O mundo está em pé de guerra e o sistema imunitário entra nela para vencer
Lúcia Helena
26/03/2020 04h00
iStock. Na imagem, um linfócito B, que aparece em azul, lança anticorpos (em azul claro, com formato de "Y") nos vírus, em laranja.
Se você acha que sua timeline virou um pé de guerra com a covid-19, ah, meu amigo, você ainda não viu nada. A grande batalha não acontece diante dos seus olhos, mas bem dentro de você. E, perto dela, os conflitos a que assistimos estupefatos em jornais nacionais parecem até bate-boca de vizinhas. Porque vou lhe dizer: se um coronavírus se intrometer na sua vida pra valer, ou melhor, precisamente se ele se meter nas células de seu aparelho respiratório, não terá conversa. Irão pra cima dele. Com tudo.
Seu sistema imunitário solta os cachorros e não para para pensar se terá trabalho ou energia amanhã ou depois. Enfrenta primeiro o presente, não economiza seus recursos, faz o que precisa ser feito, não desvia do seu dever. Muito menos recebe qualquer invasor como se fosse um invasorzinho. Não brinca em serviço, isto é, não brinca com o perigo. Não é bobo nem nada para diminuir qualquer ameaça. Segue adiante, etapa por etapa da estratégia necessária para vencer o inimigo, firme em seu propósito maior, que é nos defender de verdade. Tem literalmente memória do passado — sem a qual não há futuro. E nem venha tentar comprar outras brigas comigo, nas quais não tenho aqui o menor interesse: estou falando de pura biologia humana, compreensível para quem gosta de ciência.
Nos dias de hoje, o inimigo público número 1 é o novo coronavírus, que ataca à direita e à esquerda, de Norte a Sul, enquanto a gente perde um tempo precioso em outros confrontos. Ele fica à espreita por dias no ambiente até encontrar alguém dando bobeira. Daí, com uma tremenda afinidade por células da mucosa do nariz, da garganta, da traqueia e dos brônquios, em um zás-tras ele entra. Entra mesmo — ele se enfia dentro das células, como todo vírus aliás, jamais ficando à solta pelo corpo. E, para as tropas de glóbulos brancos em nosso sangue, encarregadas da nossa defesa, esse detalhe faz uma baita diferença.
Não dá para perder tempo nessa corrida. É o exército imunológico de um lado — que no caso nunca viu esse vírus pela frente e precisa de um tempo para se organizar — e o causador da pandemia de outro, escravizando as células que invade para fazer suas réplicas e matando-as logo em seguida. O que na prática gera lesões, áreas de necrose, acúmulo de líquido nos pulmões…
"Imagine que esse campo de batalha é uma cidade, com ruas, prédios, pessoas", convida o reumatologista Luís Eduardo Andrade, do Fleury Medicina e Saúde. "No enfrentamento entre dois exércitos, o nosso e o dos vírus, sobra destruição para todos os lados. Parte do que a gente sofre é originada pela própria resposta do organismo em um primeiro momento, quando o sistema imunitário vem com tudo como quem diz 'sai da frente!'."
Com pós-doutorado em imunologia e biologia molecular no The Scripps Research Institute, nos Estados Unidos, e também professor da Universidade Federal de São Paulo, Luís Andrade é dono de uma didática admirável. Confie: não poderia haver pessoa melhor para eu conversar por um longo tempo e entender mais sobre nossa atual batalha.
Nosso sistema imunitário
Quando pensamos em organismo, embora um sistema sempre dependa do outro, parece que cada função tem o seu canto, com os órgãos trabalhando na deles. O cérebro conversa com os nervos. O estômago atua em parceria com o intestino. Rins escoam sua produção na bexiga… Todos, de certa maneira, segregados, cuidando de seus próprios afazeres. "Mas o sistema imunitário, não!", diz Luís Eduardo Andrade. "Ele permeia todos os órgãos e todos os tecidos, da cabeça aos pés. E, se suas células notam algo estranho, logo avisam as demais espalhadas pelo corpo, como se fossem wireless", explica, fazendo outra comparação.
Até porque essa é uma de suas maiores funções: fazer uma constante vigilância. E claro, se preciso, partir para o ataque. Em princípio — em um organismo saudável, que não ataca a si próprio como nas doenças auto-imunes —, nossas defesas são programadas para ter tolerância zero com estranhos. Como? "As células imunitárias possuem uma série de receptores em sua superfície que percebem sequências de aminoácidos ou de açúcares, que nós chamamos de padrões moleculares, as quais não existem no corpo humano", responde o doutor.
