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Quer saber o que castiga pra valer o fígado? Não, não acuse só o álcool

Lúcia Helena

27/03/2018 04h00

Crédito: iStock

Já virou recurso barato, usado quando a criatividade dá aquela zerada, contar que alguma coisa tem mais de mil e uma utilidades. Mas o seu fígado tem mesmo, ao pé da letra. As funções das 50 bilhões de células hepáticas ultrapassam a casa do milhar. Na verdade, tudo o que envolve o fígado é grandioso. Infelizmente, o desconhecimento em torno dele também.

Na semana passada, foi apresentada uma pesquisa inédita com 1.500 pessoas entre 18 e 65 anos, moradoras de São Paulo, Rio de Janeiro, Brasília, Recife e Porto Alegre. A realização foi do Instituto Oncoguia em parceria com a Bayer. O Oncoguia é uma associação civil sem fins lucrativos, fundada em 2009 e respeitadíssima por suas ações de conscientização e apoio aos pacientes.

E, antes que pensem que o objetivo era defender alguma nova droga ou tratamento, a ideia era simplesmente revelar a percepção dos brasileiros sobre o carcinoma hepatocelular — nome em "medicinês" para o câncer de fígado. Pois a enquete acertou em cheio no preconceito, mal que, feito o próprio tumor, grassa sem dó nem piedade e atrapalha a Medicina de fazer o flagrante. Você já vai entender…

Apesar de 53% dos entrevistados garantirem que conheciam esse câncer,  61% deles não tinham noção dos sintomas. E, até aí, eu mesma acho que seria pedir demais para qualquer um. Justamente porque o fígado apronta milhares de tarefas ao mesmo tempo, se ele está doente, várias delas saem dos conformes e a bagunça na saúde é ampla, geral e irrestrita. Difícil sentir uma esquitice só.

Ora, o fígado normalmente monta e desmonta nove em cada dez proteínas de que você precisa; destrói aqueles micróbios que driblaram suas defesas no intestino; troca glóbulos vermelhos que já estão envelhecidos por células sanguíneas novinhas em folha; possibilita a absorção de certos nutrientes e armazena outros tantos. Essa é só uma amostra da trabalheira.

Basta que você guarde o seguinte: tudo o que entra no seu organismo, das moléculas de um remédio aos nutrientes da comida, passando pelo sempre citado álcool, faz escala nessa glândula. Como lembra o hepatologista Flair José Carrilho, professor da Universidade de São Paulo e um dos consultores da pesquisa do Oncoguia, seria papel das células hepáticas separar o joio do trigo —  o que segue pela circulação para que outros órgãos façam bom uso, o que fica reservado para outra hora  e o que deve ser destroçado ali mesmo.

Um fígado saudável dá conta disso tudo. O aspecto traiçoeiro é que não reclama do serviço árduo, se está em péssima forma. Até porque nem possui nervo para mandar uma mensagem dolorosa ao cérebro. Já  a membrana que o reveste, esta, sim, é inteira inervada. Nas doenças  crônicas, que se desenvolvem lentamente, esses nervos se estendem aos poucos, sem disparar um "ai". Só provocam berros em situações graves — por exemplo, quando um  câncer já avançado faz o fígado aumentar até cinco vezes de tamanho.

Na pesquisa, o cenário ficou feio quando se notou que muita gente ignora que fatores podem deixar uma situação chegar a esse ponto doloroso:  76% dos entrevistados apontaram o dedo em riste para o consumo excessivo de bebida alcoolica. Ela pode estar por trás da doença? Sim, claro que sim.  No entanto, menos de metade dos entrevistados relacionou os tumores com as hepatites B e C e com um quadro que andamos aceitando, conformados, com assustadora facilidade. Eu me refiro à esteatose, quando a gordura fica entranhada por toda a glândula. Se isto aqui fosse um quiz, ficasse você logo sabendo: as ameaças ignoradas são as maiores. 

Não vou diminuir o perigo de exagerar no álcool — e, tão grave quando a bebedeira, seria tomar uns goles aparentemente inocentes sempre, sem dar trégua  para o pobre fígado se recuperar do happy-hour anterior. A bebida, assim como alguns remédios fortes, em maior ou menor grau, irrita a membrana das células hepáticas. Então, de bar em bar, de agressão em agressão, elas se transformam em um tecido conjuntivo, semelhante ao de uma cicatriz: é a cirrose. E toda cirrose pode se bandear para o lado do mal, virando um câncer. Aliás, por si, ela já é um perrengue, porque não trabalha. Torna-se um pedaço inútil de fígado e, quanto menos sobra dele funcionando, mais lentas ficam todas aquelas atividades. A saúde, nesse ritmo, vai para o brejo.

Mas eis a primeira barreira ao tratamento do câncer: os pacientes com esse quadro se sentem intimidados, para não dizer culpados. Não raro, optam pelo isolamento social e não fazem exames para saber se têm cirrose, se ela aumentou e se, por acaso, virou uma lesão maligna.  Em tempo:  os exames de imagem é que detectam o tumor na glândula, ok? Explico isso porque 80% dos respondentes da pesquisa não sabiam como era feito o diagnóstico.

As hepatites virais B e C são igualmente cercadas de estigmas que afastam os portadores dos exames periódicos, por mais maluco que seja alguém se envergonhar por ter uma infecção. Essas hepatites muitas vezes se tornam crônicas e, daí, também desencadeiam a cirrose.

Segundo os especialistas envolvidos na pesquisa do Oncoguia, as pessoas evitam exames para não descobrir ou não assumir que têm uma infecção relacionada a um estilo de vida mais… "promíscuo". Bobagem sem fim. A contaminação acontece pelo sangue e a maior parte dos pacientes de hoje adquiriu a doença por transfusões  realizadas antes de 1993, quando não havia o controle sorológico das bolsas de doadores. Ou, ainda, pela transmissão de mãe para filho, durante o parto.

O fato é que tudo se mistura. Quem tem hepatite C e bebe álcool, ainda que socialmente, multiplica a sorte do azar. Ou mesmo acontece se é portador da hepatite C e engorda demais. Ou se bebe sempre e é obeso. Isso tudo aumenta  a quantidade de  gordura infiltrada no fígado, problema por trás de metade dos cânceres e cada vez mais comum, em função da escalada da obesidade e do diabete tipo 2 — este, tremendamente ligado à esteatose.

A gordura espalhada por toda a glândula produz um estado de inflamação constante. Aliás, não me conformo quando alguém diz que "fulano está com uma leve esteatose" , como se fosse um problema singelo. É sempre uma baita encrenca. E o mais triste é que já vemos até mesmo crianças  com gordura acumulada no fígado.

Para a esteatose não há outro remédio que não seja suar a camisa, fechar a boca para alimentos muito calóricos e  emagrecer. Já para remediar o câncer de fígado, além do arsenal da Medicina, seria preciso eliminar tabu de viver com algum problema hepático, que faz com que 62% dos brasileiros diagnosticados com um câncer nesse órgão estejam em um estado tão avançado que sobra pouco ou quase nada a ser feito. Faz sentido uma coisa dessas? Penso que não.

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Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.