Um eletrodo na direção certa: a de controlar o Parkinson
Lúcia Helena
23/05/2019 04h00
Crédito: Istock
O cérebro tem seus 50 tons de cinza . O mais escuro deles é o que se vê em uma região conhecida como substância negra. Diria que ela fica no miolo dos miolos e é lá que é produzida a dopamina, neurotransmissor que está em escassez na massa cinzenta de quem sofre da doença de Parkinson. Na falta da dopamina, o corpo parece demorar para ouvir qualquer ordem para se mover, ficando rígido e lento. Ou os comandos para se mexer chegam bastante truncados, descoordenados, sem motivo e fora de hora — então, tudo treme.
Diz a lenda que se vivêssemos mais de de 200 anos, inevitavelmente todos teríamos Parkinson. As células dopaminérgicas, que produzem a substância capaz de organizar os movimentos, vão morrendo antes de nós. Daí aquela imagem do velhinho quase centenário com as mãos trêmulas. Mas no Parkinson essa morte é precoce. As tais células dopaminérgicas vão pifando logo cedo aos montes.
Há mais de 30 anos já se sabe que a estimulação cerebral profunda ajuda a controlar sintomas clássicos dessa perda precoce, como o tremor e a rigidez. Na versão moderna do tratamento, estou falando de eletrodos implantados nas profundezas do cérebro — daí o nome —, que disparam impulsos elétricos para modular as trocas de mensagens em agrupamentos específicos de neurônios, como o subtalâmico e núcleo globo pálido, região que tem um outro tom de cinza, desta vez bem esbranquiçado. Mas implantar eletrodos na cabeça nunca foi muito simples. Antes que pense na cirurgia cerebral — o que também seria a minha primeira aposta —, adianto que a dificuldade era outra.
Há cinco anos, a neurocirurgiã funcional Vanessa Milanesi Holanda estava justamente instalando eletrodos em um paciente com Parkinson quando ouviu dele: "Doutora, estou me sentindo triste, triste demais. É muita tristeza, doutora…", suplicava o homem com um pequeno orifício no topo da cabeça. Médica da BP — Beneficência Portuguesa de São Paulo, e agora recém-convidada para lecionar na Mayo Clinic, nos Estados Unidos, naquele instante Vanessa Holanda parou tudo no centro cirúrgico.
A médica queria repensar por uns poucos minutos no que estava fazendo. Ah, sim, ela — uma das raríssimas profissionais mulheres que operam cérebros neste país — implanta o eletrodo sempre com o paciente bem acordado, só com uma anestesia local. "Eu preciso que ele me conte o que sente enquanto eu testo o sistema", justifica.
A depressão que o sujeito operado sentiu no momento desse teste foi marcante — o empurrão que faltava para ela arrumar as malas e seguir para a Universidade da Flórida a fim de entender ainda mais a segmentação das áreas cerebrais envolvidas no movimento e como estariam cercadas de neurônios que teriam a ver com o nosso humor, por exemplo. Pois bem, sua temporada americana resultou em um trabalho que acaba de ser aceito para publicação internacional.
Hoje a doutora Vanessa sabe que, nesses pequenos agrupamentos de neurônios, 1 milímetro a mais ou a menos para um lado ou para outro, para cima ou para baixo, já pode ser uma distância do alvo suficientemente grande para afetar as emoções, prejudicar a fala e a marcha, provocar contorções na face e outros efeitos adversos que, infelizmente, ocorrem em 15% a 20% dos operados. Popular vestir um santo para despir o outro. Diga-se: existem pelo mundo 160 mil indivíduos com Parkinson vivendo com eletrodos implantados no cérebro.
Naquele dia, a reação do paciente fez a neurocirurgiã praticamente reiniciar o procedimento. Trocar o eletrodo de lugar. Ora, era preciso afastá-lo literalmente do endereço daquela tristeza toda, atiçada sem querer pelos estímulos elétricos. "Mas hoje, com o que chamamos de sistemas direcionais, não seria preciso nada disso", resume.
O sistema direcional, no caso, é batizado de Infinity DBS. Foi aprovado no final do ano passado pelo FDA nos Estados Unidos e trazido para o Brasil pela empresa Abbott. Quis fuçar e ver de perto a novidade, que consiste em três partes — até aí, como os sistemas anteriores.
Uma delas é o gerador, que tem as dimensões de uma caixa de fósforo. Lembra um marca-passo. A doutora Vanessa descreve: "Ele é colocado sob a pele, na região da clavícula, em uma segunda etapa da cirurgia". Mas, dessa vez, com o paciente sob o efeito de anestesia geral, depois de ter ficado de três a quatro horas acordado enquanto a médica introduzia um par de eletrodos em sua cabeça e fazia os tais testes com a ajuda de um iPad e do bluetooth.
