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Três vitórias nas batalhas contra a leucemia e outros cânceres do sangue

Lúcia Helena

13/08/2019 04h00

Crédito: iStock

Nunca mais a vi, mas gosto de imaginar que esteja bem. Quando a encontrei para uma entrevista, bem no início dos anos 1990, a menina tinha acabado de receber alta, o que comemorava com três estrelinhas reluzindo na pele cor de ébano, três furos na orelhas, uma vaidade em dose tripla proibida durante sete dos seus 12 anos. Foi esse o tempo que passou batalhando contra a leucemia em um hospital de Campinas, no interior paulista. A mãe, boia-fria, carregava a filha nos ombros ao longo de 3 quilômetros até alcançar a estrada e o ônibus que levaria a dupla ao local do tratamento. Não só pela força necessária — que chegou a ser literal —, vitórias assim, naquela época, mereciam chamada de revista. Aliás, foi o caso, em uma longínqua edição de Superinteressante, da Editora Abril, em que a história dos brincos ficou registrada. E, de tudo o que fiz na vida, esta foi a entrevista de que nunca esqueci. Cada brinco — um, dois, três — representava um sonho, foi o que me disse a garota. É dela que me lembro também agora.

Veja bem, 2019 é um marco. Há exatas quatro décadas era realizado o primeiro transplante de medula óssea no país pelo médico Ricardo Pasquini, na Universidade Federal do Paraná.  O procedimento, hoje realizado em cerca 3 mil pacientes por ano em mais de 80 centros brasileiros, possibilitou que um sem-número de pessoas superassem doenças onco-hematológicas, ou seja, um câncer no sangue. A leucemia é um deles, quando os leucócitos, os famosos glóbulos brancos, se reproduzem tresloucadamente. Fazem isso tão de qualquer jeito que atrapalham a vida não só por sua quantidade absurda, mas porque perdem a capacidade de executar a tarefa de nos defender. 

Se ocorre em células maduras, que destrambelham completamente, estamos falando de uma leucemia crônica. Já quando a doença se manifesta em células imaturas, que passam a se reproduzir feito coelhos, é uma leucemia aguda. Podem se juntar a esses adjetivos termos como mieloide, linfocítica e outros tantos— sempre conforme o tipinho específico do glóbulo branco afetado. Aviso: esse universo é uma sopa de letrinhas que não sei se você, leitor, está disposto a engolir.

Além das leucemias, existem males como o mieloma múltiplo,  para citar só mais um exemplo. Ele também foi beneficiado pela era dos transplantes. No caso, a bagunça é criada pelos plasmócitos, células que surgem da diferenciação dos linfócitos B  na medula. Ela, por sua vez, é um gel dentro dos ossos, a fábrica de todos os componentes sanguíneos. Defeituosos, os plasmócitos formam uns aglomerados esquisitos. A ideia do transplante, em qualquer uma dessas doenças, é zerar o jogo destruindo a matriz defeituosa para repovoar o interior dos ossos com uma medula novinha e sadia — do próprio paciente, tratada, ou de um doador. 

Para entender o panorama atual, fui conversar com o hematologista Nelson Hamerschlak, do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo, que é também presidente da Sociedade Brasileira de Transplante de Medula Óssea (SBTMO). Quarenta anos são história até não acabar mais. Mas vamos focar em três áreas  que tiveram um expressivo avanço recentemente. Claro, a dos transplantes é uma delas.

1. Transplantes: agora não tem como não fazer

"Aqui temos três novidades", me avisa, de cara, o doutor Nelson. "Uma delas é a realização de transplantes haploidênticos", diz ele. Vou traduzir: até há algum tempo, a pessoa doente precisava aguardar o famoso doador 100% compatível e essa espera era um pesadelo. Se não encontrasse a medula perfeita,  com a mesma receita genética que a sua, os próprios anticorpos do doador atacariam o organismo como costumam fazer diante de estranhos. Daí, tudo seria em vão. A sorte é que novas medicações cortam o barato desse ataque.  "Isso permite que a medula doada seja apenas 50% compatível, como a do pai ou a da mãe. Ou, como alternativa, fica fácil encontrar um doador em bancos de medula ou de cordão umbilical", diz Nelson Hamerschlak. "O transplante haploidêntico coloca um fim naquela de história de falta de doador." Quer notícia melhor?

