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O que jovens com ovários policísticos deveriam saber sobre o seu coração

Lúcia Helena

27/06/2019 04h00

Crédito: iStock

É por causa de espinhas no rosto ou de pelos escuros espalhados pelo corpo ou, ainda, por uma queda de cabelos desenhando entradas com jeitão masculino que muita moça descobre no dermatologista: ela tem a síndrome dos ovários policísticos. Ou, para encurtar palavras, simplesmente SOP.  

Para outras, é o ginecologista que levanta a suspeita, depois de ouvir o relato da irregularidade menstrual ou da dificuldade para engravidar. Mas a SOP, se houvesse briga por território, seria um problema para endocrinologistas — na verdade, uma síndrome nunca é um único problema, mas vários deles em fogo cruzado. E no meio da SOP, tornando-se vítima, costuma estar o coração.

O par de ovários produz hormônios sexuais e abriga os óvulos. Em geral, a cada mês um deles amadurece para um encontro com o espermatozoide. Mas às vezes surgem cistos, bolsas repletas de líquido ou de material semi-sólido, como se o processo de amadurecimento tivesse parado na metade.  Que isso aconteça de vez em quando, tudo bem. Mas, se aparecem vários cistos pequeninos, então eles tomam conta do pedaço e, daí, a história é outra para garotas em idade reprodutiva.

A SOP pode aparecer desde a menarca, a primeiríssima menstruação das meninas, até por volta dos 45 anos. Aliás, é isso o que mais aflige o endocrinologista Cristiano Barcellos, médico do Hospital Sírio Libanês, em São Paulo, e professor, em Sorocaba, da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde da PUC. Vira e mexe, ele puxa o assunto em eventos científicos e nas redes sociais. 

Quis entender essa angústia: "Se uma mulher tem SOP, não significa apenas um problema de pele, nem mesmo  um caso de infertilidade ou de ajustar o ciclo menstrual", ele me explica. "É bem provável que ela tenha também resistência à insulina, diabetes tipo 2, hipertensão, colesterol e triglicérides nas alturas. A SOP faz com que moças de 20 anos já apresentem doenças de mulheres na menopausa", declara.

Há, sem dúvida, uma relação com a obesidade. Basta olhar os números:  encontramos 30% de mulheres obesas em algumas regiões do globo, mas, entre as que são diagnosticadas com SOP, 63% estão com excesso de gordura corporal– 26% com sobrepeso e 37% com obesidade pra valer.

De fato, jovens acima do peso correm um risco maior de desenvolver o problema. Mas o caminho, cruel, é de mão dupla: a SOP  piora bem a vida de quem está com alguns quilos a mais. "Há quem diga até que ela seria uma disfunção do tecido adiposo", conta o doutor Cristiano. 

É como se a gordura escolhesse o lugar errado para ficar. Em vez de formar curvas sob a pele, vai para locais inadequados, instala-se entre as vísceras. Embrulha o fígado, envolve o pâncreas, invade ainda a musculatura do corpo inteiro e, no caso do músculo cardíaco, nem se fala…. Ele então fica apoiado naquela base de banha, como a que a gente vê no coração de galinha. "Sem SOP, a mulher precisaria ter obesidade para a gente enxergá-lo desse jeito. Com SOP, basta o ponteiro da balança subir um pouco para a gordura se infiltrar no coração, como se a paciente tivesse uns 30 quilos a mais", diz o médico. 

Mas um alerta importante: muita garota magra apresenta a síndrome e todas as suas complicações para o peito. E, pelo desconhecimento geral, a gravidade da situação passa batido. "Poucos cogitam que uma menina com peso normal possa ter diabetes ou hipertensão só porque foram notados cistos no ovário", lamenta o doutor Cristiano.

Saiba: toda paciente com o problema precisa checar a glicemia, a pressão arterial, as gorduras no sangue e muito mais, em vez de ficar de olho só nos ovários. O que dificulta mais é que o próprio diagnóstico da SOP é complexo. A começar porque existem três critérios para detectar a síndrome , que afeta nada menos do que cerca de 20% da população feminina. E eles nem sempre aparecem juntos e com a mesma força. Um  deles é aparência do ovário. Pelo consenso atual, não há SOP se ele tiver menos do que 20 microcistos, com diâmetro menor do que 1 centímetro. 

Outro critério é a irregularidade menstrual. Por trás dela está a dança dos hormônios LH e FSH — liberados pela hipófise no cérebro –, que por algum motivo perdeu o ritmo. No compasso correto, a dupla organizaria o ciclo feminino nos ovários. "Se normalmente uma mulher ovula a cada 28 dias, a jovem com SOP pode ovular apenas uma ou duas vezes por ano", explica o doutor Cristiano.

