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Hora de rever tudo: talvez, implantar stents no coração seja a pior saída

Lúcia Helena

14/01/2020 04h00

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No próximo editorial de sua revista científica, a Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular (SBCCV) dará um conselho importante aos médicos, que é para eles seguirem a recente recomendação da European Association for Cardio-Thoracic Surgery (EACTS). Então, para tudo! Afinal, os europeus pediram aos colegas que, ao menos até que se prove o contrário, desconsiderassem parte do que está escrito em suas próprias diretrizes, na linha "não está mais aqui quem falou".  

Diretrizes são uma espécie manual que todo profissional de saúde ético segue à risca, orientando a melhor conduta em cada caso. E ninguém as tira da cartola: toda diretriz é baseada nos últimos estudos, ou seja, no que haveria de mais sério e confiável para tratar um paciente em determinado cenário. Mas o que está acontecendo na Cardiologia beira o escândalo e diz respeito aos stents. Que, aviso, continuam sendo ótimos em muitos casos, mas não para todo mundo.

Pois bem, segundo as diretrizes da EACTS, diante de alguém com estreitamento em uma área específica da coronária esquerda, tanto fez, tanto faz usar o bisturi para abrir o tórax de uma vez e usar vasos de outras partes do corpo para criar as famosas pontes, capazes de saltar a região obstruída, ou apelar para um stent, um pequeno tubo metálico que, introduzido através da incisão mínima de uma angioplastia, ficaria instalado na área problemática, deixando o sangue fluir de boa. Só que parece que não é bem assim. Parece que não é tanto fez, tanto faz.

O clima esquentou graças à denúncia feita no encontro anual da própria EACTS , em Lisboa, outubro passado. O estudo EXCEL, em que as diretrizes europeias se basearam para afirmar "vá lá, faça uma angio se quiser e tudo bem", mudou as regras no meio do jogo. Se elas continuassem as mesmas do início, a conclusão seria de que o risco de o coração voltar a dar chabu após o implante do stent é 80% maior em relação aos pacientes submetidos à cirurgia para colocar pontes. A história piora: o risco da turma da angioplastia morrer nos cinco anos seguintes é 35% maior. Mas esses dados, desfavoráveis aos stents, ficaram sob o tapete.

Tudo começou ainda em 2010. Os autores do EXCEL, coordenados pelo cardiologista Gregg Stone, da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, queriam saber o que seria melhor para tratar o coração em apuros por causa de lesões no tronco da coronária esquerda. "O coração possui três grandes artérias, ou coronárias", ensina o cardiologista português, nascido em Moçambique, Rui Manuel de Almeida, que é professor e coordenador do curso de Medicina do Centro Universitário Assis Gurgacz, no Paraná, e foi presidente da SBCCV até o final do ano passado. Hoje, dirige o Departamento de Educação Médica da mesma entidade. 

"Uma dessas coronárias está à direita e é responsável por irrigar esse lado do músculo cardíaco, que bombeia o sangue para os pulmões pela artéria pulmonar", continua o professor Almeida. Já no lado esquerdo, o bicho pega. "Ali, a coronária se divide em duas, saindo do tal tronco", explica. Fácil entender, então, que qualquer obstrução bem nesse pedaço é problema em dobro. E tudo fica ainda mais grave lembrando que esses grandes vasos irrigam o lado esquerdo do músculo, a partir do qual o sangue é impulsionado para o corpo inteiro. 

É justamente no tronco da coronária esquerda — e apenas no que diz respeito a ele — que os stents foram parar na berlinda. Implantá-los, claro, sempre soa tentador. O paciente vai para casa cerca de 24 horas depois. Portanto, que a vantagem imediata existe, ninguém nunca duvidou.  Mas o que aconteceria a longo prazo? Encontrar a resposta era o objetivo do estudo EXCEL. 

Nele, mais 1,9 mil pacientes com um estreitamento ou obstrução no tronco foram divididos  — metade passou pela cirurgia de ponte e outra metade fez a angioplastia. Após três anos, os cientistas compararam o que tinha acontecido com uma turma e com a outra, registrando aqueles que sofreram novos ataques cardíacos, casos de acidente vascular cerebral e, claro, mortes. De fato, operar ou fazer a angioplastia parecia dar na mesma até então.

