Mama densa: aquele peito todo firme e durinho corre mais risco de um câncer
Lúcia Helena
08/10/2019 04h00
Crédito: iStock
A mamografia é, sem dúvida, bárbara, capaz de flagrar um tumor de mama antes mesmo de ele se tornar palpável, quando a chance de resolvê-lo é bem maior. Não vou dizer o contrário. Mas também não posso esconder que nem toda paciente se beneficia assim ao fazer o exame. Em algumas, feito camaleão, o câncer simplesmente se confunde com todo o resto que se vê na imagem e o sossego dado pelo laudo é enganador. Isso acontece quando a mama é densa. Nela, o resultado afirmando que está tudo bem pode ser um equívoco.
Não entendo por que não se fala mais nisso. A gente precisa esclarecer que o Outubro Rosa é cheio desses tons de cinza. Em 35 dos 50 estados americanos, isso já rende até lei: neles, o médico deve obrigatoriamente informar qualquer mulher sobre a quantas anda a sua densidade mamária. Direito dela. E eu pensava que isso era por causa, apenas, da probabilidade de a doença ficar escamoteada na imagem produzida pelo mamógrafo. Que nada, tem mais: a mama densa é, por si só, um fator que favorece o desenvolvimento de um câncer.
A ideia de puxar o assunto veio quando ouvi a radiologista Fernanda Philadelpho comentar, assim como quem não quer nada, esse papo do risco mais elevado em quem tem mamas densas. Ela fez isso ao dar uma aula sobre os avanços no rastreamento do câncer para colegas médicos. Fernanda coordena, no Rio de Janeiro, o setor de exames de mama dos laboratórios da Dasa e, só de pescar o que ela soltou no ar, minhas orelhas ficaram em pé.
Eu achava que a questão era só aquela, a de o tumor passar em branco — o que já não seria pouca bobagem. Aliás, ele pode passar em branco literalmente. "A mama muito densa aparece toda dessa cor na imagem", Fernanda me descreveu depois. Ou seja, haja olhos para perceber o que é uma coisa e o que é outra. Mas, como eu disse, esse é apenas um pedaço do problema. Então, para tudo!
Cada mulher carrega sua marca no peito. Não adianta querer colocar na caixinha, nem estabelecer rótulos que caíram, faz tempo, por terra — aqueles que diziam "aqui temos mamas de mulher mais velha", "e aqui temos mamas de moça", "mamas grandes são assim" ou "mamas pequenas são assado". Mamas são únicas e não respeitam essas convenções. Cada par tem sua composição de gordura e do que os médicos chamam de tecido fibroglandular — o mix de glândulas, ligamentos e colágeno, que dá estrutura ao conjunto.
A densidade mamária é a proporção desses dois tecidos. Claro, mamas densas tendem ser mais firmes — não deve ser coincidência que o tal tecido fibroglandular vai sendo trocado por gordura, enquanto os peitos, com a idade, se a gente deixar a natureza mostrar sua face sem silicone, podem ficar molengas como bexigas murchas. Mas cuidado: nunca, nunca mesmo, se deixe levar pelas aparências. Na contrapartida, por exemplo, o peito empinado pode ser somente o fruto de muito exercício fortalecendo a musculatura por trás e, claro, músculo não tem nada a ver com densidade mamária, ok?
Se quer saber pra valer se uma mama é mais ou menos densa, só mesmo fazendo um exame de imagem. Uma mamografia, por exemplo. Na gordura, o raio X do mamógrafo penetra de boa — daí, tudo sai cinza. Mas o tecido fibroglandular é uma barreira ao raio X — então, a imagem fica feito uma nuvem em dia de sol. Um bom radiologista pode determinar a densidade diante dos cinzas e brancos que enxerga.
Repare no resultado — seja o da mamografia, o do ultrassom ou até mesmo o de uma ressonância. Você deve encontrar um número e uma letra. É o BI-RADS, sigla do inglês para Breast Imaging and Reporting Data System, sistema de categorização criado pelo Colégio Americano de Radiologia e que terminou sendo adotado no mundo inteiro. "A letra, de 'A' a 'D', indica o tecido que predomina", ensina Fernanda Philadelpho.
