Topo

No cérebro, ser feliz é mesmo uma decisão: a de focar no momento presente

Lúcia Helena

18/06/2019 04h00

Crédito: iStock

O russo Liev Tolstói escreveu que todas as famílias felizes se parecem entre si e que as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira. Discordo! Experimente uma desgraça e dirá "desgraça". Ninguém normal tem a menor dificuldade para reconhecer coisa ruim quando chega, de tão semelhantes que são nossas tristezas. Mas normalmente suspiramos que éramos felizes e nem sabíamos. 

Um dos motivos, penso, é que felicidade lembra drops de infância, sortidos. A cada hora nos surpreende com um sabor e nunca é igual para cada um de nós. Mas, se Tolstói começou tão bem a história de sua Anna Karenina, estou aqui enrolando. Confesso. Fica a dica: jornalista, quando inicia um texto citando um autor de livro ou um filósofo qualquer, quer pegar emprestado o que o outro tem de sabichão para esconder sua limitação. A minha, neste instante, é definir felicidade, já que ela entra nas recomendações da Organização Mundial de Saúde, a OMS, tanto quanto afastar a praga, a ferida purulenta, o câncer e o infarto — esses eventos notoriamente tristes de doer.  

Caminho seguro seria recorrer à neurociência, que tudo vê em exames pomposos de imagem do cérebro. E assim, para enxergar o que acende estrelas em nossos neurônios, fui assistir à aula da psiquiatria Hedy Kober no II Simpósio Internacional de Bem-Estar, promovido pelo Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Hedy dirige o Clinical & Afecctive Neuroscience Lab da Universidade Yale, nos Estados Unidos.

Ela logo jogou a batata quente nas mãos da audiência: "Os brasileiros são felizes?" Lembrou que, em 2012, uma pesquisa da Fundação Getúlio Vargas garantia que éramos o país mais feliz da América Latina e o décimo-sexto mais contente do planeta em um levantamento realizado em 147 nações. Mas, como esse mundão gira porque é redondo, sim, em 2017 a felicidade pegou o seu banquinho… Os índices de estresse, depressão e ansiedade, desde então, aumentam 15% ao ano, de acordo, de novo, com a OMS. E hoje amargamos: somos o país mais ansioso ao redor da Terra e o quinto mais deprimido. O que deu em nossas cabeças? 

Hedy Kober assegura que uns 50% da nossa felicidade, porém, não estão nela, mas nos genes. Sim, existem genes que nos deixam mais propensos a encarar tudo com um sorriso, assim como há uma tendência escrita no DNA de uns e de outros à depressão. Fiquei matutando se isso explicaria a nossa vocação risonha. Mas não há genes, parece, que segurem a barra destes tempos… Que barra?

Política, economia, violência, ladroagem, dia dos Namorados sem namorado, ponteiros da balança, chefe chato, férias canceladas — nada disso teria forças para espantar nossa alegria, antes que pense que darei essa desculpa, que para a tal da neurociência é ligeiramente esfarrapada. Suas pesquisas mostram que só 10% da felicidade são determinados pelas circunstâncias. Restam 40%. Não sei se alivia, mas esses 40% são aquilo que fazemos intencionalmente. Ou seja, questão de escolher certo.

Algumas atitudes acertadas já são bem reconhecidas por estudos. Então vou dar aqui a fórmula — ousadia maior do que a de contrariar Tolstói, talvez.  Mas, enfim, uma delas é a atividade física. Fácil entender pela enxurrada de substâncias relacionadas ao bem-estar que o corpo em movimento derrama na massa cinzenta. Então, se a vida anda sem graça, ande mais rápido do que ela. Ao pé da letra. Os pés nos tênis.

Outro caminho fácil de seguir,  se a gente afasta o argumento melancólico da falta de tempo: ficar mais ao lado de quem a gente de gosta pra valer. Feito remédio. Todos os dias. De caso pensado, com aquela consciência morna de que a pessoa querida está bem ali ao seu lado — na mesa do jantar, no carro, no cotidiano simples de que a vida é feita.