A bomba estourou quando foram publicados os resultados de cinco anos de acompanhamento desses pacientes e o professor David Taggart, da Universidade de Oxford, na Inglaterra, outro autor do trabalho, resolveu abrir o bico — no congresso da EACTS e, depois, em rede nacional para a BBC. Ele se mostrou inconformado com a mudança de critério para avaliar um ataque do coração. Sem a publicação completa dos dados, o EXCEL parecia um conto de fadas.

Existe mais de uma maneira de avaliar se o coração sofreu um infarto. A mais comum delas é chamada de definição universal: os médicos usam como parâmetro a combinação do eletrocardiograma com a dosagem da troponina no sangue. Essa substância se eleva sempre que qualquer músculo do corpo, e não só o do coração, sofre uma lesão. "A própria cirurgia de ponte faz aumentar a troponina, porque abrimos o músculo cardíaco", diz o professor Rui Almeida. 

Já pela outra definição usada pelos autores do EXCEL, bastaria fazer esse exame de sangue, sem o eletro. Os quase 2.000 pacientes do estudo, diga-se, foram avaliados de acordo com as duas. Mas os autores esconderam direitinho o que apontava a definição universal. 

"Nenhuma das duas é melhor ou pior", vai logo esclarecendo Rui Almeida. "Imagine que você tem três carros alemães. Os três podem rodar maravilhosamente bem, mas terão motores diferentes, consumo diferente… E você saiu de casa com uma BMW trocando por um Volkswagen no meio do caminho, mas sem avisar ninguém", faz a comparação para a gente entender a polêmica do estudo sobre stentsO fato é que a definição universal apontava com clareza um risco maior de mortes e novos infartos. Para aqueles pacientes com lesão no tronco, volto a frisar — e não para entupimentos em outros pontos do peito.

Em 2019, foram realizadas 96.947 angioplastias pelo  SUS. Dessas, na estimativa do professor Rui Almeida, entre 10% e 12%  devem ter sido na região do tronco. Ou seja, perambulam entre nós uns 10 mil brasileiros com stent que estão se achando a salvo enquanto pode não ser bem assim. 

"Se considerarmos a assistência privada, essa proporção praticamente dobra", observa o professor. Faz sentido: o correto é o médico apresentar ao paciente a opção de fazer a angio e a operação para ele decidir. Natural pensar que muitos escolham o caminho mais fácil do stent, ouvindo apenas os prós — menos dor, sair depressa do hospital, maior segurança no procedimento — e desconhecendo os contras.

Duas perguntas. A primeira é: por quê? No meio da confusão, as suspeitas caem no fato de o estudo ter sido patrocinado por um grande fabricante de stents. Se for isso, lamentável. Para o  professor David Taggart, que caiu fora do grupo, a situação no mundo real deve ser até mais grave, porque os pacientes do EXCEL tinham lesões de pequenas a moderadas e idade média de 60 anos. Na vida como ela é, existem pacientes mais velhos e com estreitamentos mais graves, logo… Imagine o risco de morte e de novos ataques em corações mais esculhambados.

A segunda pergunta é: e agora? O professor Rui Almeida conta que grupos independentes de cientistas, isto é, sem envolvimento com qualquer indústria, devem reavaliar os resultados do trabalho. Até lá, vale o que os europeus e a nossa Sociedade Brasileira de Cirurgia Cardiovascular recomendam: esperar para ver. 

Errata:

Caros leitores, eu errei ao dar a entender que a coronária direita mandava sangue para os pulmões quando, na realidade, ela irriga o lado direito do músculo cardíaco, que manda o sangue para esses órgãos. Isso já foi corrigido. Apenas gostaria de destacar dois pontos:

  1. O professor Rui Almeida teve a oportunidade de conferir as informações na véspera da publicação e sugeriu apenas uma troca de palavras, sem mexer em nada nesse trecho. Então, por favor, fiquem seguros de que as informações veiculadas neste blog são sempre conferidas e que confiei nessa revisão. Passou batido pelo médico. Pode acontecer — e nunca aconteceu antes.
  2. O erro  estava em um trecho que poderia até ser excluído sem fazer diferença na mensagem do texto: o EXCEL omitiu dados, a sociedade europeia que se baseou neles está pedindo que desconsiderem essa parte de suas diretrizes até tudo se  esclarecer, a sociedade brasileira endossa e… , lamento, mas isso impacta na saúde dos leitores, sim. Lúcia Helena

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Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.