O que é, o que é que muita gente tem e pouca gente sabe? Hanseníase
Lúcia Helena
23/01/2020 04h00
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Talvez sejam notadas apenas umas manchinhas esbranquiçadas pelo corpo que alguns, por puro equívoco, até confundem com uma dessas micoses que a gente pega na praia. Às vezes, porém, essas manchas têm outra cor, são rosadas. Ou nada disso: aparecem pontos avermelhados, um aqui, outro ali. Não existe monotonia alguma quando se trata da infecção causada pela bactéria Mycobacterium leprae, tipinho que tem duas predileções na vida: pele e nervos.
As manchas que ela provoca podem ainda ficar infiltradas e se elevar feito placas. Ou não. Podem dar origem a caroços. Ou não. O rosto das pessoas contaminadas de repente se arredonda, ligeiramente inchado — mas nem sempre fica assim na cara. Quem sabe só as orelhas inchem — ou nem elas. Os fios das sobrancelhas caem, apesar de que isso não acontece com todo mundo que, por acaso, desenvolveu a doença. Aliás, tem esta: a bactéria não tem muita dificuldade para passar de um ser humano a outro, mas só vai aprontar em uma pessoa em cada dez. Os outros 90%? Eles se safam, como se nunca tivessem encontrado uma Mycobacterium leprae pela frente.
Com frequência, nos 10% que adoecem, surgem áreas extremamente ressecadas na pele. Mais ásperas, elas descamam. E, nelas também, os pelos desaparecem. Tem gente que vive com a sensação de nariz entupido, chegando a cogitar rinite quando a bactéria se instala nas mucosas nasais. E tem quem viva com os olhos ardendo, procurando em vão o alívio em um colírio quando ela inventa de importunar a córnea. Porque tudo isso, fique você sabendo, pode ser sintoma da hanseníase, a lepra descrita em tempos bíblicos e terrivelmente estigmatizada desde então.
Deixa eu cortar logo a angústia: tem cura. Mas o estrago que faz até ser diagnosticada e tratada não tem volta. Daí ser tão importante não marcar bobeira. Afinal, a hanseníase está aqui entre nós — e como está! O Brasil é o segundo país do planeta com a maior prevalência da doença, perdendo somente para a Índia. São perto de 30 mil novos casos por ano.
Apesar de a infecção se manifestar de um jeito tão variado, fique ligado porque há uma pista comum entre todos os casos de hanseníase: "Os nervos periféricos se tornam cada vez mais comprometidos. Primeiro, a pessoa sente uma dormência ou um leve formigamento na área das manchas. Logo, vai diminuindo sua sensibilidade bem ali ao calor, ao frio, à dor. Até que ela deixa de perceber qualquer sensação táctil na região", ensina a médica Sandra Maria Barbosa Durães, que coordena a Campanha Nacional de Hanseníase da Sociedade Brasileira de Dermatologia. E estamos em pleno mês de alertar a população, o Janeiro Roxo.
O problema é este: os nervos sempre levam a pior
Existem casos, bem mais raros — uns 5% de todos eles — em que a criatura com hanseníase nem sequer tem nada na pele. Nenhum sinal de caroço, placa, nem mancha de qualquer cor. Há apenas a uma impressão esquisita, como se uma área dos pés ou das mãos tivesse tomado anestesia local. "Aí o diagnóstico é mais complicado", explica Sandra Durães. "O médico precisa afastar a hipótese de outra doença, como um diabetes, estar afetando os nervos dessa maneira, provocando a insensibilidade."
E é justamente por não sentir nada que a pessoa com hanseníase pode se dar mal. "Ela encosta a mão em uma panela quente e não sente a queimadura. Faz bolhas nos pés e segue andando com o machucado", descreve a dermatologista. Cada ferimento serve de porta de entrada para outras bactérias, estas, sim, capazes de causar feridas purulentas, destruir tecidos e afetar os ossos a ponto de provocar deformidades.
Ou seja, a imagem que todos têm da hanseníase — a do paciente com feridas e deformado — vem das outras bactérias que se aproveitam da insensibilidade provocada pela doença em si. Hoje existem remédios que acabam com a Mycobacterium leprae. Mas a sensibilidade, maior ou menor, fica no mesmo ponto em que estava quando a pessoa começou a se tratar.
Como se pega
A rigor, basta respirar pertinho para a doença passar de uma pessoa para outra, assim, num sopro de ar. Mas, apesar de quase tão antiga quanto a humanidade, a hanseníase atravessa os tempos guardando mistérios — e o lugar onde os guarda é nos genes. "Por que alguns desenvolvem a doença e outros não? Provavelmente por uma predisposição genética", informa Sandra Durães, que é fascinada pelo tema desde os tempos de residência, mergulhando em suas incertezas tanto no mestrado quanto no doutorado que fez na Universidade Federal Fluminense, em Niterói, onde é professora. "Já vi caso de uma família em que o pai e os filhos tinham a infecção e a mãe, apesar de conviver com eles todos os dias, não pegou nada", conta. Ou seja, ela devia ter uma resistência natural à doença.
