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A medicina mostra: espiritualidade é essencial para enfrentar o coronavírus

Lúcia Helena

14/04/2020 04h00

Getty Images

Não dá para pingar umas gotas de gratidão na língua, nem injetar o perdão na veia. Contra o rancor não há vacina, nem há soro que sirva de antídoto ao ressentimento. E, no entanto, apesar de não estar na farmácia, essa seria uma prescrição médica muito efetiva para sairmos mais fortes e com saúde do período desafiador que estamos vivendo.  Acredite piamente: o resultado desse "tratamento" é testado e aprovado pela melhor ciência.

"Realmente, não há comprimido de solidariedade e seguir essa receita nem sempre é fácil. Mas também não há dúvida de que o desequilíbrio emocional provocado por sentimentos como a raiva está altamente associado à pressão alta, gera arritmias no coração, aumenta a formação de coágulos perigosos no sangue… Enquanto aqueles sentimentos que nos ajudam a enfrentar a vida de maneira, digamos, mais positiva agem no sentido oposto. E esses sentimentos benéficos são mais presentes em quem cultiva a sua espiritualidade", nota o cardiologista Álvaro Avezum, médico do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, na capital paulista, e diretor da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo, a Socesp.

Preciso dizer: na lista dos nomes mais citados em periódicos científicos de peso constam os de pouco mais de 20  brasileiros, sendo um único deles na área da saúde.  Ele é Álvaro Avezum. Sem dúvida, atualmente o maior pesquisador da Cardiologia no país. Faço questão dos parênteses para que ninguém confunda o conhecimento científico sobre o impacto da espiritualidade no organismo com charlatanices, como pregar que devemos jogar a pandemia para o alto até Deus segurar sozinho o perrengue do coronavírus, sem um nadinha do nosso esforço. Há muita gente tirando proveito desse discurso com tremenda má fé. 

E aqui, aliás, nem é bem de Deus que estamos falando — quer dizer, pode ter a ver com Deus para uns, pode ser uma história diferente para outros. Isso porque o conceito de espiritualidade é muito mais amplo do que o de religiosidade. "Religião é um sistema de dogmas, crenças e rituais que pode fazer um enorme bem aos seus praticantes. Mas eu devo incluir no conceito de espiritualidade até mesmo pessoas agnósticas e ateus que buscam um significado maior e um propósito para a sua existência. Afinal, esse tipo de busca pode levar a uma religião, mas não necessariamente."

Hoje, estima-se, existem cerca de 1.000 cardiologistas investigando as repercussões da espiritualidade na saúde do peito, compreendendo-a exatamente desse jeito: como um enorme guarda-chuva que abriga fés diferentes e até mesmo os decrescentes em Deus, no Universo, em… — enfim,  há muitos nomes para uma força maior ou suprema —, mas que também se preocupam verdadeiramente em fazer uma boa diferença para todos. E essa atitude diante da vida reverbera em todo o organismo. Nem sei se, por ironia ou justiça da fisiologia, isso não seria uma espécie de lei do retorno.  "No que diz respeito ao coração, as evidências são muito claras, inegáveis", afirma Avezum.

Não sei se sabe, há um capítulo inteiro dedicado à espiritualidade e aos fatores psicossociais na Diretriz Brasileira de Prevenção Cardiovascular. Aliás, capítulo que foi coordenado pelo próprio Avezum,  consolidando os achados de mais de uma centena de estudos nacionais e internacionais sobre o tema. E, na opinião do cientista, esse é um conhecimento importante em tempos de covid-19 e isolamento social. Vamos lá…

Para desenrolar a linha do raciocínio, o básico 1: todos nós sabemos muito bem quais seriam os sentimentos mais edificantes. "Altruísmo, compaixão, solidariedade, compreensão… ", Avezum enumera exemplos. Mas, ateu ou religioso, ninguém é santo. Cultivamos na mesma medida mágoas, rancores, frustrações, egoísmo. 

"A pergunta que muitos se fazem é: o que a ciência tem a ver com isso?", admite Avezum, que logo emenda na resposta: "Ela tem tudo a ver, na medida em que temos certeza de que esses sentimentos interferem na maneira como alguém se relaciona, primeiro, consigo mesmo e, ainda, com todos os outros indivíduos. Durante muito tempo as religiões se ocuparam sozinhas desse tópico. Porém, a Medicina se debruça cada vez mais  sobre essas questões ao reconhecer que o modo como eu  encaro os desafios do dia a dia e como convivo com meus semelhantes ajuda a determinar o meu adoecimento. Isso vale para o câncer, por exemplo. Para a saúde cardiovascular, então, nem se fala."