Sim, sempre um par — um eletrodo à esquerda e outro à direita do núcleo de neurônios escolhido como alvo. Aliás, com o sistema Infinity DBS, o tratamento poderá ser ajustado em qualquer momento depois, usando esses recursos descomplicados — um iPad nas mãos da equipe multidisciplinar e o bluetooth.
Talvez se pergunte — eu me perguntei!— por que botar o indivíduo para dormir depois que, digamos, o pior já passou. Eu, pelo menos, iria preferir ficar apagada enquanto estivesse com a cabeça aberta. Mas então me lembrei que o cérebro em geral sente mais as dores alheias, ou seja, na maioria das vezes ele é tomado de compaixão pelo suplício de outras partes do corpo.
A primeira etapa do procedimento, portanto, descontada a aflição de imaginar a cena, é bem suportável. Mais doloroso seria, sem anestesia geral, passar a extensão, isto é, o fio de silicone com um comprimento de 40 a 50 centímetros, que vai do eletrodo posicionado na massa cinzenta até o gerador na altura do peito, fazendo o trajeto pela sensível parte lateral do pescoço.
É na ponta ativa da extensão, a do eletrodo fino como um palito de dente e do tamanho de uma cabeça de fósforo, que mora o segredo. "Antes os eletrodos estimulavam a região em 360 graus", me explicou o engenheiro elétrico Bruno Domingues, da Abbott. "Resultado: o médico conseguia estimular o que queria, ou seja, a área que, pelos exames de ressonância, seria o ponto exato para melhorar os sintomas do Parkinson. No entanto, os sistemas anteriores também estimulavam a vizinhança, provocando efeitos indesejáveis e talvez até surpreendentes."
Isso, claro, abalava a confiança de muitos na estimulação cerebral profunda, receio que deve diminuir com o sistema direcional. "O risco de efeitos adversos é praticamente nulo agora", conta, animada, Vanessa Holanda.
O sistema direcional evita esses perrengues ao focar os impulsos elétricos em um alvo muito específico, sem afetar as redondezas. Justamente por acertar na mira, há uma outra vantagem: não gasta energia com áreas que não precisam do tratamento e, com isso, o gerador pode durar mais do que cinco anos, período após o qual talvez tenha de ser trocado em outra cirurgia. Os eletrodos, não. Estes podem ficar na cabeça para sempre.
Para a estimulação ser bem direcionada ao alvo, durante a cirurgia o paciente fica com um equipamento ao redor do crânio. São arcos metálicos que lembram um capacete e funcionariam, em uma comparação simplista, feito um GPS, indicando as coordenadas e o ângulo exato no qual deve ficar eletrodo.
"O que a estimulação faz", explica a doutora Vanessa Holanda, "'é compensar a falta da dopamina." Em uma primeira fase, após o diagnóstico, a gente sabe que o doente de Parkinson vive uma espécie de lua-de-mel com os remédios que conseguem repor a substância. Mas essa temporada feliz termina quando o organismo deixa de reagir tão bem à medicação e os tremores aparecem com tudo.
"Por isso, só cogitamos operar depois de cinco anos de diagnóstico. Antes disso, os medicamentos funcionam bem", diz a médica. Não são candidatos à operação, porém, pacientes com psicose, depressão severa e outros problemas que precisam ser avaliados por uma equipe multidisciplinar.
Mas algo deve ficar claro: os tremores que tanto assustam quem convive com o Parkinson são o começo de uma história que ainda implicará em mudanças de humor, problemas de cognição, alterações importantes no sono e outros sinais da morte das benditas células dopaminérgicas. Afinal, elas não estão envolvidas apenas com os movimentos.
A eletroestimulação, em princípio, controla os sintomas nos movimentos e, daí, já melhora demais a qualidade de vida. Apesar disso, a doença continua progredindo em silêncio, sob o véu desses estímulos elétricos. Ao menos até que se prove o contrário … Mas vou contar: tem gente querendo provar o contrário!
Alguns estudos sugerem que, sim, a estimulação cerebral profunda poderia evitar que o Parkinson avançasse e, se for assim, a cirurgia não deveria esperar os cinco anos de praxe. É o que uns dizem… Calma, o jeito é aguardar mais trabalhos para tirar qualquer conclusão.
De qualquer maneira, faz muito sentido pensar que pacientes com o implante evoluam mais devagar. Isso porque, sem tremer tanto, a pessoa consegue fazer atividade física. E de uma coisa a Medicina já tem plena certeza: nada melhor para produzir dopamina do que colocar o corpo em movimento. O que, com os tais eletrodos na direção certa — liquidando tremores sem afetar a marcha —, será mais fácil.
Sobre o autor
Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.
Sobre o blog
Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.