Uma dúvida: já que é tão frequente no país, será que, se alguém infectado estiver em um avião onde todo mundo passa horas respirando o mesmo ar, ou se entrar em um elevador lotado, outra pessoa não sairia dali doente? "É difícil", garante a médica. "Para começo de conversa, não se pega assim em um contato isolado. É preciso conviver com quem está infectado e ser exposto algumas vezes à bactéria", afirma. Portanto, é feito aquela história de água mole em pedra dura…
Eis por que os casos se multiplicam nos bolsões de pobreza que existem em metrópoles brasileiras e no interior do país, quando famílias dormem confinadas em um mesmo ambiente minúsculo e mal ventilado, por exemplo. Não se trata de uma doença negligenciada, como diziam — aliás, nem poderíamos falar desse jeito, quando o SUS, justiça se faça, dá toda a atenção e oferece tratamento eficaz para curar a hanseníase. Na verdade, é uma doença que em geral acomete pessoas negligenciadas — o que é outra história.
Não que não existam exceções. "Já atendi médicos, engenheiros, pessoas de ótimo padrão econômico que tinham sido contaminadas." Possivelmente, pessoas menos, bem menos naturalmente resistentes. Pode acontecer… Só precisa ficar claro de uma vez por todas: é pela respiração que se pega, bem entendido? Nada a ver com falta de higiene. Muito menos é preciso separar copos, talheres… Seria uma ideia infame e sem o menor cabimento.
Como é feito o diagnóstico
"Ele é clínico, isto é, um médico capacitado pode flagrar a hanseníase ao fazer um bom exame durante a consulta e indagar sobre o dia a dia do paciente — se ele convive com uma família muito numerosa dentro de um ambiente pequeno, por exemplo", diz a professora Sandra.
O que pode dificultar naqueles casos não tão óbvios: a bactéria demora o incrível tempo de três a sete anos, em média, para se manifestar. "E existem registros de períodos de incubação bem maiores, como casos de soldados americanos que lutaram no Vietnã e que só tiveram hanseníase, provavelmente contraída por lá, quase vinte anos depois", conta a dermatologista. O médico pode pedir exames, se sentir um pingo de dúvida. Um deles seria a biópsia da pele ou dos nervos. Outro seria uma baciloscopia, que faz uma contagem das bactérias. E, aí, mais para orientar o tratamento.
Dois grupos de pacientes, duas formas de tratar
O tratamento é a poliquimioterapia. Não se assuste com o nome: é apenas a combinação certeira de antibióticos muito eficazes, conforme a Organização Mundial de Saúde recomenda desde os anos 1980.
Quando os exames acusam que existe uma baixa carga de bactérias na circulação porque o organismo é mais resistente ou se há no máximo cinco lesões na pele porque o diagnóstico foi precoce, o tratamento lança mão de dois antibióticos. Ao longo de seis meses, é preciso visitar o posto de saúde para, a cada trinta dias, receber uma dose supervisionada lá mesmo. O restante da medicação é administrado em casa até o retorno.
Já quando o paciente não resistiu tanto à infecção, o diagnóstico foi tardio e há um bom número de nervos atingidos, a estratégia de combate se intensifica. "Então, o tratamento vai durar um ano", explica Sandra Durães. Em vez de dois, serão três antibióticos, no mesmo esquema: visitas mensais ao posto para aplicação supervisionada e o restante levado para ser usado em domicílio.
E quem convive com alguém com hanseníase?
Importante dizer que pacientes com baixa carga do Mycobacterium leprae ou poucas lesões dificilmente transmitem a doença. Mas, ainda que fosse diferente e que o problema estivesse avançado, sempre que o tratamento é iniciado o risco despenca logo após a primeiríssima dose de antibióticos.
"É fundamental, porém, que todas as pessoas próximas passem por consulta, para que os médicos procurem eventuais lesões", avisa Sandra Durães. A cautela não se deve apenas à proximidade física. Lembre-se que existe a questão genética: se alguém desenvolveu a doença é porque tem genes que o deixam mais vulnerável e provavelmente seus parentes carregam a mesma herança.
Quando nada é encontrado, recomenda-se então que os familiares ou os que vivem na casa tomem a vacina BCG, mesmo que ela já tenha sido aplicada na infância. É aquela contra a tuberculose. Explico: a Mycobacterium leprae é uma espécie de prima da Mycobacterium tuberculosis. "A vacina da tuberculose não protege 100% contra a hanseníase, mas ao ensinar o sistema imune a reconhecer traços dessa família bacteriana, por assim dizer, confere maior resistência e, se a pessoa adoecer, as manifestações serão mais brandas", justifica Sandra Durães.
Em tempo: para evitar a tuberculose, uma única dose da BCG é suficiente. Já para afastar a hanseníase, a segunda dose parece ser fundamental. Bom eu explicar isso para você entender por que existe gente que recebeu o imunizante quando era pequena e apresentou a hanseníase mesmo assim.
E quem teve a doença?
No caso de quem manifestou a hanseníase, assim como na gripe ou no resfriado, o fato de ter tido a doença não significa que estará livre dela para sempre. "Até porque, se a teve, é sinal de que seu organismo é vulnerável a essa bactéria. E, se continuar vivendo em condições inadequadas, embora ter de novo a infecção seja raro, não é impossível", avisa a professora Sandra.
Mas, sim, o tratamento cura. Resta aos profissionais de saúde, já que a sensibilidade perdida não volta, orientar o paciente para que ele evite machucados, queimaduras e outros perrengues que, se invadidos por agentes nocivos, serão capazes de associar a hanseníase com a imagem que tinha no passado. O único mal que, infelizmente, permanece no presente é o preconceito —e, aí, só a informação correta pode remediar.
Sobre o autor
Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.
Sobre o blog
Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.