Os trabalhos científicos, de acordo com Álvaro Avezum, lançam mão de questionários validados, com escalas capazes de medir a disposição de um paciente para vivenciar mais ou menos determinados sentimentos e estados de ânimo. E foi assim que se percebeu dois fatores de risco seríssimos tanto para o infarto quanto para o acidente vascular cerebral, o AVC. "Um deles é a depressão. Outro é o estresse,  provocado por relacionamentos familiares, pelo trabalho, por questões sociais e até mesmo financeiras."

Atenção, porque isso é muito sério: segundo Avezum, feitas as contas, estresse e depressão têm o mesmo peso como fator de risco quanto a hipertensão, o cigarro e a obesidade. Sem exagero. Mas acompanhe direito a seguinte lógica: os trabalhos afirmam que sofrem mais desses dois fatores aquelas pessoas que lidam com o seu cotidiano alimentando os tais sentimentos negativos. Faz total sentido. E, por sua vez, esses sentimentos nada bons — como já mencionei — são bem mais constantes em quem não desenvolve a sua espiritualidade. Portanto…

Não faltam dados apontando nessa direção. Um dos mais contundentes vem do Nurses' Health Study — que já é um clássico da Medicina,  acompanhando desde 1976 a saúde de mais de 280 mil enfermeiras americanas. E o quesito espiritualidade foi incluído nesse acompanhamento. Pois bem: "Quanto mais religiosas ou espiritualizadas,  maior a longevidade. Menos mortes por câncer, por infarto, por qualquer outra doença", resume Avezum.

Como em outros trabalhos nessa seara, o estudo das enfermeiras mostra que há menos tabagismo e consumo exagerado de álcool entre as mulheres mais espiritualizadas, entre outros hábitos pouco saudáveis.  Elas, ao contrário, se alimentam de maneira mais equilibrada e fazem mais atividade física do que aquelas que não cultivam a espiritualidade no dia a dia, por meio de rituais religiosos, meditação, leituras, o que for. 

Então será que seria esse o segredo, isto é, será que ter bons sentimentos, propósito, respeito pelo outro, quem sabe uma crença — o pacote completo das "coisas boas" — nos levaria a ter maior cuidado com o nosso corpo?  "Durante muito tempo se achou que fosse isso. Mas parece não ser tão simples assim. Se a gente ajustar os dados, comparando pessoas mais e menos espiritualizadas que se alimentam igualmente bem, e fazer esse tipo de comparação com todos os outros fatores,  como o colesterol e o nível de atividade física, veremos que a espiritualidade tem um impacto independente, ou seja, que ela prolonga a vida por si só."

Para Avezum, esse é um conhecimento precioso quando se enfrenta um inimigo comum. "O coronavírus escancara que somos vulneráveis. Que podemos adoecer e morrer", diz o médico. "E ainda impõe como única maneira de prevenção o isolamento social. Isso, sem dúvida, cria muito estresse. Mas também pode ser uma oportunidade fascinante. Podemos finalmente ter um tempo para refletir sobre qual seria o objetivo da nossa existência.  Sem contar que as soluções para a pandemia  vão exigir o melhor dos nossos sentimentos."

Nessa receita — leve a sério — é preciso aumentar a dose de perdão. De novo, os estudos mostram que poucas medidas aliviam mais o estresse do que perdoar. Apontam mais: "O perdão em um primeiro momento é uma decisão, não é emocional. Isto é, eu decido perdoar alguém, mesmo que ainda esteja sentindo um incômodo com a situação que me irritou ou magoou. É uma decisão racional e inteligente que só com o tempo — eu diria, com o aprendizado — vira sentimento pra valer", observa Avezum. 

Outra dose recomendada é a de sabedoria na convivência. Conhecer de perto as pessoas da própria família — falar assim é tão estranho e tão… comum. E reestabelecer, nem que seja virtualmente, o contato com quem realmente nos importa. "De novo, estamos nos baseando em estudos. E eles demonstram que raramente as pessoas têm arrependimentos fortes na vida profissional a ponto de abalar a saúde. Os grandes arrependimentos são por desentendimentos no círculo íntimo, falta de contato estreito com a família e os amigos, algo por aí.".

Mais uma pílula nessa prescrição: lembre-se que as coisas ruins fazem um barulho danado. No mundo moderno, elas vociferam principalmente nas redes sociais. "E a exposição cotidiana a elas nos abala fisicamente", diz Avezum. Claro que ele não recomenda alienação. Ao contrário: "Precisamos, nesse recolhimento, dar a chance para o nosso olhar se voltar para iniciativas construtivas, capazes de fazer uma real diferença para vencermos essa pandemia juntos."

Ou seja, o vírus será derrotado mais facilmente se, do nosso lado,  derrotarmos o que há de mais virulento dentro de nós. De todos os remédios listados, o nosso próprio veneno será o mais difícil de engolir.

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Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.