Infertilidade: os espermatozoides dos brasileiros já não são mais aqueles
Lúcia Helena
21/08/2018 04h00
Crédito: iStock
Na natureza, o acasalamento costuma ser sinônimo de vale-tudo — patadas, bicadas, mordidas e arranhões. É feia a briga entre os machos para conquistar uma fêmea. Uma vez determinado o vitorioso, começa outro confronto, este dentro do corpo da parceira, onde milhões de espermatozoides competem por um óvulo. O que vencer a corrida passará seus genes para a próxima geração e, na evolução das espécies, não há troféu maior. Embora os homens não saiam literalmente aos tapas por uma mulher — assim espero, meninos — , a parte invisível dessa prova de resistência não é nada diferente. A questão é que, de acordo com uma pesquisa da Universidade Estadual de Campinas, a Unicamp, os espermatozoides dos brasileiros já não têm a mesma perfomance de atletas sexuais que exibiam no passado.
Rapazes deste Brasil varonil, aviso: vocês não estão sozinhos no mundo. Desde os anos 1990, cientistas de diversos países levantam a suspeita de que a qualidade do sêmen está em franca derrocada. Isso pode estar por trás da dificuldade de alguns casais para engravidar, já que 40% dos casos de infertilidade são explicados por problemas no organismo feminino, mas outros 40% têm a ver exclusivamente com a saúde masculina e 20%, com a de ambos.
Estima-se de 15% da população mundial tenham problemas de fertilidade e que, só no nosso país, uns 200 mil casais não consigam gerar bebês pelo prazeroso caminho do sexo, necessitando de ajuda médica para uma reprodução assistida. "Se os números que encontramos em nosso estudo continuarem piorando, essa dificuldade se tornará cada vez mais comum", prevê a bióloga Anne Ropelle, com quem conversei para entender mais a respeito dessa minúscula e combatente porção masculina, o espermatozóide.
Anne Ropelle me contou que sempre quis trabalhar com reprodução humana e, por isso, em seu trabalho de mestrado, sob o orientação do ginecologista Luiz Francisco Baccaro, resolveu focar nas informações sobre a qualidade do sêmen de nada menos do que 18.902 amostras de 9.495 homens — a maioria deles fez duas coletas, com o intervalo de praxe de 15 dias entre elas. Todos procuraram, em algum momento entre 1989 e 2016, o Hospital da Mulher Prof. Dr. J. A. Pinotti – Caism, em Campinas, com a queixa de tentativas fracassadas de engravidar suas parceiras.
O que mais me chamou a atenção foi o número enorme de homens envolvidos e o acompanhamento de dados colhidos em 27 longos anos. É que a maioria dos estudos parecidos, realizados mundo afora, analisa uma quantidade menor de amostras por um período bem mais curto. Mas esse nem é o ponto principal: eles recebem críticas porque misturam informações de espermogramas feitos com metodologias diferentes, por laboratórios diversos, ou seja, comparam lé com cré. Não é o caso da investigação da Unicamp. Os milhares de exames foram realizados no mesmíssimo lugar, pela mesma equipe, com um método que permaneceu inalterado. Seus dados, assim, são mais confiáveis e indicam, sinto dizer, que os espermatozóides já não têm a qualidade premium de duas décadas atrás.
As coletas foram avaliadas por três padrões. O primeiro deles foi a concentração. O normal seria encontrar uma quantidade igual ou maior do que 15 milhões de espermatozoides em uma gota de 1 único mililitro de sêmen — e, aproveitando, o volume seminal deve ser superior a 1,5 mililitro, o que parece pouca coisa, mas já garante muita barriga por aí.
Pois bem: entre 1989 e 1995, para você ter uma ideia, a média de concentração dos espermatozoides era de 86 milhões por mililitro. Daí em diante, se nota a queda. No período entre 2011 e 2016, embora ainda dentro da faixa de normalidade, a média ficou em 48 milhões no mesmo volume, pouco mais de metade da concentração anterior . Em tempo: para os curiosos, o volume de uma ejaculação continua em torno de 2 a 3 mililitros de sêmen.
O segundo parâmetro analisado foi o da motilidade progressiva. Talvez se pergunte: por que progressiva? Porque é pra frente que se anda! Mas, se olhasse para qualquer amostra de sêmen sob as lentes de um microscópio, veria que tem muito espermatozoide se movendo como um cachorro correndo atrás do próprio rabo. Outros voam como se estivessem em uma Fórmula-1, a toda velocidade, mas circulando longe da reta final, que levaria ao óvulo. Há também uma parte que abana a cauda de um lado para outro como quem dá tchau aos companheiros que dão a largada, sem se deslocar 1 milímetrozinho adiante.
Os espermatozoides errantes sempre foram maioria. Tanto que a Organização Mundial de Saúde aponta como normal ter apenas 32% deles com motilidade progressiva, movendo-se em uma linha reta de 25 centímetros, o percurso da vagina ao ponto de chegada. Entre 1989 e 1995, os homens analisados estavam bem acima disso: 47% dos seus espermatozoides seguiam em frente. Mas, entre 2011 e 2016, a porcentagem caiu para 36%.
No terceiro e último quesito, o da morfologia, os homens do estudo ficaram abaixo do ideal. Seria saudável se pelo menos 4% dos espermatozoides fossem tipinhos como a gente aprende na escola: com uma cabeça graúda, um corpo minúsculo e uma cauda. A realidade é que, no batalhão ejaculado pelos machos da espécie humana, tem um pouco de tudo: espécimes com duas cabeças, com a cabeça muito pontuda, com dois rabos, com uma cauda curta demais ou comprida além da conta… "Além dessas características dificultarem sua motilidade ou a tarefa de penetrar no óvulo, elas indicam possíveis problemas no DNA, que acabariam atrapalhando", diz Anne Ropelle. Pois bem, entre 1996 e o ano 2000, 12% dos espermatozoides dos nossos homens eram figuras bem normais. Agora, só 3,7% deles.
Há muitas explicações para a qualidade ter despencado. "Tudo o que faz mal para o coração e outros órgãos vitais, por exemplo, também afeta o sêmen, como o tabagismo, o excesso de álcool, o sedentarismo, que são mais frequentes hoje em dia", explica Anne Ropelle. Mas, para ela e seus colegas da Unicamp, a principal suspeita recai sobre a epidemia de obesidade.
Segundo Anne, a gordura periférica, acumulada nos pneus pelo corpo, notoriamente causa um desequilíbrio entre testosterona e estrógeno, fazendo o organismo deles produzir doses ligeiramente maiores desse hormônio feminino. Sem contar que as moléculas gordurosas afetam a composição e o pH do líquido seminal. Daí, os minúsculos atletas sexuais mal vão à luta. Ou perdem a prova por WO.
Sobre o autor
Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.
Sobre o blog
Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.