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Quem vive em cidades poluídas corre um risco maior de morrer de Covid-19

Lúcia Helena

24/04/2020 18h30

Crédito: iStock

É bem possível que o famigerado Sars-Cov-2 banque o skatista, reme até ganhar um impulso espetacular, faça aéreos fenomenais e só vá frear lá longe — a 1 ou 2 metros de distância apenas, que nada! —, na parte mais funda dos pulmões de alguém. O skate, no caso, seria uma partícula de poluente no ar. Ora, é uma especulação, mas que faz todo o sentido, a de que, em lugares muito poluídos, as pessoas poderiam pegar o maldito coronavírus com maior facilidade. Essa é uma história. A outra, porém, já muito mais certa, se torna praticamente uma nova verdade no ar: a poluição é um fator de risco importante para, no caso daqueles já infectados, o quadro de saúde se complicar de vez. E até matar.

Em um estudo publicado agorinha pelo Instituto de Geociências e Geografia da Martin-Luther University Halle-Wittenberg, na Alemanha, fica claro que nada menos do que oito em cada dez mortes por covid-19 na Itália, na França, na Espanha e na própria Alemanha ocorreram nas regiões com os piores índices de poluição atmosférica desses países. 

A análise foi realizada em 66 distritos administrativos e 78% dos óbitos foram registrados em apenas cinco deles, justamente aqueles que apresentavam na atmosfera os mais elevados níveis de dióxido de nitrogênio, o popular NO2, e que, de longa data, são conhecidos por condições geográficas que dificultam a dispersão dos poluentes. Madri, por exemplo, é cercada por montanhas. Segundo o trabalho, a exposição a essa substância por muito tempo seria um dos principais fatores contribuindo para a doença se transformar em mais um caso fatal.

O grande acusado: onde há fumaça, há dióxido de nitrogênio

Ligado a danos à saúde, especialmente a dos pulmões, o dióxido de carbono é, de fato, reconhecido pela ciência por ser um tremendo irritante. Mas, para piorar, ele nunca está sozinho. "Cá entre nós, não sei se é o NO2 que causaria a complicação nos casos de covid-19.  Isso porque ele é a tromba de um elefante que você não mede. Você enxerga apenas a tromba, mas nunca está vendo o resto", compara o médico Paulo Saldiva, professor da patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, um dos maiores especialistas nos efeitos dos poluentes em nosso organismo, para não dizer um dos maiores cientistas brasileiros, hoje à frente de autópsias das vítimas da covid-19 na capital paulista para entender os estragos que o coronavírus faz no corpo.

O professor me explica: "O NO2 é um marcador de combustão recente, ou seja, de que alguma coisa — desde gás, gasolina, biomassa … — está queimado agora, neste instante. E onde há essa fumaça, há partículas ultrafinas, monóxido de carbono e que tais".  Portanto, o dióxido de carbono é um marcador de queima e de suas emissões, um dedo-duro entregando que há poluentes por todo canto, porque ele próprio logo desaparece. Sob o efeito da luz solar, a substância se decompõe em monóxido de nitrogênio e ozônio.  Some. Mas o restante da sujeira fica. "Daí que, apesar de o estudo alemão bater na tecla apenas do NO2, eu não posso dizer se o malefício nas vítimas da covid-19 não seria associado a centenas de outras substâncias envolvidas nessas queimas". Pode ser…

Cidades grandes são mais poluídas ou simplesmente cheias de gente?

Vamos esclarecer que o estudo alemão mostra uma correlação — ela é muito forte, muito bem demonstrada, mas apenas uma correlação. Não se trata de causa e efeito. Logo, paira nesse ar poluído a dúvida: e se tudo não passar de coincidência? O questionamento, como sempre em ciência-raiz, é válido. Mas tudo leva a crer que há, sim, boa probabilidade de toda essa porcaria inalada fazer diferença na infecção pelo coronavírus.

"Veja, um pouco antes, neste mês, já tinha aparecido outro trabalho, na Harvard", diz. O professor Saldiva se refere a um estudo da professora italiana Francesca Dominici, a grande dama da bioestatística no mundo. Além de lecionar na universidade americana, ela é co-diretora da Harvard Data Science Iniciative. Ali, usa o big data para sugerir políticas de saúde, inclusive diante das mudanças climáticas. Pois bem, Francesca Dominici, como lembra o professor Saldiva, já tinha cantado a mesmíssima bola um pouco antes: a mortalidade por covid-19 é maior nas regiões mais poluídas.

Só que, um detalhe crucial,  a professora Dominici ajustou todas as demais co-variáveis — o que o trabalho alemão não fez, deixando margem à dúvida. Ou seja, apesar de ser mais um estudo que aponta correlações e não causa-e-efeito, a pesquisadora de Harvard levou em consideração a densidade populacional. "Na Europa, essa questão pode pesar menos, mas nos Estados Unidos…", nota o professor Saldiva. "Se você comparar a situação de Nova York e de Phoenix, no Arizona, verá que a proximidade das pessoas em Manhattan, o tipo de moradia, o transporte coletivo são muito diferentes."

