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Não é preconceito: quem come demais está ajudando a acabar com o planeta

Lúcia Helena

05/09/2019 04h00

Crédito: iStock

"Enquanto você faz isso, tem criancinha passando fome…"—diga aí, quem nunca ouviu essa bronca ao deixar comida no prato? E é mesmo um comportamento deplorável: hoje, a humanidade joga fora 1,3 bilhão de toneladas de alimentos no lixo por ano. Faz isso inclusive desse jeito, isto é, abandonando restos ao cruzar os talheres. Ou preparando panelões com porções gigantes que depois ficarão sobrando esquecidas em cima do fogão ou na geladeira… Mas, em matéria de desperdício, existe algo que parece ser ainda mais grave do que ter um olho maior do que a barriga: é ter olho, boca e estômago maiores do que a necessidade de energia do organismo para viver bem e de maneira saudável. 

O assunto aqui, delicado à beça, é o que alguns cientistas andam chamando de desperdício metabólico de comida. Guarde a expressão. Vale a pena refletir um pouco sobre esse novo conceito. Pois o fato é que, no mesmo ritmo em que os seres humanos engordam, o planeta vai ficando cada vez mais esquálido de recursos naturais e sufocado pelo efeito estufa. 

Precisamos encarar que comer além da conta é um hábito contra a tão necessária sustentabilidade da Terra.  Afinal, quando afirmam que é preciso produzir alimento para saciar uma população de 7 bilhões de indivíduos espalhados pelos continentes, esse raciocínio já é errado de largada.  Ora, ora, a Organização Mundial de Saúde estima que mais de 1,9 bilhão de adultos e 41 milhões de crianças com menos de 5 anos de idade sofrem de sobrepeso e obesidade — esta, uma doença crônica das mais graves, que tem diversas causas e, entre elas, notoriamente está o consumo excessivo de calorias. Uma ingestão bem além do que o organismo consegue gastar, que logo se transforma em gordura corporal.

Portanto, podemos deduzir que uma pessoa acima do peso comeu por mais do que uma única pessoa. Simples assim. Essa é uma matemática realista. E, desse modo, a produção para sustentar tanta comilança deve ser maior do que para alimentar os tais 7 bilhões de habitantes do planeta. Na prática, nós — a humanidade tão voraz –,  temos o apetite de muito mais gente. Pesamos nas costas da Terra.

No entanto, ao contrário daquele que se serve de mais colheres na travessa do que sua fome é capaz de devorar, quem tem obesidade não exagera porque é folgado, muito menos porque quer. Fundamental frisar que se trata de uma doença capaz de destrambelhar completamente os hormônios que controlam os mecanismos do apetite e da saciedade. O desequilíbrio químico não dá muita margem à força de vontade.

A abordagem do desperdício metabólico de comida é, ao meu ver, só um argumento a mais apontando a urgência para combater essa pandemia. Isto posto, deixando claro que não se trata de preconceito na linha gordofobia — atitude tão ou mais feia do que devolver o prato cheio no final da refeição —, vou dar sustância à discussão com dados de um estudo recente, muito curioso, publicado na Frontiers in Nutrition, por pesquisadores da Universidade de Teramo, na Itália. 

Os cientistas fizeram um cálculo de qual seria o impacto ambiental do excesso de ingestão calórica. E, pelo resultado, do ponto de vista do meio ambiente, o alimento que jogamos no lixo é mero aperitivo. "A ingestão de calorias extras, além daquelas de que o corpo precisa, equivale a 140 bilhões de toneladas de comida globalmente", nos conta o professor Mauro Serafini. Já fez a conta de cabeça? Algo como 138 bilhões de toneladas a mais do que o que vai para as lixeiras do mundo.

O nutricionista liderou o trabalho, que avaliou o índice de massa corporal ou IMC nas regiões em que a Food and Agriculture Organization (FAO), das Nações Unidas, divide o mundo. Ou seja: Europa, América do Norte e Oceania em um bloco só, América Latina, África Sub-saariana, Norte da África e Ásia. Os cientistas, depois, analisaram o valor energético dos alimentos mais consumidos nessas áreas e o quanto eles gastavam, em média, de recursos do planeta até chegarem à mesa.

O professor Serafini faz questão de nos lembrar que frutas, legumes e verduras não são apenas menos calóricos — são opções que, além de muito saudáveis, gastam menos água e cujo cultivo emite menos gases na atmosfera do que a produção de alimentos densos em calorias, principalmente aqueles que são ultraprocessados. Faz sentido, porque esses ainda podem contar com o impacto ambiental das indústrias.  Ou seja, se um bife chega na sua frigideira depois de a floresta virar pasto e a vaca soltar seus puns, sem contar o combustível queimado para levar a carne até o mercado, é possível que um hambúrguer industralizado some ainda a fumaça e outros impactos de fábrica. 

Mas, em resumo, se pudéssemos separar a quantidade de alimentos que a humanidade come a mais, essa porção extra representaria em torno de 240 bilhões de toneladas de gás carbônico pelos ares.  "Se quer ter ideia do que seria isso, equivale a quase sete anos da emissão promovida pela queima de combustíveis fósseis no mundo", explica o professor Serafini. Muita coisa mesmo.

No entanto, eu devo avisar que essa e outras contas apresentadas no trabalho sofrem críticas justas, porque são imprecisas. Primeiro, os cientistas italianos não consideraram quais países têm, por exemplo, maior reaproveitamento de água na agricultura e até mesmo nas indústrias de alimentos. E, no que diz respeito à saúde, eles tomaram como referência um IMC de 21,7, que seria um ponto médio da faixa de peso normal. E, claro, um índice de massa corporal 25 ainda não é sobrepeso nem obesidade. Ou seja, não se pode dizer que alguém que está com 22, 23, 24 ou 25 de IMC esteja consumindo mais calorias do que o seu corpo de fato carece. Aliás, há até mesmo exceções — que, óbvio, nunca seriam consideradas em um estudo de tal amplitude — de gente com valores mais elevados, só que por causa de músculos, como poderia ser o caso de um halterofilista.

Enfim, de qualquer maneira, mesmo que os números não sejam assim tão precisos e mereçam um belo desconto, eles são tão grandiosos que não dá para negar que existe um impacto ambiental, sim. Enfrentar a obesidade pra valer — com o esforço de profissionais de saúde, a maior responsabilidade da indústria e de toda a cadeia de produção de alimentos, além de boas políticas públicas –,  fará bem ao futuro de todos nesta Terra, gordos e magros.

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Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.