Quarentena: até que ponto dá para adiar pré-natal e exames de diagnóstico?
Lúcia Helena
12/05/2020 04h00
Enquanto a covid-19 ocupa os noticiários e o pensamento, que ninguém se iluda: nada dá um tempo enquanto ficamos confinados. O câncer continua sendo um câncer, o infarto continua sendo um infarto, dores não somem por encanto e por aí afora. Enfim, os problemas seguem, as más surpresas também. E as boas junto, claro — bebês cheios de bochechas e esperança continuam chegando ao mundo.
Mas é fato: se uns esnobam lamentavelmente o isolamento tão necessário, outros ficam em casa como manda o figurino, só que morrem de medo de pisar em uma clínica ou em um hospital em qualquer situação. Essa paúra extrema é tão compreensível quanto perigosa.
Na Itália, isso ficou evidente: o número de paradas cardíacas dentro de casa aumentou, em média, 58% nos primeiros quarenta dias da pandemia por lá, comparando com o mesmo período do calendário no ano anterior. E os picos foram mais altos justamente nas cidades italianas em que o novo coronavírus fez o maior número de vítimas. Sinal de que as pessoas passaram mal e não procuraram ajuda ou, vá lá, não a encontraram.
Por aqui, seguimos na mesma direção. E ela não é boa. Um dos principais serviços de atendimento a problemas cardiovasculares do país, o InCor (Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP), revela que no mês de março a quantidade de pacientes que precisaram fazer angioplastia para desobstruir uma coronária despencou 50%.
Ora, vamos lá: o sangue de ninguém passa a fluir livremente pelo peito só porque estamos obedecendo a quarentena. Quem dera existisse esse prêmio por bom comportamento. Se menos pacientes fazem a angioplastia, isso é sinal de que tem gente sofrendo calada de angina. Talvez morrendo enquanto engole essa dor.
Muito se fala, então, sobre a importância do pronto-atendimento diante de qualquer mal-estar que nos deixe cabreiros. É uma ótima recomendação. Mas pensei: será que não existem casos em que seria possível fazer algo antes de passar mal pra valer? Será que não existiriam situações, além das cardiovasculares, em que o acompanhamento continuaria obrigatório para que tudo tenha final feliz, mesmo em tempos de covid-19?
Os dados da Abramed (Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica), porém, apontam a queda brusca de 40% nos serviços de diagnóstico e ambulatoriais. Ou seja, muitas pessoas esperando tudo passar para fazerem seus exames. Vai passar. Mas não será de hora para outra. E aí vem uma última pergunta: até que ponto dá para adiar? Escolhi três situações e fui conversar com especialistas.
Os exames do coração
"Vivemos um período de adaptação, lembra o ecocardiografista Marcos Valério Coimbra de Resende, membro da diretoria da Sociedade de Cardiologia do Estado de São Paulo e chefe do serviço de ecocardiografia do Hospital Samaritano. "No dia 30 de março, a própria Organização Mundial de Saúde recomendou que as pessoas só fizessem exames em emergências e, no intervalo de lá para cá, hospitais e centros de diagnóstico foram entendendo a situação completamente nova e criando fluxos para que pacientes com outros problemas não cruzassem com aqueles com suspeita de covid-19", diz ele.
Existem exames que ainda hoje são evitados ao máximo. Saindo da área da Cardiologia, uma endoscopia para investigar uma possível úlcera — embora ninguém vá negar a gravidade de uma úlcera — por enquanto só é realizada em casos críticos, quando há evidências de sangramento. Voltando ao coração, o mesmo vale para a ecocardiografia transesofágica, em que o equipamento de ultrassom é introduzido até o esôfago para, digamos, se aproximar do músculo cardíaco e obter mais detalhes.
Explico por que são evitados: todo exame invasivo oferece maior risco de transmissão do novo coronavírus tanto para o paciente quanto para equipe de saúde. Este é um ponto. Outro é que a ideia dominante hoje em dia é fazer o que precisa ser feito e dar no pé, sem precisar ficar algumas horas no leito de um hospital ou de uma clínica, que seja — algo mandatório nos dois exemplos que dei. Mas, atenção, isso não significa, nem de longe, que é para deixar de pedir ajuda.
No dia anterior ao da nossa conversa, o doutor Resende atendeu uma senhora de 80 anos, hipertensa e diabética. Estressada por cuidar do marido com Alzheimer, ela não teve um pingo de dúvida: correu para o hospital ao sentir uma dor no peito. "E fez muito bem", elogia o ecocardiografista. "Só que, em vez de encaminhá-la para o cateterismo que seria o exame padrão-ouro para afastar a possibilidade de uma obstrução na artéria, nós fizemos uma ecocardiografia submetendo o seu coração a estresse. Assim, não só evitamos o exame invasivo, como ficamos mais tranquilos porque não era nada tão grave", conta. A senhora voltou para casa ligeiro, medicada para diminuir a tensão.
O doutor Resende lembra que quase 30% da população brasileira acima de 40 anos têm pressão alta. "E tudo piora com a fase de pura ansiedade que estamos vivendo", reconhece. "Por sorte, muita gente tem o aparelho de aferir a pressão em casa, o que ajuda. Mas vale ir ao pronto-atendimento se a pessoa sente muita palpitação e falta de ar", avisa. "Não podemos ser negligentes. Muitas vezes é só nervosismo mesmo, por causa de todo o cenário, e um ansiolítico bem indicado resolve. Mas nem por isso podemos nos esquecer que a hipertensão está por trás de infartos e AVC. Ou seja, precisamos fazer exames e nunca menosprezar nada", reforça.