Desse modo, detectado algo diferente, acende-se a luz amarela. Só que, no caso de qualquer vírus, é um tantinho mais complicado. Lembre-se: ele sempre está escondido dentro de uma célula nossa, com os nossos padrões moleculares. Mas, por sorte, o nosso exército de defesa tem um sistema de segurança. E duas estratégias iniciais para nos manter a salvos.
A imunidade inata
A primeira das estratégias é atacar o estranho imediatamente, sem perder um segundo sequer para descobrir se é vírus, bactéria, protozoário ou o que for. Os vasos se tornam mais permeáveis para que os glóbulos brancos de defesa possam sair, aproximando-se de células suspeitas de terem sido invadidas, por exemplo.
Sem titubear, atacam qualquer um. Quem entra no seu corpo sem ser convidado, leva a dele. "Nesse momento, não existe uma tática que seria melhor para vencer um tipo de invasor e uma tática para derrotar outro. É o mesmo bombardeio para todos", explica o médico. Mas veja que interessante: ao mesmo tempo, outras células imunitárias estão colhendo informações, destrinchando as moléculas do usurpador e levando seus dados para aquelas que, mais tarde, se for necessário, entrarão em cena usando armas bem específicas para liquidar esse alvo.
Gás paralisante
Não, não é exatamente um gás, mas essa é uma boa analogia para você entender o que faz o interferon do tipo 1, substância que surge a partir de uma reação em cadeia, quando as células infectadas por vírus fazem soar um alarme pedindo socorro, por assim dizer. Lembre-se: um coronavírus pode estar lá dentro e, daí, como o sistema imunitário poderia saber, não é mesmo? Bem, ele dá os seus pulinhos. Um deles é justamente esse: as próprias células têm receptores capazes de reconhecer ácidos do DNA ou, no caso do corona, do RNA de um vírus. E esses receptores disparam o alarme que culmina na produção de interferon do tipo 1.
Essa molécula logo alcança outras células, nas quais os vírus ainda não se replicaram, e tenta impedir que isso aconteça, deixando-os sem ação por um tempo. Pode dar certo. Mas pode não ser suficiente também…
Uma célula que não perdoa
É chamada de NK pelos íntimos, de natural killer, célula assassina. "Com ela, não tem choro", diz Luís Andrade."Enquanto o interferon tipo 1 tenta salvar as células que ainda não foram dominadas pelo vírus evitando a expansão da infecção, a NK foca naquelas que escondem algo estranho. Interpreta que estão corrompidas e que não têm mais salvação. Sua sentença é a pena de morte."
Antes, agem como um policial pedindo documento a todas as células do seu corpo. O documento em questão seriam moléculas conhecidas pela sigla HLA, que ficam na superfície celular exibindo tudo o que está sendo fabricado em seu interior. É como se a HLA fosse uma vitrine— ora, se a célula estiver produzindo algo que não seja exatamente dela… Fim.
"O curioso é que os vírus, como estratégia de auto-defesa, muitas vezes inibem essa HLA para não deixarem pista de sua presença. Mas isso não dá certo com as células assassinas. Se elas querem examinar a HLA , matam sem dó a célula que não mostra na hora essa espécie de atestado", explica o doutor.
E se nada disso resolve… Ora, fura-se o inimigo!
Com a imunidade inata é assim: ou resolve de vez no primeiro embate, logo que o inimigo entra e sem dar tempo para uma doença se instalar, ou deserta. E é nesse momento que começa a segunda batalha, a mais decisiva de todas, que seria a da imunidade adaptativa.
Ela conta com outros soldados, outras armas. E, entre os convocados para essa nova etapa da guerra, estão as células citotóxicas. Elas chegam bem perto das células infectadas pelo vírus e lançam uma substância chamada perforina. O nome diz muita coisa — a perforina faz inúmeros furos na membrana da célula doente, até ela não resistir e morrer.
Mísseis teleguiados
Sem dúvida, porém, a arma mais potente nas guerras travadas pelo sistema imunitário são os anticorpos. Produzidos por glóbulos brancos do sangue chamados linfócitos B, eles viajam por todos os tecidos do seu corpo, sem fazer mal a ninguém. Só atacam aquela região molecular para a qual foram feitos. Extremamente específicos, os anticorpos que as pessoas que tiveram contato com o novo coronavírus já produziram irão destruí-lo depressa, se ele se atrever a entrar no organismo uma segunda vez. Mas esses mesmos anticorpos passarão reto pelo vírus da gripe, do resfriado, do herpes, da dengue… Cada um deles tem um anticorpo para chamar de seu.
