, como quem cobre a criança com um manto. Não pode ser justo, certo e bom levar levianamente o caso a público e promover, simbolicamente, um estupro coletivo na frente de um hospital.

Que pelo menos a nossa “menina de 10 anos” — essa, que representa tantas das nossas garotas — não seja esquecida. ”Que esse caso abra uma discussão ampla por mais educação sexual nas escolas, em que as crianças aprendam que adultos não podem tocar em seu corpo”, concorda Silvana Quitanda. “E que os profissionais de saúde e de ensino sejam treinados para reconhecer os sinais da violência sexual, porque ela nunca está sozinha. Geralmente há pistas, um descuido, um descaso, um jeito de inferiorizar a menina”, nota a médica.

Por fim,  garantir o direito sagrado de uma escolha que nunca é fácil. Mas é um direito de uma menina mulher. E ainda que, na cabeça de uns, fosse pecado salvar a sua vida , não compreendo como pegam a pedra que aquele, o qual dizem ser o seu maior exemplo, mandou largar.

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Estudo mostra que pitadas de canela podem reduzir inflamações pelo corpo http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/08/18/estudo-mostra-que-pitadas-de-canela-podem-reduzir-inflamacoes-pelo-corpo/ http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/2020/08/18/estudo-mostra-que-pitadas-de-canela-podem-reduzir-inflamacoes-pelo-corpo/#respond Tue, 18 Aug 2020 07:00:37 +0000 http://luciahelena.blogosfera.uol.com.br/?p=9026

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Nestes tempos duros de engolir, com notícias tão indigestas e sabor de infância perdida, encontro doçura entre as minhas leituras de ciência — um trabalho recém-saído do forno, comprovando em gente como a gente a ação anti-inflamatória da velha e boa canela.

Que ela é velha conhecida ninguém discute, porque há relatos de seu uso desde os tempos do Antigo Egito e, por aqui, chegou logo pelas mãos dos descobridores já que, ainda em 1518,  os portugueses dominaram o mercado da canela no Ceilão, atual Sri Lanka.  E, bem, dizer que ela é boa pode até ser questão de gosto. Mas não conheço alguém que deteste canela, com seu perfume de bebida quente, de doce de vó, de lanche da tarde. 

O estudo em questão chamaria a minha atenção de qualquer jeito — já, já explico o porquê. Mas eis que noto entre os autores de duas instituições chinesas e uma turca, o nome do nutricionista brasileiro Heitor Oliveira Santos, pesquisador da Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais, com quem consegui falar ontem mesmo.

“O que a gente buscou avaliar foi o efeito da canela em inflamações de baixo grau”, me disse ele, referindo-se a um estado inflamatório perene, que pode não ser forte como o de uma garganta repentinamente toda dolorida após ser acometida por uma infecção, mas que é constante e que vive pirraçando a saúde da cabeça aos pés.

É o que acontece em quem tem síndrome metabólica, envolvendo o excesso de peso, o diabetes tipo 2 e a gordura no fígado ou esteatose hepática. Ou em quem tem artrite reumatoide, problema que ataca as juntas do corpo e que derrama moléculas inflamatórias na circulação. “Foram os efeitos da canela em pacientes com doenças assim que a maioria dos estudos que nós analisamos avaliou”, conta.

Por que dá para confiar

Sim — e essa seria a razão por que o trabalho teria despertado a minha curiosidade de qualquer jeito —, Heitor e seus colegas primeiro se debruçaram sobre 1.145 estudos já realizados sobre a ação da canela. E, depois, selecionaram 12 deles para realizar o que em ciência se chama de meta-análise, uma forma de combinar os achados de pesquisas diferentes sobre um mesmo tema, aumentando o número de pacientes envolvidos e, consequentemente, a segurança de que os resultados em comum são confiáveis pra valer.

Mais interessante ainda: a dúzia escolhida para a tal meta-análise foi toda composta de estudos randomizados e controlados, isto é, com participantes sorteados aleatoriamente para ficar ou não no grupo que consumiu canela por um período de dez a 110 dias.  E o adjetivo “controlado” indica que os cientistas procuraram controlar todas as variáveis, sem comparar quem tinha diabetes com quem não tinha, por exemplo. Essa explicação é importante porque, no reino da nutrição, a gente adora — eu também, quem nunca?— dizer que determinando alimento faz isso e mais aquilo sem que a informação se baseie em algo tão rigoroso.

Além disso, muitas vezes, a quantidade que seria preciso consumir de algo para ver os efeitos propagados equivaleria a uma montanha. Não foi o caso aqui: “A porção de canela equivaleria a de 1 a 2 colheres de cafezinho por dia ou a 1 colher de chá, no máximo. Enfim, algo viável de ser incorporado na rotina”, diz Heitor Santos.

O que acontece graças ao consumo diário

Essa quantidade de canela, consumida dia após dia, se mostrou capaz de reduzir o nível de duas substâncias que deduram inflamações pelo corpo — a interleucina 6 e o malondialdeído. “Esta molécula de nome estranho é muito usada em pesquisas de laboratório para a gente descobrir se existe a tal inflamação de baixo grau”, fala Heitor Santos. 

Os pesquisadores observaram  ainda os efeitos dessas pitadas sobre uma terceira substância, esta mais conhecida nos consultórios porque há algum tempo os médicos pedem para seus pacientes dosá-la — a proteína C reativa ou, simplesmente, PCR. O excesso dessa molécula pode indicar uma propensão para inflamações nos vasos sanguíneos, as quais, por sua vez, seriam o estopim de placas nas artérias, apontando para o risco de infartos e AVCs. 

“Um diferencial do nosso trabalho foi que comparamos os efeitos de dois tipos diferentes de canela, a chamada cassia e a ceilon e, embora ambas tenham baixado o tal malondialdeído, apenas a primeira diminuiu consideravelmente os níveis de PCR no sangue.”

Na comida ou no chá?

Será então que a gente deveria prestar a atenção no tipo de canela que compra no mercado? “Besteira fazer isso”, rebate o pesquisador. “O melhor seria criar o hábito de comer uma fruta, um iogurte, uma panqueca, enfim, a porção de alguma comida salpicada de pó de canela todo dia.”

Até porque, mais do que diminuir  as substâncias inflamatórias, os dois tipos também aumentam a capacidade de o organismo se defender dos radicais livres. Ou seja, alguma vantagem sempre existirá.

Pergunto, então, se não valeria tomar um chá feito com um pauzinho ou outro de canela — que, na verdade, é um pedaço da casca dessa árvore, cortada de um jeito que, depois, se regenera. “Até dá para se beneficiar de um chá, deixando a água mal levantar fervura com a canela dentro da panela para desligar o fogo, cobrir e aguardar pelo menos 10 minutos de infusão”, ensina o nutricionista, mas sem esconder que ainda prefere o consumo da canela em pó. 

Heitor Santos justifica: “o problema do chá é que fica mais difícil padronizar a quantidade de polifenois e de outros bioativos dessa espécie que vão parar no líquido, enquanto se eu consumo a forma em pó, como se fosse um comprimido de suplemento, tenho certeza de que estou ingerindo aquilo.”

Claro, não é um pouco de canela que vai nos deixar saudáveis. Ela não é a salvação do mundo. Mas gosto de pensar que até ele pode se salvar pela somatória de coisas simples, como dançar na sala de casa, vestir uma máscara de pano ao sair,  cultivar doces gentilezas, desligar o celular ao ir para cama, comer uma fruta mais por dia e a partir de agora, quem sabe, salpicá-la com canela. A gente conquista saúde (e o mundo) é de pitada em pitada.

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