De fato, enquanto os nova-iorquinos se aglomeram nos metrôs de sua ilha, o povo de Phoenix se desloca muito mais cada um no seu carro. Assim como na Califórnia, no Novo México, em outros estados americanos com índices de poluição bastante altos, mas onde as pessoas no dia a dia, até por características urbanas, não vivem tão grudadas. No estudo americano, pode se ver a curva da mortalidade e a de ocupação do espaço urbano nas regiões mais preocupantes em matéria de poluição. E assim dá para perceber que, quanto mais dióxido de nitrogênio havia, o aumento de mortes era mesmo exponencial, comparando-se locais em que as pessoas igualmente se aglomeravam mais ou que igualmente se aglomeravam menos. "Há um verdadeiro gatilho para mortes no terço mais alto da curva de poluição — aí mesmo tudo parece sair do controle e elas são mais frequentes", diz o professor Paulo Saldiva.

Voltando ao estudo alemão sobre os quatro países europeus, o professor comenta que, embora não tenha feito o mesmo ajuste da pesquisa de Harvard em termos de densidade populacional, nele é possível notar que outras regiões da França e da Alemanha que também reúnem bastante gente não viram tantas mortes por covid-19. E a diferença é são menos poluídas.  "Provavelmente, porque mais pessoas dirigem veículos com uma tecnologia avançada, que não emitem tantos gases, e porque a produção de energia é mais limpa nesses locais."

Dentro do corpo: por que a poluição agravaria a ameaça do coronavírus

Existem várias hipóteses para explicar a associação. "A primeira delas é óbvia: a poluição não faz bem. Ela reduz a imunidade e ainda inflama as vias aéreas, dois efeitos que podem dar um peteleco no coronavírus, fazendo-o avançar.  Isso pode ajudar a gente a entender por que alguns organismos lidam melhor com a infecção e outros não", fala o professor Saldiva. E ressalta que onde há NO2 existem as amaldiçoadas partículas ultrafinas. "Se o conoravírus estiver no ar e pegar carona em uma dessas partículas, ele ganhará muita velocidade competitiva para entrar no seu corpo. É como se ele andasse de skate". Foi do médico, aliás, que ouvi a comparação.

Não é só uma questão de velocidade. É mais grave do isso. Um gás poluente entra no seu corpo, faz o seu mal e sai. Você o inala e você o exala. Já é ruim à beça. Mas uma partícula ultrafina, por suas características, é ainda mais ardilosa do ponto da vista da Física. Isso porque, no ar que a gente inspira, ao passar pela traqueia ela perde velocidade na bifurcação para pulmão direito e pulmão esquerdo. E a tal energia cinética — de movimento — vai perdendo força até chegar a um dos mais profundos dos 350 milhões de alvéolos pulmonares. O fluxo de ar que a carrega vai diminuindo, diminuindo até ficar zero e ela se depositar. "É assim com o cigarro, que costuma criar mais lesões no fundo dos pulmões, justamente porque é ali que a fuligem das tragadas fica", conta o professor Saldiva.

Se essa especulação se confirmar, significará que, em seu "skate", o coronavírus nem pararia no nariz — iria  então direto para as profundezas pulmonares, sem dar tempo para as defesas lidarem com sua presença nas vias aéreas superiores — o que ao menos seria um fôlego, uma chance de reação ou de tratamento mais precoce. "Se assim for, a poluição aumentaria a capacidade de penetração do vírus", resume o médico. E já tem gente, também, estudando essa possibilidade.

Mas a de os poluentes agravarem os casos já existentes, isso é certo. Até pela inflamação constante que eles provocam. Aliás, se há algo que nenhum cientista nega é que problemas inflamatórios que já existiam antes da contaminação costumam entornar o caldo na infecção pelo coronavírus.

E não há lockdown que dê jeito, como o próprio trabalho feito na Alemanha frisa: afinal, a pior ação de um poluente é a cumulativa, com seus estragos feitos dia após dia respirando a fumaceira. Quer ter uma idéia? Paulo Saldiva confirma que viver em uma cidade como São Paulo equivaleria a fumar de dois a três cigarros diariamente em matéria de danos aos pulmões. "É como se todos os seus habitantes fossem fumantes leves", define.

Na prática, o simples respirar o ar de São Paulo provoca, com o tempo, o chamado enfizema pulmonar subclínico, aquele que não apresenta sintomas, mas que é importante o suficiente para ser visível em exames. Claro, quanto mais tempo respirando esse ar… Pessoas mais velhas que sempre viveram em cidades poluídas… Dá para entender? O coronavírus, no final das contas, encontra um pulmão inflamado e que já não funciona como uma maravilha. Meio caminho andando para um final trágico.

Preciso deixar claro: a poluição não tira o papel de outros fatores de risco.  Estamos diante de uma doença extremamente complexa. Tem gente pegando e morrendo de covid-19 nos ares do campo e na brisa do mar, em cidadezinhas que não vivem com o céu esfumaçado. Mas as pessoas que moram há tempos em grandes cidades, aquelas que reaprenderam a ver estrelas com o confinamento social e os carros na garagem,  são obrigadas a tragar mais esse perigo.

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Sobre o autor

Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.

Sobre o blog

Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.