Várias pacientes, porém, ficam muito tempo sem derramar uma gota de sangue sequer. Mesmo assim,  o endométrio, que é revestimento interno do útero, continua se preparando para uma eventual gestação a cada mês. Como a moça não menstrua depois para descamá-lo, ele vai engrossando, engrossando… A probabilidade desse acúmulo gerar um tumor no futuro é alta. Os casos de câncer de útero em mulheres na faixa dos 50 que tiveram SOP e que quase nunca menstruavam são mais frequentes.

O terceiro critério é uma baita resistência à insulina, além dos cistos. Ela aparece quando esse hormônio não consegue mais empurrar toda a glicose presente no sangue para o interior das células. O pâncreas, então, se engana. Acha que é uma questão de quantidade, em vez de qualidade. Lança, em vão, porções cada vez mais fartas de insulina para compensar o perrengue. E essa insulina em exagero atrapalha duas enzimas  que agem nos ovários. No final das contas, eles começam a produzir mais testosterona, o hormônio dos machos.

Pois todo ovário derrama hormônios femininos — o estrógeno e a progesterona —, mais uma gota de testosterona para, entre outras coisas, elevar a libido. Sim, meninas, é a nossa porção masculina que garante o desejo. Um homem, porém, produz dez vezes mais testosterona do que nós. "Mas, se a gente comparar mulher com mulher, aquela que tem SOP possui 50% mais testosterona do que outra sem a síndrome", observa Cristiano Barcellos. 

Continua sendo um tico de nada em relação à produção  da ala masculina, certo?  Só que esse tico é o suficiente para fazer com que cresçam pelos escuros e grossos no bumbum, na barriga, nas costas… A pele também se torna bem mais oleosa e os cabelos podem cair. No entanto, a genética conta. "Sem ela, eu poderia jogar um balde de insulina nos ovários e nada aconteceria de diferente", diz o doutor Cristiano.

Não se esqueça que a resistência à insulina é uma prévia do diabetes. Enquanto 8% das brasileiras têm glicose alterada, de acordo com Cristiano Barcellos, cinco estudos parrudos realizados pelo mundo, um deles feito na Universidade de São Paulo, apontam que de 31% a 40% das pacientes com SOP têm pré-diabetes ou diabetes pra valer. Há quem diga que a SOP, por si só, multiplica por quatro o risco de a mulher se tornar diabética. E o diabetes, por sua vez, arrasa o coração. Ele se vê cercado.

Tem mais. Não importa se são magras ou não, três em cada quatro mulheres com SOP exibem colesterol e triglicérides além da conta.  "É a alteração metabólica mais comum nessas pacientes", conta Cristiano Barcellos. Estima-se, ainda, que a SOP aumente em 2,5 vezes o risco de hipertensão. "Para ter ideia, em São Paulo,  8% das mulheres são hipertensas. Mas, em um estudo do qual participei, 20%  das que tinham SOP estavam com a pressão alta", revela o endocrinologista.

Em outro estudo clássico, este realizado no Reino Unido,  a conclusão foi  de que, por essas e por outras, toda mulher com SOP teria maior risco cardiovascular. Sendo mais precisa: sete vezes mais probabilidade de infartar.  Cristiano Barcellos, porém, acha que não é bem assim: "Os autores levantaram, entre  mulheres que tinham infartado, aquelas que relataram sintomas de SOP nos anos anteriores. Mas  não separaram, por exemplo, as que tinham diabetes e as que não tinham".

O endocrinologista adianta ao blog os achados de um trabalho conduzido por ele e que ainda será publicado. Claro que não dá para juntar mulheres com SOP, deixá-las sem tratamento e esperar para ver o quanto seu coração seria capaz de sofrer com os anos. Por isso,  o médico apelou para o ultrassom da carótida. Quanto mais espessa essa artéria que passa pelo pescoço, maior o risco de doença cardiovascular. Pois bem…

As participantes foram divididas entre as que não tinham e as que tinham SOP. Mas o endocrinologista, ao olhar para o grupo com a síndrome, ainda separou as mulheres com diabetes e pressão alta das demais. Resultado: aquelas com SOP , mas sem muita gordura abdominal, hipertensão nem glicemia alterada, parecem ter o mesmo risco cardiovascular daquelas sem a SOP.  E ele é baixo. "A ameaça ao coração só é mesmo grande para quem tem SOP e síndrome metabólica ao mesmo tempo", afirma o médico. Tudo bem — aliás, tudo mal — que a maioria das pacientes se encaixa aí.

O tratamento, portanto, sempre precisa considerar a saúde cardiovascular. Já do ponto de vista hormonal, os médicos devem atender à necessidade da paciente. Se o que incomoda são os pelos, a barriga, a acne, então talvez seja o caso de prescrever uma pílula contraceptiva. Isso colocará o ciclo no prumo e a produção errática da testosterona no seu devido lugar. "No entanto, se o desejo for engravidar, o ideal será, ao contrário, estimular a ovulação", explica Cristiano Barcellos. Faz sentido. Ouvir o que essa mulher quer é outra maneira de checar o que passa pelo seu coração.

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Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.