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Diabetes, açúcar e doença do coração: ninguém conta essa história direito

Lúcia Helena

23/07/2019 04h00

Crédito: iStock

Sei que é um jeito mórbido de começar uma prosa, mas até o final desta terça um pouco mais de mil brasileiros terão morrido por doenças cardiovasculares — infarto, AVC e insuficiência cardíaca, no topo delas. Se adiou a leitura deste texto, não muda nada, pois é a mesma quantidade exuberante de vítimas dia após dia. Estima-se que, no Brasil, só em 2017, foram 383.961 vidas perdidas desse jeito, com uma artéria dando chabu no peito ou na cabeça, por exemplo. Ou seja, quase um terço de todas as mortes por doença no país naquele ano.

O que a gente nunca vai saber é quantas dessas pessoas tiveram o piripaque fatal porque eram diabéticas. Arrisco: provavelmente muitas. Mas…na real? Acho que ninguém faz a mais pálida ideia do número de portadores de diabetes entre nós. Dizem oficialmente que são 13 milhões. Sei não… 

Quando comecei a escrever sobre saúde, há três décadas, falavam em 10 milhões e acho bem esquisito que, de lá pra cá, tudo tenha se multiplicado — as minhas rugas, a população, a porcentagem de indivíduos com obesidade, quase todo tipo de mazela —, enquanto o número de diabéticos deu apenas esse salto tímido. Mas, ok, vamos tomar como verdadeira a estimativa dos 13 milhões e encarar o fato: metade nem desconfia ser portador da doença. Então já começa por aí, porque morre do coração ignorando o seu diabetes, que, portanto, passa batido no atestado de óbito. Ninguém viu, ninguém verá.

No entanto, olhando para os casos diagnosticados, dá para afirmar que um em cada dois diabéticos, quando morre, parte desta para melhor por causa de um problema cardiovascular. Ora, saber disso deveria ser mais do que o suficiente para que todos ficassem bem espertos com os assuntos do coração. Mas, de acordo com uma pesquisa realizada pela revista SAÚDE, da Editora Abril, com o apoio da Novo Nordisk e a curadoria dos organizadores do Endodebate — evento que aconteceu entre a sexta e o sábado passados em São Paulo —, até mesmo aquelas pessoas portadoras do diabetes tipo 2 ignoram a conexão entre os níveis de glicose fora de controle e a ameaça perturbadora de um infarto ou de um derrame. 

A pesquisa "Quando o diabetes toca o coração" entrevistou 1.439 brasileiros entre 47 e 55 anos de idade, sendo 611 deles com o tipo 2 da doença. Alguns números já foram divulgados ontem aqui, no VivaBem do UOL, e o resultado na íntegra está no site do Endodebate. Pinço apenas um dado curioso que pinta bem o cenário: indagados sobre a primeiríssima palavra que lhes vem à cabeça ao pensar em problemas do coração, 662 indivíduos mencionaram "infarto" e só dois gatos pingados citaram "diabetes", como se um não estivesse tão próximo do outro. Ah, ilusão…

Reconheço que diabetes também não seria o primeiro termo a sair da minha boca — embora talvez devesse ser — , mas eu não sou diabética. Não são as minhas artérias que estão na reta. "Todos os médicos, de qualquer especialidade, deveriam saber dessa relação e contar para os seus pacientes que é prioridade máxima reduzir o açúcar no sangue se quisermos diminuir o risco cardíaco", avisa o cardiologista José Francisco Kerr Saraiva, professor da PUC de Campinas e atual presidente da Socesp, a Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo.

Mas penso que não adianta dar tantos números, por mais robustos que sejam. O que impressiona não necessariamente emociona. E o que pode fazer seu coração bater com uma pitada de emoção é entender direito uma história que, vira e volta, começa muito torta, porque coloca holofotes no açúcar quando, hoje, ele parece não ser o maior problema.

Fique sabendo: ganha cada vez mais força a ideia de que a verdadeira a peça-chave do diabetes tipo 2 é a resistência à insulina. Ela aparece quando o hormônio produzido pelo pâncreas perde eficiência e, aos poucos, deixa de fazer com que a glicose entre nas células. Ou seja, o perigo  surge antes mesmo (antes!) do diabetes, que seria a etapa na qual esse açúcar, sem ser tirado de circulação, fica dando sopa no sangue. Isso, diga-se, é o último dos fenômenos de toda uma reação em cadeia. E provavelmente a glicemia alta seja apenas a pontinha de um iceberg chamado diabetes.