A terceira atitude que mais traz felicidade é ficar próximo da natureza. E é bem importante isso que estou contando: cada vez mais pesquisas apontam que olhar para um pouco de verde, uma ave rasgando o céu ou um inseto ziguezagueando no ar, quem sabe ouvindo barulho da água furando a pedra dura, mexe demais com as áreas acionadas do cérebro. A ansiedade se apaga nas imagens dos exames, enquanto regiões ligadas ao foco e à serenidade se tornam pontilhadas de luz.

As pesquisas dizem mais. Dizem que gastar dinheiro faz muita gente feliz de verdade — bem, confesso, aí eu lembrei do meu saldo e aqueles 10% das circunstâncias da vida se agigantaram… Mas atenção que não é para abrir a carteira para qualquer coisa: no caso, as pessoas são felizes quando gastam dinheiro com os outros ou em atividades. Mais vale pagar o cinema do que a roupa nova. Ou investir no curso, na viagem, na festa do que na compra de um objeto qualquer. Dizem..

Finalmente vem algo de peso: a gratidão. Sei, soa zen demais para os ouvidos de alguns. Para Hedi Korber, no entanto, há uma lógica psicológica: quem é grato pelas coisas que lhe acontecem costuma ser uma pessoa atenta a tudo o que se passa. E essa conexão com o presente é o que existe de mais fundamental. Viver o agora mesmo com a aceitação — é o que temos para hoje e bola pra frente.

Por isso mesmo, no laboratório de Hedy, ao investigar a felicidade, ela se aprofunda nos efeitos da meditação na linha mindfulness, às vezes com práticas simples como prestar atenção por dez minutos na própria respiração e nas sensações por todo o corpo. Não faltam trabalhos atestando que esses exercícios meditativos reduzem o estresse, a sensação de sofrimento e a confusão mental. Aliás, vale citar um estudo clássico de Harvard, de 2012, apontando que a mente que muito devaneia é tremendamente frágil a quadros depressivos. Felicidade exigiria atenção e foco.

Mas o interessantíssimo é o conceito de que a meditação teria o que os cientistas chamam de efeito dose-dependente. Hedy Korber e seus colegas realizaram uma pesquisa com gente que nunca tinha feito mindfulness. Todos passaram por um treinamento de três dias.

Na experiência, o cérebro era vasculhado por exames de imagem durante a prática e, em determinado instante, os participantes recebiam um estímulo de calor .Sinceridade?  Era um toque quente no braço, ardente, quase queimando. Mas orientação era apenas aceitar a sensação, sem julgar se era boa ou ruim. 

O que as imagens cerebrais mostraram então: bastavam três dias para a sensação dolorosa ser menos percebida pela massa cinzenta, como se ela não desse mais tanta bola para o que não seria assim tão agradável. O que poderia corresponder ao efeito sobre situações cotidianas igualmente chatas, me disse Hedy.  

E note: quanto mais dias os voluntários continuavam na prática ou por mais tempo, mais efeitos eram visíveis no cérebro. Eis a dose-dependência. Primeiro, as áreas ligadas à atenção se iluminaram. E, com o passar dos dias, o padrão cerebral típico de pessoas desanimadas e entristecidas foi mudando. Surgiu um padrão de funcionamento associado ao estado de felicidade. 

Perguntei à Hedy se o mesmo poderia se esperar daquelas outras ações  que nos deixariam felizes. Embora aposte mais suas fichas no mindfulness — para ela, o fato de a mente estar presente em cada instante seria a chave  para mudar o padrão cerebral — sim, é  possível. Portanto, a gente deve escolher agir pela felicidade e ser persistente nessa opção.  E, então, o russo que me perdoe, mas eu o troco pelo mineiro Guimarães Rosa — sabe aquele papo sertanejo de que a vida quer de nós coragem?

Comunicar erro

Comunique à Redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:

No cérebro, ser feliz é mesmo uma decisão: a de focar no momento presente - UOL

Obs: Link e título da página são enviados automaticamente ao UOL

Ao prosseguir você concorda com nossa Política de Privacidade

Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.