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Deixe de ser tonto: quem diz que alguém tem labirintite costuma errar feio

Lúcia Helena

02/07/2019 04h00

Crédito: iStock

A labirintite é uma doença muito, muito rara — e grave. A maioria dos médicos se forma, abre consultório e se aposenta sem nunca ter visto uma legítima situação dessas pela frente. Mas sai repetindo feito papagaio o nome da dita-cuja para rotular toda e qualquer tontura. Um engano danado.

Uns 30% dos brasileiros ficam zonzos de vez em quando. Alguns vivem quase todos os seus dias em um gira-gira. O problema de sair dizendo que toda essa gente tem labirintite não é questão de semântica: existem trinta doenças conhecidas do sistema vestibular, aquele que controla nosso equilíbrio e nossa coordenação. Todas bem diferentes e com tratamentos diversificados. Juntar tudo em uma só palavra, na prática, em geral significa não fazer a menor ideia daquilo com que está lidando. E, por consequência, tratar tudo feito uma coisa só — a pseudo labirintite. Resultado: as pessoas seguem tontas, quando teriam boas chances de resolver o caso. Se ao menos soubessem que caso seria esse…

Uma real labirintite — credo! — provocaria febre alta, faria os miolos explodirem de dor.  Ela é sempre uma infecção, como a decorrente de uma meningite que avança tomando conta da cabeça. Um vírus ou uma bactéria, então, colonizam o labirinto, estrutura que lembra um caracol no interior dos ouvidos. Bem no meio dele,  há o vestíbulo, recheado de um gel onde ficam mergulhados inúmeros cristais. Conforme a gente se mexe, eles vão para um lado e para o outro nessa gelatina e dão o parâmetro de movimento para o sistema nervoso — afinal, estamos em um elevador que está subindo ou descendo? 

Não, a labirintite não é qualquer vertigem. "Mas, até nos Estados Unidos, esse é o nome que caiu na boca do povo", conta o neurologista Saulo Nardy Nader, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo —  que, aliás, foi apelidado por seus ex-alunos na Universidade de São Paulo como? "Doutor Tontura", claro.

A curiosidade por esse universo surgiu quando tinha 12 anos. Seu pai sentiu uma vertigem ao volante. O carro capotou com a família e o moleque, desde então, encasquetou. Seu Vander passa bem, obrigado — anos depois, já não vê tudo rodar de repente. E o filho, década mais tarde, mergulhou no problema ao se subespecializar dentro neurologia  em distúrbios vestibulares na USP para, depois, estudá-los  no Queen Square Hospital , em Londres, na Inglaterra, onde fica um dos maiores centros de investigação e tratamento de vertigens do planeta. Mas, ironicamente, ele mesmo usa a expressão labirintite vez ou outra no seu Instagram e nos vídeos educativos que posta no canal do Youtube. "'É como as pessoas chamam, portanto é como vão buscar por essa informação", capitula, mais preocupado em fazer com que  todos entendam aquelas trinta doenças do sistema vestibular.

Nomes por nomes, os desses males são esdrúxulos: quem aí tem uma vertigem posicional paroxística benigna, a VPPB?  Conhece a doença de Menière? Que tal a neurite vestibular? E a migrânea vestibular? Ah, essa é dolorosa!  Prefere uma vertigem de origem central? Segundo o doutor Saulo Nader, no Brasil, há somente 15 neurologistas — e olhe lá — exclusivamente dedicados a essa verdadeira lista de palavrões. O próprio doutor Saulo Nader, há quatro anos, é um dos que lideram, na  Academia Brasileira de Neurologia, um departamento criado para que mais colegas saibam diferenciar as causas das tonturas.

O primeiro passo é descobrir seu local de origem em uma das três partes do sistema vestibular. Às vezes, algo não vai bem no famoso labirinto, que capta o movimento. Mas, em outras, o defeito nem está nele e, sim, no nervo que faz sua comunicação com o cérebro. Ou, ainda, pode estar no próprio sistema nervoso central, mais especificamente na região do cerebelo, próxima à nuca.  Acredite: tudo muda a partir do endereço. "Não importa se é um neurologista ou um otorrino que fará o tratamento. O que ele precisa é entender do assunto em vez de apontar coisas muito diferentes como iguais", diz Nader. 

