Ameaçado de extinção, o pinhão é muito mais saudável do que a gente imagina
Lúcia Helena
25/06/2019 04h00
Crédito: iStock
O inverno começou há quatro dias e, em outros tempos, sua chegada seria comemorada com um saco pesado de pinhão que meu pai, gaúcho, trazia para casa. Ele tinha essa mania de marcar à mesa aquelas passagens que, com tanta mudança no clima, andam bem esquisitas. Hoje existem alimentos que eram de épocas frias e que agora — acho pouca graça — a gente compra até no calor. Outros somem do mercado, ressentidos com a sandice dos termômetros. Mas o pinhão ainda é fiel à sua estação. Embora existam araucárias que os experts chamam de precoces, porque dão as pinhas logo em fevereiro, é mesmo em julho que a colheita se torna farta. E a semente é o pinhão.
Aí, eis uma primeira coincidência: chega em minhas mãos o livro "50 Plantas e Frutos Brasileiros que Turbinam a Saúde", recém-lançado pela redação de que cuidei por quase duas décadas na Editora Abril e, melhor de tudo, foi deliciosamente escrito por duas jornalistas que eu mesma encaminhei para as pautas da nutrição, a Thaís Manarini e a Regina Célia Pereira. Folheio e caio na página do… pinhão, claro! Estranhei: mas então ele seria nosso, brasileirinho, apesar de a árvore ter ares tão europeus? Descubro que sim.
Existem 19 espécies de araucárias pelo mundo. A Angustifolia é nossa. Imponente, pode alcançar a altura de um prédio de 15 andares e alguns exemplares já estavam aqui bem antes de Cabral desembarcar — essas têm uns 900 anos de idade, sabe lá o que é isso? Mas a voracidade em explorar a madeira fez boa parte das nossas araucárias ser derrubada. Há bons projetos para tirar a espécie da lista das ameaçadas de extinção, mas ela está lá. Firme e nem tão forte.
Segure a água na boca. Por mais que, para reverter a ameaça, sejam plantadas essas árvores pelo Sul e pelo Sudeste do país, onde há — ou havia — o ar gélido de que tanto gostam, elas só irão nos oferecer pinhões quando já tiverem uns 20 anos de idade ou mais. A luta de cientistas brasileiros é para melhorar as sementes a fim de que uma nova geração da Angustifolia seja mais apressadinha e nos presenteie com um saco de pinhão depois de "apenas" uma década.
Fui procurar então quem me fizesse entender por que a espera valeria a pena — digo, além de valer pelo sabor do pinhão quentinho e da diversão de fazê-lo, bem cozido, escapulir da casca com um apertão rápido dos dentes. Liguei para a química e doutora em engenharia de alimentos Cristiane Helm. Desde 2007, ela atua na Unidade Florestas da Embrapa, que fica em Colombo, no Paraná.
Ali, 75 pesquisadores se dedicam a estudar as espécies florestais e Cristiane coordena o laboratório de alimentos, investigando a pupunha, frutas nativas, espécies de cogumelos e as sementes da pinha. Estas, aliás, são alvo de seus estudos há onze anos, quando começou a analisar sua composição nutricional. Ontem mesmo — coincidência número 2 — , lá estava ela dando uma aula sobre o assunto no seminário organizado pela Prefeitura de Curitiba, onde só se discutiu, de manhã à noite, como preservar nossas araucárias e valorizar o seu pinhão.
Motivo não falta: o alimento, segundo a estudiosa, é formado 40% por carboidratos e, entre eles, o que domina é o chamado amido resistente, espécie que, uma vez dentro do organismo, se comporta feito uma fibra e evita que o restante caia na circulação ligeiro, elevando de hora para outra a glicemia. "A presença do amido resistente vem sendo cada vez mais valorizada na dieta, ajudando no controle do açúcar no sangue, mas são poucos os alimentos que possuem valores tão consideráveis como o pinhão", diz ela.
Isso sem contar que 5% são pura fibra pra valer — e há trabalhos feito em parceria da Embrapa com universidades brasileiras apontando que a dobradinha fibra e amido resistente tem um potencial maior de derrubar o colesterol.Há, ainda, proteína, a pitada de 1,5% de gorduras, como ácidos graxos ômega, que fazem bem ao coração.
Para quem guarda na memória a fama de ser um petisco calórico, apague a ideia da cabeça: em 100 gramas descascados, que é pinhão até dizer chega, são cerca de 192 calorias. Nada tão assustador para alguém fechar a boca.
Mas o melhor, de longe, está na casca. Ela, sim, foi a maior surpresa dos cientistas, porque esconde um bocado de ferro, cobre, zinco, potássio aos montes e, acima de tudo, doses generosas de compostos bioativos antioxidantes. Talvez você esteja pensando que enlouqueci, porque ninguém engole aquela casca dura. Mas saiba: no calor do fogo, ela libera tudo isso.
Durante o cozimento — que, de quebra, destrói moléculas que atrapalhariam o aproveitamento dos nutrientes — , há uma migração do que está na casca para a semente. "Ela, depois de cozida, até muda de cor. De branquinha, fica bege", observa Cristiane. Quanto mais marrom, melhor. Dou a dica: prestigie o pinhão que escurece depois de cozido. O novo tom entrega a transferência do que estava no invólucro.
Ah, sim, portanto, quanto menos pressa no fogo, do ponto de vista nutricional, melhor. Aos 70 graus Celsius, que qualquer fogão alcança fácil, a mágica acontece. Aliás, a mesma temperatura que faz com que aquele amido resistente vire uma gelatina, com seus grânulos se enchendo de água. Para a boca, isso é maciez. Para a saúde, colesterol sendo arrastado para fora por esse gel.
Ainda sobre as moléculas benéficas da casca, segundo Cristiane Helm, outra parte vai parar na água da panela — nota que ela também escurece? Pois esse líquido escuro, altamente nutritivo e antioxidante não deveria ser desperdiçado. Pode servir de caldo em outras preparações.
Aliás, um dos objetivos do laboratório da Embrapa é incentivar o consumo dessas sementes, estudando como a vida do produto poderá, um dia, ser estendida nas prateleiras dos mercados — talvez até na forma de pinhão congelado. Os pesquisadores trabalham em várias frentes. Testam receitas — já publicaram até um livro com 100 delas, entre doces e salgados. E também desenvolvem aplicações para a farinha feita do pinhão. "Por não ter glúten, ela é uma excelente alternativa para os celíacos", afirma Cristiane Helm. Eu fiquei impressionada. E matei o apetite da curiosidade. Só ficou viva a porção da saudade.
Sobre o autor
Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.
Sobre o blog
Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.