Sementes de pitanga e cerejinha de Mattos para prevenir câncer de intestino
Lúcia Helena
26/09/2019 04h00
A deliciosa e tão nossa pitanga. Crédito: iStock
Elas são primas, da família Myrtaceae. Têm até o mesmo nome, são duas Eugenias. Uma é a Eugenia uniflora, a nossa pitanga. Sim, ela é toda nossa. Nasceu aqui. E já ensinou a muita criança sortuda a alegria que é colher uma fruta no pé, quando as pitangueiras ficam pipocadas de pontinhos vermelhos. Já a Eugenia mattosii é mais rara. Foi descoberta no estado de Santa Catarina e praticamente por lá ficou. Conhecida como cerejinha de Mattos ou cambuí, infelizmente corre o risco de extinção.
As duas parentes são vistas nos jardins da Universidade do Vale do Itajaí (Univali). Portanto, há 22 anos a professora Sandra Soares Melo passa por elas — há 20 deles para seguir para o laboratório onde atua na instituição catarinense, o de Nutrição Experimental. E, como o olhar da ciência é aquele que sempre vislumbra o novo naquilo que até então insistia em ser cotidiano, em 2017 as duas espécies foram parar dentro do próprio laboratório cujo trajeto enfeitavam.
A Univali, para quem cobre a área de saúde há tanto tempo como eu, é reconhecida como um ninho de excelência em pesquisas sobre plantas medicinais e alimentos funcionais, sendo a professora Sandra, talvez, uma das maiores estudiosas brasileiras na capacidade que certos integrantes da dieta têm de ligar ou desligar nossos genes — os que estão por trás de doenças, por exemplo, os quais adoraríamos tirar da tomada.
Por causa do liga-e-desliga genético, o vermelho dos frutos no local de trabalho, um belo dia, chamou a atenção da professora e de mais seis colegas. O tom rubro entregava a forte presença de antocianina, substância antioxidante que pode justamente calar genes que levam a tumores.
Na verdade, as duas frutas têm mais. Suas árvores são carregadas de minerais como cálcio e fósforo, vitamina C, fartura de carotenoides, compostos fenólicos, terpenos, esteroides… Pencas de substâncias que poderiam interferir positivamente na saúde. Por isso, as cientistas resolveram testar o potencial de folhas, frutos e sementes de cada espécie. E, como falar em saúde é algo amplo demais, decidiram focar seus efeitos em um dos cânceres mais prevalentes no país, o de intestino. Até porque ele está tremendamente relacionado ao que a gente come — se abusa de carnes, de gordura, de sal. Vai que pitanga e cerejinha de Mattos fizessem o efeito inverso, não é mesmo?
Pois bem: as sementes das frutinhas mostraram uma ação tão, mas tão importante nesse sentido que o trabalho acaba de ganhar o 1º lugar no 15º Congresso Internacional de Nutrição Funcional, evento que aconteceu na semana passada em São Paulo, depois de concorrer com mais de 400 pesquisas oriundas de diversos países.
Claro que as cientistas se surpreenderam ao passar por essa peneira fina e, na certa, estão comemorando até agora. Mas, olhando para trás, a professora Sandra Melo reconhece: "Esse foi um estudo que, desde o primeiríssimo instante, já nasceu importante", entendendo o que levou o júri a consagrá-lo vencedor. E explica essa opinião: "Ele é inédito no mundo inteiro. Nunca ninguém tinha olhado para a pitanga antes e imaginado se ela poderia ajudar no câncer. Muito menos para a cerejinha de Mattos."
De fato, quando é assim, a ciência aplaude de pé, até mesmo quando o resultado é um "não funciona", feito uma placa avisando para outras pesquisas não seguirem pelo mesmo caminho. Mas não foi o caso. Adianto a boa nova: funciona.
Primeiro, as cientistas observaram os efeitos de ambas as espécies em células doentes in vitro — estudaram tanto as folhas, quanto os frutos e as sementes. De largada, ficaram animadas com o que viram pelo microscópio. E foi aí que resolveram iniciar a etapa com animais utilizando as sementes. No laboratório, 28 ratos passaram a receber um extrato feito das sementes de uma fruta ou de outra. Foram nove semanas assim, dia após dia, indo entregar esse líquido concentrado diretamente no esôfago dos bichinhos por meio de uma sonda, "sem a exceção de sábados, domingos, nem feriados", lembra a professora.
Na terceira semana, porém, uma parte dos animais ficou só nisso, permanecendo saudável. O restante recebeu ao longo de 15 dias, sem interromper o extrato de sementes, quatro doses de uma droga de nome complicadíssimo e efeito nefasto — a dimetilhidrazina, notória por provocar o câncer de intestino.
O esperado, então, era o surgimento de criptas aberrantes — nome que soa quase exótico aos ouvidos leigos e que designa os pontos de partida de um tumor intestinal, ou seja, o berçário de um câncer nesse órgão, vamos dizer assim. De olho nisso, passadas as nove semanas recebendo o extrato das sementes, as pesquisadoras examinaram com atenção a porção inicial, a do meio e a final ou distal do intestino dos roedores— a última área é onde o câncer mais costuma dar as caras. "Quando encontramos duas ou três criptas aberrantes, estamos diante de um tumor grave", ensina Sandra Melo. "De quatro em diante, então, trata-se de um câncer gravíssimo."
No entanto, nos animais tratados com o extrato feito com as sementes de pitanga, não se viu nada assustador. "Esse extrato atuou diretamente nos genes, como se desligasse aqueles por trás da formação do câncer", explica a professora.
Já o extrato feito com as sementes da cerejinha não barrou o aparecimento da doença induzida pela droga, mas ajudou um bocado no estado nutricional dos ratos — sinal de que poderá ser útil, amanhã ou depois, para melhorar a resistência dos pacientes humanos que precisam enfrentar com força esse mal e o próprio tratamento contra ele.
No futuro, segundo a pesquisadora, os extratos poderão ser dados àquelas pessoas que têm propensão genética a desenvolver um câncer de intestino. Mas, antes de chegar a esse ponto, ela e suas colegas arregaçam as mangas para, no semestre que vem, repetir a experiência usando a polpa das frutinhas. "É muito provável que as frutas tenham a mesma ação preventiva", afirma Sandra com entusiasmo. E justifica: "Nos testes in vitro com células doentes, a polpa da pitanga também mostrou esse benefício".
Ela e suas parceiras de laboratório começaram pelas sementes até por serem desprezadas — em um mundo que não pode se dar ao luxo de cuspir mais nada. É evidente que faltam muitos passos para obtermos respostas precisas , incluindo separar as substâncias no extrato para ver qual ou quais delas são mais responsáveis pelo benefício.E ainda nem se sabe como frutas ou suas preciosas sementes agiriam na prevenção de outros tumores. Mas acredite: ao menos no que diz respeito ao intestino, todos os indícios até o momento são de que vale a pena consumir a pitanga. Bastariam, desconfia Sandra Soares, umas 10 frutinhas por dia para manter o mal mais distante. E – aí, falo por mim — trazer uma alegria de infância mais para perto.
Sobre o autor
Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.
Sobre o blog
Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.