Só há um detalhe, que seria o de sempre: o vírus está em uma célula, multiplicando-se lá dentro. "E o anticorpo não consegue entrar ali", avisa Luís Andrade. O que acontece então: com seu formato de "Y", o anticorpo aguarda e se encaixa naqueles vírus que mal acabaram de sair da célula infectada, quando ela explode de tão cheia, depois de ter feito cópias e mais cópias do seu invasor. Esse encaixe é bem no ponto de serviria de chave para a réplica entrar em novas vítimas. Diz-se então que o inimigo fica neutralizado.
Vírus bem temperados
Os anticorpos têm outra função interessante: abrem, por assim dizer, o apetite de macrófagos e neutrófilos, células que literalmente devoram intrusos. "Só que elas não costumam ver muita graça nos vírus. Isso só muda quando eles têm anticorpos em sua superfície", conta Luís Andrade. Aí, é como se os anticorpos fossem pitadas de sal. Os vírus se tornam petiscos.
A saída seria testar anticorpos para o coronavírus?
Luís Eduardo Andrade me conta que, durante muito tempo, especulou-se como as nossas defesas produziriam anticorpos assim, sob medida para cada vírus, por exemplo. "E, no final, o processo se revelou de uma simplicidade estonteante", diz. "'É como se os linfócitos B possuíssem por natureza mais de 50 peças de Lego, que montam e desmontam construindo vários anticorpos. E, diante de um novíssimo vírus, vão experimentando todos até um deles se encaixar onde querem." Enfim, como se tivessem um molho de chaves e testassem todas.
O mais fascinante, porém, é que os primeiros anticorpos produzidos pelos linfócitos B podem nem se encaixar direito no coronavírus ou em outro antígeno qualquer — ah, sim, antígeno é o nome que os imunologistas dão para estranhos de toda espécie. Mas, com o tempo, é um processo de seleção natural: dão filhotes, por assim dizer, os linfócitos B que conseguem produzir anticorpos que se ligam com perfeição no adversário.
Esse anticorpo ficará guardado na memória imunológica. "O sistema imunitário é comparável ao nervoso em um sentido: ele aprende com o ambiente e ele tem memória", nota Luís Andrade. Isso equivale a afirmar que existem anticorpos testados e aprovados em stand-by, à espera. Afinal, vai que por azar o organismo seja infectado uma segunda vez pelo mesmo tipinho…
Por isso mesmo, como a primeira infecção deixa uma lembrança, uma alternativa futura para diminuir quarentenas é testar não o vírus, para flagrar sua presença naquele instante, mas os anticorpos que ficaram depois de uma guerra travada, na qual ele saiu perdedor. A pessoa com anticorpos está protegida e pode sair por aí. Na dúvida, ficamos em casa. É o certo, enquanto essa solução não chega, porque os testes de anticorpos para o coronavírus ainda não têm aval de eficácia. Mas esse dia chegará.
Questão de tempo
Do mesmo modo, um dia será desenvolvida a vacina — os otimistas falam que ela surgirá no prazo de um ano. Vacinas são um dos maiores bens que a humanidade conquistou. Simplesmente porque mudam a cronologia de uma infecção.
Vejamos o caso da covid-19. "Em uma infecção por vírus, o pico de produção de interferon-1, capaz de paralisá-los, acontece no segundo dia", informa Luís Andrade. "Já as células assassinas começam a chegar perto no final do primeiro dia de infecção e alcançam seu pico no quarto dia. As células envolvidas com a imunidade adaptativa ficam colhendo dados desde o começo para lançarem anticorpos específicos. Mas, se é um vírus que o organismo nunca viu antes, o tal encaixe perfeito só acontece entre o oitavo e o nono dia. E o pico de produção ocorre entre o nono e o décimo dia." Moral: o exército do vírus avança dez dias à nossa frente, ganhando território no corpo, matando suas células, deixando destruição por onde passa.
Pergunto: e quando existe uma vacina para determinada virose? "Aí, em cerca de 14 horas chegam tropas numerosas de anticorpos", compara o médico do Fleury. Para o coronavírus, temos de aguardar. Já para a gripe, estamos em plena campanha nacional de imunização. Apoie.
Apoie para acelerar a resposta das defesas e por mais este motivo: já estamos esgotados de rachas. Deixemos que pelo menos o sistema imunitário tenha paz para concentrar seus esforços em uma das mais duras guerras que o mundo já enfrentou. E vamos confiar em sua fantástica eficiência na maioria dos casos de infecção pelo coranavírus, para, com a nossa imunidade de prontidão, não levarmos esse estranho para perto de quem a gente ama e que, por idade ou outro fator, não têm as defesas tão ágeis.
Sobre o autor
Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.
Sobre o blog
Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.