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Refluxo não é má digestão. É uma doença que a gente nunca deveria ignorar

Lúcia Helena

18/04/2019 04h00

Crédito: iStock

Pode ficar de queixo caído: mais de 20% das pessoas que baixam no pronto-socorro com essa queixa não estão tendo um treco no coração, mas sofrem de outro problema. No caso, uma doença crônica que, quando aparece, acompanha o sujeito por toda a vida feito um encosto. E que causa um engano atrás de outro. 

Vou ficar no mesmo exemplo, o do sujeito com queimação atrás das costelas, para que você perceba a enorme confusão: ao saber que era uma azia em vez de um infarto, a criatura começa a achar que esse ardor é uma mera consequência de algo que caiu torto na barriga. Ela jamais imagina que seja um mal por si só. E é. Aliás, deixa eu dar o nome completo: doença do refluxo esofágico.

Outros indivíduos ficam ainda mais atordoados. Nem desconfiam que a origem do pigarro, da tosse ou até mesmo da asma — pois é, às vezes a asma também tem a ver com isso—seja essa doença, em que o conteúdo ácido do estômago sobe, desafiando a lei da gravidade. 

O problema é que o líquido estomacal é tão ácido, com seu pH de 1 ou 1,5, que só esse órgão está preparado para suportá-lo sem se sentir agredido. As cordas vocais, ou melhor, a garganta inteira em geral não aguenta. Fique sabendo que a rouquidão constante pode indicar uma doença do refluxo.

De certa maneira, é mais fácil quando o líquido estomacal sempre alcança a boca. Isso porque daí, ao menos, há uma pista: dá para a pessoa sentir seu gosto pra lá de azedo, muitas vezes trazendo consigo um pedaço daquilo que ela mastigou e engoliu horas antes. É o regurgito. Quem tem a experiência, que está longe de ser das mais agradáveis, logo pensa em um problema digestivo. Chuta na direção certa. Mas nem sempre isso acontece. Isto é, os sinais do refluxo podem desviar o olhar da vítima.

Ora, pode ser que o azedume nem suba tanto para ser sentido pelo paladar e fique somente o esôfago, onde já faz belos estragos.  Mas isso, por sua vez, afeta outras bandas. Quem explica o porquê é o médico Decio Chinzon, professor da Universidade de São Paulo e presidente eleito da Federação Brasileira de Gastroenterologia. "No embrião, a origem do esôfago é a mesma dos pulmões", justifica. 

Esse elo ancestral faz com que as terminações nervosas desse tubo — que desce do final da garganta até o estômago —,  uma vez excitadas pela invasão ácida, mandem sinais que irritarão seus primos distantes. E, sem nem saber de onde vem a pirraça, eles costumam reagir a distância com bronco-espasmos, pigarreando e disparando o reflexo da tosse. O paciente, então, vai parar no pneumologista, o médico dos pulmões… Fácil você ver que provavelmente ele não sairá dali com o diagnóstico correto, pelo menos não tão depressa. Diagnóstico que a endoscopia solicitada pela maioria dos gastros ajudaria a esclarecer.

Segundo a pesquisa  "Mapa dos Problemas Digestivos no Brasil",  realizada pela GFK para a farmacêutica Takeda, seis em cada dez brasileiros não fazem a menor ideia disso tudo.  Nem sabem da existência da doença do refluxo. Quando muito, para elas, tudo é sintoma de má digestão.

Além de arrasar com o bem-estar no dia a dia — a maioria das vítimas perde a qualidade do sono e acorda inúmeras vezes na madrugada sem se dar conta  —, a acidez constante subindo até onde não deveria acaba sendo um fator de risco para o câncer de esôfago. Sim, tem que tratar — com medicamentos ou até mesmo cirurgia. Se para de tomar remédio, tudo volta ligeiro. E, nos  pacientes operados, o refluxo também pode retornar devagarinho. Não é coisa assim tão simples de resolver…


A encrenca toda não acontece por que você comeu algo muito azedo, por exemplo. Vale esclarecer: em matéria de alimentação, quem tem refluxo precisa tomar bem mais cuidado com o que é doce ou muito gorduroso, em vez de ficar reparando se os alimentos são mais ou menos ácidos. 

A origem da doença, na realidade, está em uma pequena válvula, o esfíncter inferior do esôfago, que deveria se abrir apenas quando o indivíduo engolisse algo — comida ou bebida —, fechando-se logo em seguida, sem perda de tempo. Mas que nada! No paciente com refluxo, a válvula bendita se escancara em hora errada e nem se fecha direito.

Em alguns portadores da doença, ela perde seu tônus. Por trás dessa fraqueza pode existir até mesmo uma hérnia de hiato, quando o estômago avança e empurra o esôfago, por assim dizer.  Desse jeito, mais frouxa, a válvula não segura tanta pressão — pressão que é sempre maior no abdômen em relação ao tórax. Por uma antiga lei da Física, o que está na área de maior pressão migra num pulinho para onde ela está menor. Portanto…

Bem mais frequentes são os casos em que o esfíncter, feito um sem-noção, se abre do nada, isto é, quando a pessoa não deglutiu coisa alguma. E, por fim, tem gente sofrendo de refluxo porque algo faz aumentar demais a pressão no abdômen. Pode ser que o sujeito viva trabalhando agachado ou completamente curvado na cadeira, apertando sem querer a barriga.

Somam-se ainda os fatores de risco. A obesidade é, de longe, o principal deles. O uso de certos remédios pode ser outro. E maus hábitos pioram tudo, como dormir de barriga cheia. 

"É preciso ajustar o comportamento e informar o paciente que, infelizmente, nenhum medicamento é  capaz de tratar diretamente a causa do refluxo", avisa Decio Chinzon. "O que dá para fazer é usar remédios capazes de aliviar a acidez. Os mais eficientes, nesse sentido, seriam os inibidores da bomba de prótons", diz. 

As tais bombas é que vivem lançando ácido no estômago. Inibi-las, na prática, significa elevar o pH do jato esguichado para o esôfago para valores entre 4 e 6. Mas eu não podia deixar de perguntar ao doutor sua opinião sobre algumas polêmicas nas quais os tais inibidores andaram envolvidos.  

Afinal, chegaram a dizer que seu uso constante poderia favorecer demências e até morte súbita. "Não há a menor evidência disso", me garantiu o médico. "O que aconteceu no passado seria equivalente a alguém passar diante de uma tevê e cair fulminado dando margem à associação de que a televisão poderia matar", compara.

Decio Chinzon reconhece que esses medicamentos favorecem, isso sim, diarreias e infecções intestinais. Faz sentido, já que a acidez estomacal atenuada pela medicação seria uma barreira para bactérias nocivas que eventualmente pegam carona pela comida para entrar em nosso corpo. 

O importante é frisar que nenhum medicamento cura a doença, crônica por natureza. O refluxo nos indivíduos medicados continua firme e forte, só deixa de ser sentido como antes. Ainda assim, esse resultado parcial significa um ganho enorme. Não só a qualidade de vida fica mais preservada, como as paredes do esôfago param de ser lesionadas o tempo inteiro. Tampouco enviam sinais errantes para os pulmões,. Pode não ser o ideal, mas é, como dizem, o melhor que temos para hoje.

Pena que, de acordo com a pesquisa recém-divulgada, apenas 13% dos doentes procurem esse alívio. Todos insistem na ideia errada de que os problemas gástricos são passageiros ou que não há muito o que fazer. Empurram com a barriga o sofrimento que bate em outro canto, mas que vem dela.

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Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.