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Até metade das pessoas que infartam tem colesterol normal. Por que o susto?

Lúcia Helena

06/06/2019 04h00

Crédito: iStock

Se existe uma molécula que desde os anos 1960 não tem sossego é o colesterol. Não merece mesmo um pingo de trégua. Discreta — pode correr solta, aprontando, até em gente magra —, ela é o ingrediente para a aterosclerose, a famigerada placa de gordura que cresce até fechar a passagem do sangue oxigenado, deixando o músculo cardíaco sem o seu abastecimento. Asfixiado. Infarto.

É claro que cigarro, diabetes descontrolado, pressão lá nas alturas, tudo isso deixa o peito à beira desse abismo. Mas sempre é preciso ter o colesterol na jogada. Ele é a matéria-prima do obstáculo. Não à toa, os cardiologistas travam guerra contra taxas inadequadas da substância no sangue e vivem estipulando novos parâmetros, sempre mais rígidos do que os anteriores, como fizeram aqui no Brasil há dois anos.  

No entanto, fique você sabendo, até metade das pessoas que chegam no pronto-atendimento com uma coronária entupida tem taxas normais de LDL — a molécula que recebe a alcunha de colesterol ruim. Elas sairiam do check-up do cardiologista com estrelinhas no laudo, prontas para a comemoração na churrascaria da esquina. E 20% dos infartados têm não só o LDL como manda o figurino, mas o HDL também — para refrescar a memória, esse seria o colesterol bom. As letrinhas do resultado do laboratório apontando calmaria até o coração ter o piripaque,

Existem ainda aqueles indivíduos que já levaram um primeiro susto, então passaram a se medicar  com drogas capazes de baixar os níveis da gordura nociva no sangue. E, mesmo assim, fazendo tudo certinho, foram surpreendidos por um novo entupimento. Azar?

Ninguém aqui está falando que esses remédios não têm serventia. Muito pelo contrário. Quanto menos colesterol LDL, de fato melhor. Mas ganha força a ideia de que o risco cardiovascular não pode ser medido apenas pela quantidade dessas moléculas na circulação. O tamanho, diz certa corrente de médicos, também contaria. E muito. Sendo que o adjetivo pequeno, nessa história, está cada vez mais associado à iminência de encrencas gigantescas.

"Não adianta só olhar para o número de moléculas de LDL correndo nos vasos", diz o cardiologista Marcelo Bittencourt, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. "Precisamos ver a proporção entre moléculas que têm um tamanho pequeno e moléculas de tamanho médio", descreve. 

Ou seja, se, no sangue de alguém com taxas de colesterol normais, boa parte das moléculas de LDL tiver menos do que 218 ângstrons — ou seja, menos de ínfimos 218  centesímos de milionésimos de centímetro —, é para se cuidar em dobro. Ficar esperto mesmo. Ora, o risco de o coração ter um ataque é altíssimo.  "Moléculas pequenas formam placas com mais facilidade", justifica Bittencourt.

Até o momento, o que o tradicional exame de perfil lipídico revela, depois de centrifugar a amostra de sangue que você deixa no laboratório de análises, são grupos conhecidos como frações de colesterol. Bem, na verdade, colesterol…, colesterol pra valer é um só. Diga-se, uma gordura essencial para todas as células do seu corpo, sem exceção. Faz parte de suas membranas e, se não estivesse ali, elas não seriam fluidas, isto é, não permitiram a entrada e a saída de substâncias. 

No caso dos neurônios, é o colesterol que forma uma capa isolante e, com isso, as mensagens nervosas são transmitidas com rapidez. Faz parte ainda da composição de uma série de hormônios — cortisol, testosterona, progesterona… Enfim, o colesterol em si faz maravilhas e, no fundo, aquilo do que reclamamos é o seu sistema de transporte, já que não circula pelo corpo por conta própria.

O vilão LDL — sigla do inglês para lipoproteína de baixa densidade — é uma dessas frações e se trata de uma espécie de veículo que leva o colesterol para cima e para baixo, já que ele é usado em tudo o quanto é canto. E, aí é que está, se não derruba seu carregamento de gordura pelo caminho, ele próprio se enrosca nas paredes das artérias.

Por sorte, existe o HDL —a lipoproteína de alta densidade – que faz o serviço inverso. Recolhe o colesterol sobrando por todos os tecidos, inclusive nos vasos sanguíneos, levando-o de volta ao fígado, sem dar muita chance para que se deposite nas paredes dos vasos, iniciando a maldita placa . "O que se descobriu é que essa molécula  de HDL só é muito eficiente se tiver um tamanho mais graúdo", explica Bittencourt. 

Ou seja, a hipótese é de que pessoas que infartam com taxas normais dessa fração tenham ou muitas moléculas mirradas do bandido LDL ou um HDL que não se impõe por falta de porte ou ainda, para complicar de vez, essas duas frações em versões moleculares amiudadas.

Até há pouco tempo, não havia exame para avaliar essas questões de tamanho. Agora, por exemplo, a Dasa acaba de trazer para o Brasil o exame de painel cardiológico que, em vez da centrífuga — como no velho e bom perfil lipídico —, usa outro equipamento, bem mais complexo, o de espectrometria de massas, que analisa a carga molecular das partículas e deduz a partir daí o seu tamanho. "Essa tecnologia seria como um zoom, que acusa como são, de perto, as moléculas de determinada fração, HDL ou LDL,  do colesterol total", diz Gustavo Campana, diretor médico da Dasa.

O novo exame é promissor, mas ainda não faz parte das diretrizes da cardiologia, que continuam recomendando o exame clássico. "'É tudo muito novo. Precisamos dar um tempo para que a gente saiba a partir de que proporção de moléculas maiores e menores estamos diante de alguém com risco mediano ou altíssimo, mesmo com taxas normais de frações", me disse o cardiologista Marcelo Bittencourt.

Os europeus, no entanto, já mencionam o novo exame como uma possibilidade para o monitorar o tratamento das dislipdemias — nominho complicado para dizer que as gorduras do sangue estão fora dos valores desejáveis. Em tese, é possível que uma droga do grupo das estatinas, por exemplo, diminua a quantidade de colesterol, mas não mude o padrão do tamanho de suas moléculas. Se predominarem as miudinhas, seria caso de trocar a medicação na tentativa de acabar com o império do LDL pequenino ou… Ou ficar bem esperto, ajustando sem moleza todo o estilo de vida — cuidando ainda mais da pressão,  da glicose, do estresse, da atividade física —  ciente de que, mesmo baixo, seu colesterol é um perigo.

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Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.