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Drunkorexia: diferente do alcoolismo, ela é tão ou mais cruel para a cabeça

Lúcia Helena

24/09/2019 04h00

Crédito: iStock

Como se já não houvesse um bocado de problema por aí, ainda trago mais este: a drunkorexia, já ouviu falar? Pois, se já ouviu, está na hora de rever seus conceitos. O termo, publicado pela primeira vez em 2008 — uma soma de drunk, ou seja, bêbado em inglês, com orexis, que significa apetite em grego —  vinha sendo usado para designar uma espécie de mistura de anorexia com encher a cara. Só que sempre preferindo beber de barriga vazia, em uma tentativa de consumir apenas as calorias do álcool para evitar engordar.

Achava-se que era coisa de quem vivia com um olhar focado demais nos ponteiros da balança. Além disso, diziam por aí, esse seria um transtorno basicamente feminino. Um engano daqueles: embora essa seja uma das possíveis manifestações da encrenca, a drunkorexia se mostra bem mais complexa e não pode mais ser definida desse jeito. 

Precisamos encarar todas as suas faces. Uma delas, que se torna mais frequente no mundo inteiro, é botar para dentro, no curto intervalo de duas horas no máximo, de cinco a seis doses de álcool. Anote na memória essa nova definição médica — e, ah, saiba que deixa de ser um problema ocasional e passa a ser dunkorexia das bravas quando o episódio se repete uma única vez a cada mês. Aí, com essa frequência, a pessoa diz com a maior sinceridade do mundo que ela só bebe de vez em quando, sabe como é?  Mas eu diria que faz a coisa direito, se o objetivo é destruir massa cinzenta em ritmo de vira-vira-vira.

Ninguém está se referindo ao alcoolismo, quando o sujeito se torna dependente e precisa da bebida de cada dia — se bem que a drunkorexia pode ser um gatilho para essa doença também.  Na drunkorexia, porém, o indivíduo pode passar dias ou semanas sem encostar a boca no copo de cerveja, vodka, gin… Só que, quando bebe,  faz isso sem qualquer petisco para que o barato do álcool aconteça depressa. Já notou alguém se comportando assim? Popular, beber até cair. E vou dizer: essa gente cai mesmo. Dá o célebre "pt" , perda total, como a moçada costuma apelidar. Para os neurônios, uma perda e tanto.

Depois de amanhã, na quinta-feira, começará o XXIII Congresso Brasileiro de Nutrologia, em São Paulo. E, durante o evento, a médica argentina Maria Del Rosario de Alonso falará sobre o assunto. "'A drunkorexia é enganadora e os próprios profissionais de saúde se confundem", afirma a especialista em transtornos alimentares, que vive em Florianópolis há três décadas e que é professora do curso de pós-graduação da Associação Brasileira de Nutrologia, a ABRAN, da qual também é diretora e coordenadora científica. "Apesar de o problema ser mais observado em mulheres, hoje vemos muitos homens com drunkorexia."

Neles, a ideia inicial pode ser a antiga, isto é, evitar a todo custo o ganho de peso. Em vez de trocarem uma refeição pelo álcool da balada, os rapazes costumam esbarrar em outro transtorno, a vigorexia, apelando para horas de academia em plena ressaca, a fim de que o exercício extenuante derreta as calorias de cada rodada no bar.

Existe ainda quem tome laxantes ou  provoque vômitos entre um drinque e outro, como se tivesse uma bulimia. Moral: a tal drunkorexia  pode ser um coquetel não só com a anorexia, mas com todos esses transtornos. No entanto, volto a frisar,  nem sempre é o medo de engordar que está por trás. O desejo mais comum nos dias de hoje é mesmo o de, na hora agá, ficar alto, bebendo de barriga vazia menos pelo cuidado com as  calorias e muito mais para não criar os obstáculos para o álcool subir ligeiro à cabeça.

Segundo a professora Maria Del Rosario, 33,3% das universitárias mulheres já fecharam a boca para a comida, pelo menos em alguma ocasião, para priorizar o efeito do álcool — sim, redondinho, um terço delas. E é mais ou menos assim em muitos países.

O ingrediente protagonista das bebidas alcoólicas é o etanol. Uma pequeníssima parte dele começa a entrar na corrente sanguínea logo na boca. No estômago, depois de escorregar pelo esôfago, uns 25% já foram absorvidos. Mas aí é que está: o resto, em tese, só cairia na correnteza do sangue ao chegar no intestino delgado. Isso pode levar um intervalo que vai de 15 minutos, quando não há comida junto disputando a entrada, a 60 minutos. Portanto, estar ou não de barriga cheia altera completamente essa velocidade.

Uma vez no sangue, as moléculas de etanol têm uma tremenda facilidade para invadir células com alta concentração de água, que é o caso das do fígado e dos neurônios cerebrais. No fígado, ao menos, seriam quebradas, cortando a possibilidade da embriaguez. Mas, na drunkorexia, o excesso de velocidade atrapalha: o órgão precisaria de uma hora inteirinha para dar conta de uma dose de álcool equivalente à de uma lata de cerveja. Não consegue metabolizar um, dois…, cinco shots de uma só vez. 

Daí que sobra, ao pé da letra, para o cérebro. "Nessas condições, o álcool praticamente não faz escala no fígado", ensina a professora Maria Del Rosário. "E claro que, circulando livre por várias partes, faz estragos por todo o organismo, causando gastrite, pancreatite… Mas é o sistema nervoso que mais nos preocupa", avisa. Há até casos registrados — não são poucos — de convulsões.

Mesmo quando não ocorre o tal "pt", alguns neurônios se apagam ao serem encharcados pelo etanol e não voltam nunca mais. Nunquinha. Em uma sociedade com maior longevidade, cada brincadeira dessas é  comprar a prestação uma demência para ser exibida no futuro. "As áreas cerebrais mais afetadas são as da memória. Tanto que, quando o jovem volta a si de um desmaio por causa da bebedeira repentina, frequentemente nem se lembra do que aconteceu. E essa amnésia alcoólica pode durar uma semana. Ele mal se vira com os estudos nesse período", nota a médica.

As mulheres são ainda mais vulneráveis. Não há nada de moralismo nisso. É que o organismo delas, por natureza, produz uma quantidade menor de desidrogenase alcoólica, a  molécula que quebraria o etanol.  Então, se o fígado ajuda pouco quando a bebida chega em um zás-trás e em grande quantidade, ele vira um zero à esquerda completo se há uma carência dessa enzima. Ligeira vantagem para os rapazes. 

Em sua aula no congresso, a médica pretende entregar aos colegas algumas pistas que levantariam a suspeita da drunkorexia, como alterações em certas enzimas hepáticas e até déficits de vitaminas que deixam de ser absorvidas quando alguém prefere beber a comer. Se o diagnóstico é confirmado, dependendo do caso — se há de fato um medo exagerado de engordar, por exemplo —, uma equipe multidisciplinar precisa chegar junto. Para o restante, que agora é maioria, o fundamental é mostrar os prejuízos ao cérebro. "Não acho que ninguém vá deixar de beber por causa disso", conforma-se a professora Maria Del Rosario. "Por isso mesmo, temos de, ao menos, ensinar de novo os jovens a beber". Leia-se: a comer direito, antes de virar o copo. E a dar um tempo maior entre um brinde e outro. 

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Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.