Coronavírus e a saúde do seu coração: o que se sabe e o que falta descobrir
Lúcia Helena
02/04/2020 04h00
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Em tempos de coronavírus, o coração é um sofredor. Sabidamente os portadores de doenças cardiovasculares figuram no grupo de maior risco. Significa que eles podem pegar o vírus como qualquer um, sem maior nem menor probabilidade. Mas, se dá o azar de isso acontecer, a ameaça do quadro infeccioso se complicar parece se agigantar.
No recente artigo publicado na revista científica The Lancet, que analisou quais outras doenças os pacientes mais graves de covid-19 tinham, ficou claro que a pressão alta merece respeito. O texto cita um estudo com 1.099 pessoas infectadas pelo novo coronavírus — entre elas, 173 ficaram bem mal e por sua vez, nesse grupo mais desafiador, 23% eram hipertensos. Em outro trabalho com 140 indivíduos que precisaram ser internados, 30% apresentavam pressão nas alturas. Mera coincidência, será?
"NInguém sabe dizer", reconhece Pedro Silvio Farsky, cardiologista do Hospital Israelita Albert Einstein e do Instituto Dante Pazzanese, ambos em São Paulo. "Será que a doença se tornou mais grave porque eram hipertensos ou simplesmente porque eram mais velhos, sendo que a hipertensão é mais comum em pessoas de idade?". É um bom questionamento.
O que coloca lenha na fogueira, porém, é a porta de entrada do novo coronavírus em nossas células. O miserável do vírus Sars-Cov-2 se aproveita de uma enzima que tem tudo a ver com a regulação da pressão arterial — o nome dela é enzima conversora de angiotensina-2, a popular ECA-2. No final das contas, se essa angiotensina aumenta, como o próprio nome indica, a tensão nos vasos se eleva. Logo, a pressão sobe.
Alguns medicamentos para tratar os hipertensos tentam impedir esse processo. Por exemplo, aqueles que inibem a molécula, conhecidos pela sigla iECA. E outros — estes apontados pela sigla BRA — que bloqueiam os receptores onde ela se encaixaria. Acontece que, no caso de quem está com a covid-19, eles poderiam, mexendo nesse vespeiro, facilitar a replicação do vírus — essa, ao menos, foi uma teoria que circulou por aí, assustando usuários de medicações para controlar a pressão. Mas calma, essa história ainda não está bem contada.
"Não dá para dizermos que os remédios pioram a situação. Até porque, entre os chineses hipertensos estudados, só três ou quatro em cada dez faziam uso de qualquer medicamento para pressão alta", explica o doutor Pedro Farsky. Ou seja, sem engolir nenhum comprimido para a pressão, a maioria dos hipertensos com quadros graves de covid-19 não poderia acusar qualquer remédio de entornar o caldo de vez, já que não fazia o tratamento. O cardiologista conta ainda que os dados existentes especulando que essas medicações facilitariam a entrada do vírus não são de trabalhos com seres humanos.
Por isso — atenção! —, o consenso tanto dos europeus quanto dos americanos, segundo o doutor Pedro Farsky, é que ninguém com hipertensão deve abandonar a sua medicação. "O prejuízo seria muito maior, especialmente para aqueles que já apresentaram problemas no passado, como um infarto", assegura. Não dá para ninguém correr o risco de infartar ou ter uma crise hipertensiva, ainda mais nesse momento. Quem tem pressão alta precisa fechar os ouvidos — ou só abri-los para o seu cardiologista — e continuar se medicando.
Outro possível elo entre o novo coronavírus e o coração seria uma perigosa inflamação do músculo cardíaco — a miocardite, que andou sendo observada em pacientes mais novos com a virose. Corrijo: supostamente observada. Pois é, de novo muita calma antes de sair espalhando a informação que, até o momento, é mais uma incógnita.
As aparências podem enganar. Pedro Farsky explica que, em pacientes com quadros severos da covid-19, ele e seus colegas notam uma subida nas taxas de troponinas em circulação. Essas moléculas surgem no sangue quando o coração se machuca — quero dizer, quando sai injuriado ao pé da letra. "Mas, por si só, sem o exame clínico e outros sintomas, o aumento das troponinas não fecha o diagnóstico de que o coração esteja inflamado, então essa é mais uma notícia precipitada", diz o médico.
Ok, faz sentido isso. Mas também não quer dizer que, nesse caso, o coração não esteja sofrendo com a infecção. Aliás, se sofrer é o verbo, pode até ser de um infarto."Sim", diz Pedro Farsky, "'é possível que as troponinas aumentem porque a doença provocada pelo coronavírus levaria à ruptura de placas que estavam depositadas nos vasos."
Despedaçada, uma placa em tese poderia correr pelo sangue até obstruir uma coronária no peito. Daí o infarto. E por que as placas nas artérias do paciente com covid-19 se comportariam desse jeito? "Boa pergunta. Possivelmente pela grande atividade inflamatória desencadeada por esse coronavírus. Alguns autores descrevem o fenômeno desencadeado pelo vírus como uma tempestade de citocinas, que são moléculas capazes de provocar inflamações no organismo", explica o cardiologista. "'É uma quantidade tão grande e despejada ao mesmo tempo que o organismo pode até entrar em choque, múltiplos órgãos deixam de funcionar a contento ou, como já disse, esse estado é capaz de romper placas nos vasos."
Existe ainda outra possível culpada por fazer o coração apanhar: a hipóxia, isto é, a falta de oxigenação adequada dos tecidos da cabeça aos pés. Ela acontece porque os pulmões, tomados de inflamação, ficam sem fôlego. Preenchidos de líquido, seus alvéolos já não realizam as trocas gasosas direito. O coração então acelera, faz o que pode para contrabalancear a falta de oferta de oxigênio até que fica perigosamente descompensado. E, no caso, voltamos à estaca zero: a idade mais avançada conta.
"Pessoas jovens têm mais do que chamamos reserva vital. Nelas, se o vírus compromete temporariamente 70% dos seus pulmões, os 30% restantes tendem a dar conta do serviço por um período. O mesmo já não costuma acontecer com indivíduos mais velhos. Para eles, os 30% restantes podem não ser suficientes", informa. Daí, o coração — eterno parceiro de trabalho dos pulmões — também pena. Aliás, como ele não sofrer diante disso tudo, não é mesmo?
Sobre o autor
Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.
Sobre o blog
Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.