A melatonina aumenta a gordura marrom: por que isso é uma grande revelação
Lúcia Helena
19/02/2019 04h00
Crédito: iStock
A fama que uma das protagonistas deste texto tem de ser a substância do sono está errada. E desfazer esse engano de cara é bom para você entender seu envolvimento com a gordura marrom –aquela que, em vez de estocar energia, faz o corpo queimá-la a fim de permanecer quente o bastante para continuar funcionando. "A melatonina é o hormônio da noite e não o do sono", esclarece o endocrinologista Bruno Halpern, autor de um trabalho realizado com pesquisadores da USP (Universidade de São Paulo) que acaba de sair na Diabetes, a revista da American Diabetes Association.
Fácil entender por que o estudo brasileiro conquistou espaço em uma das publicações médicas mais influentes do mundo: ele prova que a melatonina aumenta a produção de gordura marrom em seres humanos. Isso abre o caminho para novas investigações que, na certa, influenciarão a minha e a sua vida, já que essa história toda mexe com o nosso colesterol, os triglicérides, a resistência à insulina que nos deixa a um passinho do diabetes e, sim, quem sabe, com a obesidade que assola o planeta.
É moleza explicar tudo quando a gente fala com o Bruno Halpern, médico com aquele dom natural para contar as boas histórias da ciência. Claro, a que compartilho aqui é particularmente interessante. E tudo pode começar assim…
Já se sabe há um tempão que, no inverno, quando hibernam, os animais produzem mais melatonina. Ora, será que fazem isso porque dormem o tempo inteiro? Não. Simplesmente porque, nessa estação, as noites são mais longas. "Se fosse questão de dormir, como explicar que as espécies de hábitos noturnos, que passam as madrugadas de olhos acesos, sejam capazes de produzir sua dose de melatonina?", indaga Halpern, provocando o raciocínio.
Também já se sabia que os animais hibernantes têm um bocado de gordura marrom, uma estratégia inteligente para protegê-los do frio. Mais: que a melatonina teria a ver com o aumento dessa gordura que torra, em vez de estocar, calorias.
Em seres humanos, porém, durante muito tempo se acreditou que apenas recém-nascidos teriam a bendita gordura diferente –e isso para garantir a temperatura ideal do corpo no momento em que acordam. Só que, em 2009, realizando exames de imagem por emissão de pósitrons ou PET, mais usados para flagrar o câncer, cientistas enxergaram nos pacientes um tecido diferente que não era um tumor: era mesmo gordura marrom, concentrada no pescoço e nas axilas.
Sim, pessoas adultas têm gordura marrom. Umas mais e, sinto muito, outras menos. Em geral, magros mais e… obesos menos. "Não sei dizer se isso é causa ou consequência, ou seja, se o organismo com obesidade entende que não precisa mais garantir o seu calor e, então, produz menos gordura marrom, ou se, por ter uma quantidade menor dela, engorda com facilidade", diz Halpern que, aliás, é vice-presidente da Federação Latino-Americana de Obesidade, além de dirigir o departamento dedicado a essa doença na Sociedade Brasileira de Diabetes.
Foi bem aí que a ideia bateu em sua cabeça: será que, assim como em alguns animais, a melatonina ajudaria o nosso corpo a fazer mais da tal gordura marrom? Para obter a resposta, o endocrinologista pegou pessoas que não produziam nem sequer uma gota desse hormônio, em função de tumores bem onde ele é produzido, isto é, na pineal, a glândula em formato de uma pinha, com uns 5 milímetros, situada no meio do nosso cérebro. Nesses indivíduos, por causa da doença, essa estrutura foi retirada.
Segundo Halpern, grupos assim pequenos e com problemas pouco frequentes, quase uma exceção, são usados em estudos como o dele, que a ciência chama de prova de conceito. Ou seja, são aqueles trabalhos capazes de mostrar que uma teoria faz total sentido. Desse modo, abrem uma picada para o avanço de mais e mais pesquisas seguindo na mesma direção –aí, sim, envolvendo grupos de pessoas comuns. A prova de conceito, portanto, é o pontapé inicial de possíveis grandes revelações, eu diria.
E veja aqui no caso: provavelmente não falta gente com alguma deficiência de melatonina. Idosos –que a produzem menos por natureza —, quem troca a noite pelo dia trabalhando, quem fica horas e horas diante de telinhas e telões na cama e a imensa turma que precisa tomar beta-bloqueadores para baixar a pressão arterial (sim, esses medicamentos para tratar a hipertensão reduzem a melatonina). Será que, amanhã ou depois, a partir desse estudo inicial, novas pesquisas apontarão que esses grupos poderão afastar a síndrome metabólica repondo a substância da pineal?
Durante três meses, os indivíduos acompanhados por Bruno Halpern e seus colegas da USP tomaram uma reposição diária de 3 miligramas de melatonina. No final do período –espetacular! — , todos tiveram um aumento da gordura marrom e, por causa disso, uma boa melhora no perfil de colesterol, uma redução dos triglicérides e, ainda, uma discreta diminuição da resistência à insulina. Mas, atenção, muita atenção: esse aumento de gordura marrom não levou a uma diferença de peso. "Talvez isso até aconteceria se todos fizessem a reposição por um período maior", pondera Halpern, que deverá seguir com essa linha de investigação.
O médico também diz que esse estudo reforça dados epidemiológicos já existentes de que estar exposto à luz durante a noite pode ser um fator para ganhar peso ao longo da vida — um cutucão para quem acha que obesidade é só comer demais. O problema é muito mais complexo.Uma das possibilidades que o trabalho de Halpern cria para os cientistas é separar grandes e pequenos produtores de melatonina naqueles grupos mais encontrados da população (como já citei, os insones, os mais velhos, os hipertensos fazendo uso de beta-bloqueadores…).
No check-up de rotina, ninguém pede para você dosar a melatonina porque não é tão simples, mas em pesquisa médica isso é possível, analisando a substância na urina e na saliva várias vezes durante a noite. E por que várias vezes: porque ela sempre tem um pico e é esse pico que dá a real medida, apontando se está a contento ou se está de fato deficiente. Só dessa maneira para ter certeza que a melatonina está baixa, embora seja possível que, na prática, um bom médico levante a suspeita clínica.
Mas alto lá! Nada de presumir benefícios e sair engolindo o comprimido de melatonina que encomendou ao amigo em viagem. "Ela é um hormônio", avisa Bruno Halpern, que faz uma ótima comparação: "Se eu prescrever hormônios tireoidianos para quem tem hipotireoidismo, seu organismo irá tirar proveito. No entanto, se quem tem tireoide normal tomar esses hormônios, haverá consequências negativas." Não seria diferente quando se trata do hormônio da noite. É primordial descobrir quem se beneficiaria (e quem se prejudicaria) com a reposição.
Então, quer botar seu organismo para produzir gordura marrom com o empurrãozinho providencial da melatonina? Mais fácil e mais seguro corrigir alguns hábitos: durma nos mesmos horários para cerrar bem os olhos, num quarto sem qualquer iluminação e com cortinas ou venezianas fechadas, sem levar o celular para a cama, nem ligar a tevê. Pois é na completa escuridão noturna que o hormônio dá as caras e faz a tão sonhada gordura marrom.
Sobre o autor
Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.
Sobre o blog
Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.