Outra boa nova é que o tratamento que prepara o organismo para receber uma medula nova deixou de ser agressivo como no passado."Antes, não fazíamos transplante em pessoas mais velhas, porque elas simplesmente não aguentavam a toxicidade dos preparativos",  explica o médico. "Agora, realizamos o procedimento em pacientes com 75 anos", diz o hematologista. "Estima-se que 75% dos idosos transplantados continuem bem um ano depois."  

Aliás, bom eu frisar o verbo "estimar". Uma das brigas da SBTMO é para que os mais de 80 centros notifiquem seus resultados. "Hoje sabemos o número de transplantes feitos, mas não há dado de como ficaram os indivíduos tempos depois, o que nos ajudará a enxergar que tipos de câncer e quais perfis de paciente se beneficiam mais", explica o doutor Nelson.

Finalmente, a terceira notícia é que esse tratamento passa cada vez mais a ser usado em casos que nada têm a ver com o câncer, isto é, nas doenças autoimunes, como a esclerose múltipla e o Crohn.

2.  Novas drogas, novas esperanças

"Todas as doenças hematológicas tiveram progressos significativos nesse campo", adianta Nelson Hamerschlak. "O mieloma múltiplo, por exemplo, ganhou umas seis novas medicações nos últimos dois anos." O arsenal contra as leucemias também aumentou. Em 2017, a Medicina resgatou um remédio que havia sido aposentado por causa dos fortes efeitos colaterais. O nome é um palavrão: gemtuzumab ozogamicin. "Descobrimos que, ao dividir a dose em várias menores, as ações adversas caíam drasticamente."

Outro remédio que se juntou às opções terapêuticas nas leucemias mira uma mutação chamada FLT3. Presente em 20 a 30% dos casos, ela apontava um péssimo prognóstico. "Mas a nova droga praticamente corrige esse defeito", diz o médico.

Também saiu um medicamento — o primeiro de toda uma classe — que inibe uma proteína chamada BCL-2. E isso é bárbaro principalmente para os idosos que não aguentavam o tranco do tratamento  usado até então. "A BCL-2, na realidade, é a molécula que impede a morte dos glóbulos brancos doentes. Ao inibi-la, o remédio faz com que essas células entrem no modo autodestruição que a ciência conhece por apoptose", me contou o doutor Nelson.

E, para fechar com chave de ouro, no campo de batalhas das leucemias linfoblásticas agudas, surge o inotuzumabe — prometo que vou parar com esses nomes! Procure gravar o seu mecanismo apenas: "ele é uma espécie de cavalo-de-tróia que, atraído por uma proteína presente na célula cancerosa, a CD22, leva um quimioterápico para destruí-la até o  seu interior", explica o médico. Ou seja, promete resultados naqueles pacientes em que o disfarce é bem-vindo, porque a doença já foi e voltou e se mostra resistente a outras medicações.

3. O tratamento direto nas células doentes

O conceito da terapia celular é relativamente simples, mas fascinante: imagine se fosse possível pegar apenas as células doentes do sangue, tratá-las no hospital e devolvê-las, então, ao organismo. Estudos mostram que isso já é possível em mielomas e até mesmo em linfomas. A tecnologia está chegando ao Brasil, mas com um preço, infelizmente, na estratosfera.

O fato é que essa tecnologia, como tantas, abre  possibilidades. E aí mesmo é que me lembro da garotinha dos três brincos. Se cada um deles representava um sonho, quais seriam? Lá atrás, ela me contou um por um: "ir para a aula, brincar com os meus irmãos e ajudar minha mãe a limpar a casa". Ao ouvir a revelação dessa trinca, ridiculamente soltei: "só isso?!". A lição veio na resposta: "Isso é vida normal, aquela que todos nós queremos e só não sabemos disso." Calei o meu bico, nunca me esqueci e, apesar de tanta realidade querendo endurecer o nosso olhar, fico pensando que essas novidades poderão devolver pessoas à vidinha de sempre, à adorável, delicada e tão humana vidinha de sempre.

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Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.