 "Como no ovo-ou-galinha, ninguém sabe o que vem primeiro no tipo 2 da doença, que representa 90% dos casos: se é a glicose sempre alta pirraçando o pâncreas ou essa resistência, levando o organismo a não dar conta do açúcar consumido", conta o endocrinologista Carlos Eduardo Barra Couri, criador do Endodebate e curador da pesquisa. A resistência à insulina, porém, parece chegar antes. Afinal, ela é a marca registrada do tal pré-diabetes, que de "pré-doença" não tem nada. São 14 milhões de brasileiros nessa condição, número superior ao da estimativa de diabéticos. O coração de toda essa gente já vive sob ameaça. Tanto que a prevalência de doenças cardiovasculares entre pré-diabéticos de longa data e diabéticos é praticamente a mesma.

Ora, a resistência à insulina contrai as artérias, catapultando a pressão. E está sempre mal acompanhada pelo colesterol alto, pelos triglicérides igualmente nas alturas, pela apneia do sono, pela gordura no fígado ou esteatose e por outras encrencas, com destaque para a produção de uma penca de substâncias que inflamam as paredes dos vasos. É um todos-juntos-contra o pobre coração. Depois de muitos maus-tratos, quando o pâncreas se dá finalmente por vencido, o diabetes tipo 2 só chega para colocar a pá de cal no peito castigado.

A maior ironia da resistência à insulina é que ela, sem querer, espalha gordura nociva por tudo o quanto é canto. Mas é a saída. "Trata-se de um  mecanismo de proteção quando passamos a engordar demais", diz o doutor Couri. "Essa resistência impede que as moléculas gordurosas entrem nos adipócitos. Caso contrário, eles não iriam parar mais de se encher e estouraríamos feito uma Dona Redonda", diz o endócrino, fazendo referência à personagem da novela Saramandaia, um texto clássico de Dias Gomes (1922-1999). Nela, a mulher, dona de uma obesidade colossal, come sem parar no último capítulo, daí infla como um balão de gás até que ploft, lá no céu.

Ótimo, longe da realidade fantástica do autor e de pavões misteriosos, ninguém estoura de tão gordo. Mas, sem preencher as células do tecido adiposo, a gordura fica sem endereço certo, sobrando e acumulando nos vasos a ponto de entupi-los. Ela também vai parar no fígado, nos músculos, no próprio pâncreas e, sem dúvida, no coração. "Hoje, compreendendo melhor a doença, é simplista associar o diabetes apenas à glicose elevada no sangue. Diabetes também é muito ácido graxo na circulação", afirma Barra Couri. Coitadas das artérias…

O pior de tudo é o tal do colesterol ruim de um diabético. Cruel feito um serial killer, faz o colesterol ruim dos outros parecer um batedor de carteira desarmado. As moléculas de colesterol dos diabéticos são mais densas, menorzinhas — daí que se enroscam em qualquer ranhura nos vasos — e se oxidam formando placas por qualquer bobagem. Isto é, mesmo que o valor apontado nos exames pareça normal, devemos lembrar que esse colesterol tem uma qualidade muito pior. Portanto, é quase sempre uma ameaça, não importando a dosagem acusada no teste.

Aí tem o famoso açúcar para complicar de vez, ou melhor, a glicose sanguínea em uma quantidade espalhafatosa.  Ela provoca o fenômeno da glicação, comparável a fios de caramelo nas paredes dos vasos, as quais deveriam ser lisinhas. "Uma parede que não seja lisa provoca o aparecimento de coágulos", ensina Couri.  As bolotas de sangue coagulado podem, então, emperrar e impedir o fluxo sanguíneo no coração — é o infarto. Ou parar o trânsito do sangue na massa cinzenta, no caso do AVC.

A diferença do portador do tipo 2 para o do tipo 1 — que não foi ouvido na pesquisa — é que esse último não tem a resistência à insulina. Afinal, a doença apareceu porque seu corpo parou de fabricar esse hormônio, não há mais ao que resistir. No entanto, esse paciente tem todo o resto — um colesterol diferente, vasos caramelizados, tendência à hipertensão… Com a desvantagem de que, imaginando que o diabetes tipo 1 surgiu aos 10 anos de idade, aos 35 ele já estará fazendo bodas de prata. É muito cedo para o coração já ter vivido um quarto de século aos sobressaltos. E, pior, sendo solenemente ignorado.

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Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.