Sem descobrir que peça está problemática no seu sistema vestibular, 90% dos pacientes convivem com o mal-estar. Pior é quando tomam remédios para a tal labirintite. Alguns desses medicamentos podem se transformar em gatilho para a depressão, entre os efeitos indesejáveis. Outros resolvem pequeníssima parcela dos casos. Perda de um tempo precioso, porque as causas tendem a piorar com os anos. E detalhe: são males capazes de aparecer em qualquer idade, inclusive em crianças.

Pergunto se tontura e vertigem seriam a mesma coisa. Para o Aurélio, ora,  são sinônimos. Já para Medicina… "A tontura abrange sensações de atordoamento, flutuação … A pessoa pode se desequilibrar ou ficar visão apagada por instantes", explica o neurologista."E, claro, a tontura também engloba a vertigem, que é uma sensação anormal de movimento, como se o corpo, mesmo parado, se sentisse em um carrossel ou em um balanço".  Fazendo um recorte naqueles 30% da população que têm tontura, sete em cada dez dessas pessoas sofrem de vertigem.

A intensidade e o quanto esses sintomas atrapalham a vida vai depender de cada um.  Veja o exemplo da cinetose — é assim que se chama o conflito entre as informações visuais de movimento e a interpretação do cerebelo, que deixa muita gente mareada em uma estrada cheia de curvas ou no passeio de barco. "Uma estratégia é fechar os olhos ou mirar o olhar em um único ponto dentro do veículo. Ou, ainda, engolir um remédio para enjoo meia hora antes", ensina o doutor Nader. "Mas isso é inviável para quem tem o problema e pega uma hora de metrô todos os dias. O mal-estar pode durar duas horas, acabando com o rendimento no trabalho. Aí precisamos entrar com drogas que fazem um ajuste químico no cerebelo."

A mais comum de todas as doenças vestibulares, porém, nem precisaria de medicamento. É a VPPB, a vertigem posicional paroxística benigna. A cura, obtida em 93% dos casos, está literalmente nas mãos do médico e pode ser alcançada em uma única consulta, na qual o profissional realiza movimentos específicos com a cabeça do paciente.

Em casos assim, o que faz tudo rodar é um cristalzinho maldito ou outro que escaparam daquele gel dentro do labirinto. Fora dele, esses cristais irritam a região, daí a cama gira e as paredes brincam de ciranda quando a pessoa olha rápido para o alto. Mas as manobras do especialista fazem essas pedrinhas voltarem à gelatina de onde escapuliram. E pronto, nada mais faz piruetas.

Outro tipinho muito prevalente e enganador é a migrânea vestibular. Trata-se de uma forma de enxaqueca em que a manifestação é a tontura. E o que confunde: muitas vezes o sujeito fica tonto nas crises, mas sem sentir um pingo de dor. Sim, também tem remédio.

O terceiro tipo mais frequente  é a tontura perceptual, que já foi chamada de  fóbica. Não à toa: "Ela está sempre ligada a um desequilíbrio emocional, principalmente à ansiedade", explica Saulo Nader. "É uma doença neurológica, arraigada em uma questão psiquiátrica. Essa tontura é real, não é imaginação, frescura, nem piti", avisa. Mas, incompreendido, o paciente vai deixando de pisar para fora de casa.

É bem verdade que muitas doenças que nada têm a ver com o sistema vestibular também causam vertigem — por exemplo, um diabetes, quando a glicose despenca do nada na hipoglicemia. Aí, o mal-estar é um sintoma secundário. Mas, quando a tontura surge por si só, as chances de sucesso no tratamento são de 95%. Isto é, se ele for específico para uma daquelas trinta doenças de nomes estranhos que tiram o nosso prumo.

Para desfazer só mais uma confusão:  acabou aquele papo de que comer doce causaria "labirintite". Aliás, o café tampouco tem a ver com isso. Vou dizer que, há alguns anos, tive tontura e o médico me fez anotar quantos xícaras dele eu tomava por dia. Fiquei agoniada. Um café recém-coado sempre me faz feliz.  "Claro que, se a pessoa tomar um balde, pelo fato de a cafeína ser  estimulante, ela piora aqueles quadros ligados à ansiedade", diz Saulo Nader.  Ou seja, por um tempo deixei de tomar meu cafezinho à toa. Fui bem tonta.

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Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.