Quem recebe um "A" tem uma mama pouquíssimo densa, feita basicamente de tecido adiposo. A mama que leva um "B" ainda assim é pouco densa, com glândulas esparsas aqui e acolá. A coisa muda de figura na mama que ganha um BI-RADS "C": ela já tem mais tecido fibroglandular do que gordura, ou seja, é classificada como densa. E, finalmente, a mama com um "D" no BI-RADS é extremamente densa, com uma concentração enorme de glândulas e fibras. "Se a gente comparar mamas "C" e "D", isto é, densas, com mamas "A" ou "B", o risco de surgir um câncer nas primeiras é de quatro a seis vezes maior", avisa Fernanda.
Ninguém sabe a razão de a ameaça do câncer crescer na proporção da tal densidade. Há somente hipóteses. Uma delas é de que o ambiente das glândulas tende a produzir mais substâncias que são fatores de crescimento para um eventual tumor. "Isso é tão importante que existem vários softwares para analisar as imagens e apontar, por exemplo, se ali há 30% ou 50% de tecido fibroglandular", me conta Fernanda.
Importante: as novas tecnologias derrubam o mito de que toda mulher madura tem mamas cheias de gordura. "Hoje sabemos que, em geral, 43% das pacientes têm mamas densas", diz a radiologista. Na verdade, mais de metade das mulheres com menos de 50 anos têm mamas assim, que podem enganar na mamografia; 40% delas, na faixa entre os 50 e os 60 anos. Acima dessa idade, de 25% a 30%. "Alguns estudos apontam que até um terço das pacientes com 70 anos ainda têm mamas densas", diz Fernanda.
Mas, com antigos conceitos na cabeça, o médico às vezes nem pede o exame de ultrassom para mulheres mais velhas — daí a lei em estados americanos para que elas tenham ciência. Sem ver a densidade, deixar o ultrassom de lado é, talvez, marcar bobeira. Fernanda Philadelpho explica: "Na mamografia, um câncer aparece branco e disfarçado no meio do tecido fibroglandular da mesma cor. Já na imagem do ultrassom, ele se confunde com a gordura. Ou seja, se a mama tem menos tecido adiposo, mais fácil um tumor inicial saltar aos olhos nesse outro exame."
Também há outro extremo: médicos que já pedem o ultrassom e a mamografia em uma tacada só. "Brincamos que eles prescrevem o kit", me conta Fernanda. "Pode ser um gasto à toa. A prescrição de um exame ou de outro para iniciar o rastreamento deveria ser orientada pela densidade mamária", frisa.
Um dos desafios na indicação da ultrassonografia é a dependência do radiologista na hora agá, assim como o time de futebol inteiro depende só do goleiro no instante do pênalti. O que o médico enxergar — ou não — no momento em que a paciente está na sala de exame é o que constará no resultado. Na vida como ela é, sempre há o risco de ele precisar fazer o exame mais depressa, estar com os olhos cansados no final do dia, ter menos experiência… Por isso, recentemente Fernanda Philadelpho testou, na Dasa, uma nova tecnologia que ainda só está disponível para pesquisa: o ultrassom automatizado.
O estudo foi realizado com 500 mulheres e ainda será publicado. Nesse exame, não é preciso um médico deslizando o transdutor do ultrassom na mama com gel para enxergar mais aqui e mais acolá. Uma técnica treinada encaixa a mama no equipamento que a analisa como um todo. A imagem, então, vai para uma estação de trabalho, onde o médico pode examiná-la com calma — sem perder o tempo, por exemplo, da troca de paciente na sala. "A principal vantagem, porém, é a imagem poder ser avaliada por um, dois ou mais profissionais, diminuindo a chance de algo passar batido", diz Fernanda.
Por falar em passar batido, acho que nem preciso dizer que o famoso autoexame só flagra lesões palpáveis, que são imensas perto do que a mamografia e a ultrassonagrafia conseguem acusar. Ainda mais se a mama for densa e grande, quando a encrenca pode estar longe da superfície, coberta por um tecido bem firme — praticamente atrás de um paredão, entende? Pronto, falei. Se eu pudesse fazer campanha em mais um outubro, diria para a mulher ir ao médico e não sair de lá sem descobrir sua densidade mamária.
Sobre o autor
Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.
Sobre o blog
Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.