Sem contar que vários remédios, no caso de quem sabe que tem alguma doença cardiovascular como a própria hipertensão, precisam ser ajustados de tempos em tempos, com suas dosagens diminuídas ou aumentadas até obter o efeito desejado. "E o controle dessas condições é fundamental até mesmo por causa da covid-19", defende a cardiologista Paola Smanio, do Fleury Medicina e Saúde. "Sabemos que as doenças cardiovasculares aumentam o risco de a infecção evoluir para quadros mais graves. Não dá para abandonar o acompanhamento até por causa disso"
A médica chama ainda a atenção para o comportamento das pessoas na quarentena: "Muitas passaram a comer mais, consumindo quantidades maiores de sódio e de açúcares, sem falar em bebida alcoólica. E também estão deixando de fazer atividade física", observa. Em sua opinião, quando havia um maior controle médico, como antes da pandemia, aos menos aqueles cardiopatas que eram acompanhados olhavam para os resultados e sentiam o puxão de orelhas se algo saía do lugar, como uma taxa de colesterol mais alta. Só que agora…
"Aos poucos, esses pacientes voltam a fazer exames ou porque alguns laboratórios conseguem colhê-los em casa ou porque estabeleceram fluxos seguros, como marcação em intervalos de uma hora para evitar encontros em salas de espera", diz. "E o que notamos nessa nova etapa é um fenômeno parecido com o de um retorno de férias. Na maior parte das vezes, há um aumento da glicemia, do colesterol e até mesmo do ácido úrico em relação aos exames anteriores, tudo por causa da dieta diferente e do sedentarismo."
Fique claro, porém, que não são todos os indivíduos que acessam um laboratório para fazer acompanhamento de colesterol nessa altura e nem sempre há horário na agenda que prevê um número bem menor de pacientes por dia. Portanto, fazer esse ou aquele teste vai depender mais do que nunca da conversa com o cardiologista, nem que seja por meio do telemedicina. Ele é que pode decidir se determinado exame — como o holter, para acompanhar o coração ao longo de um dia inteiro — é necessário ou não. O que não deveria acontecer: esperar o mal-estar. Ou, pior, ignorá-lo.
A mamografia e o rastreamento do câncer
O exame das mamas serve de régua para muitos outros quando pensamos na detecção de um tumor maligno. "Há dois grupos de pacientes. Existe aquela mulher que procura a mamografia porque percebeu algo estranho, como um caroço no seio, uma alteração na pele, uma secreção no bico peito. Um sinal assim não pode ser ignorado até pandemia passar. Ela precisa fazer o exame o quanto antes", afirma Giselle Mello, especialista em mamografia e biópsias percutâneas, gerente-médica do Fleury Medicina e Saúde.
E como será que fica o segundo grupo, o de mulheres que não sentem nada de errado, mas que faziam o exame anualmente ou, que seja, a cada dois anos? "Também nos fazemos perguntas", admite a doutora Giselle. "Podemos esperar um pouco? Mas quanto seria esse pouco, uns seis meses? A resposta é um depende. E, mais uma vez, vale a palavra de ordem neste momento: bom senso", diz ela, que também atua no hospital público da Universidade Federal de São Paulo.
Segundo a médica, toda mulher deveria ver, primeiro, se os seus exames estavam em dia. "Uma coisa é esperar dois ou três meses se a mamografia foi feita há um ano. E outra é aguardar os mesmos dois ou três meses quando a repetição do exame já está atrasada há quase dois anos." Também contam os fatores de risco, avaliados junto com o médico, como o histórico familiar e a idade.
Para você se ter ideia, a mamografia flagra quatro casos de câncer, mais ou menos, em cada mil mulheres examinadas de rotina que, na maior parte das vezes, não notavam nada de errado. Ninguém sabe prever, quando a situação do coronavírus ficar mais sob controle, a quantidade de tumores malignos que irá emergir, se todas voltarem a fazer o seu rastreamento. E, pena, a lógica diz que muitos cânceres estarão em um estágio mais adiantado.
Volto a frisar a importância da troca de ideias com o médico e a noção de se a mamografia já estava muito atrasada ou não. O mesmo raciocínio vale para outros exames com o intuito de pegar um câncer bem no início — o da próstata para os rapazes, por exemplo. Bom notar que tanto clínicas particulares quanto hospitais públicos vêm tomando todos os cuidados, atendendo um único paciente por hora, exigindo de todos o uso de máscaras e higienizando equipamentos entre um exame e outro.
Pré-natal é inadiável
Ah, isso nem deveria entrar em discussão. Mas a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, a Febrasgo, está preocupada, sim: tem grávida pulando datas no calendário sagrado do pré-natal, isto é, postergando algumas das seis consultas — número mínimo recomendando no período de espera do bebê — e deixando de fazer o ultrassom no tempo certo.
"O pré-natal é fundamental para diminuir o risco de complicações para a mãe e para o filho", alerta o professor Olimpio Barbosa de Moraes Filho, da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade de Pernambuco e membro da diretoria da própria Febrasgo. No maternidade da universidade, ele infelizmente já vem reparando: "Chegam mulheres em risco maior por problemas que não tinham a mesma frequência antes da pandemia de covid-19". Peço exemplo e ouço: "Mães que ganharam muito peso no final da gestação, porque o novo coronavírus aterrissou entre nós quando estavam no último trismestre de gravidez. Elas podem ter desenvolvido diabetes, a pressão pode subir no parto, o bebê pode ter ficado grande demais. São situações completamente desnecessárias de risco no instante de dar à luz e que seriam contornadas com o pré-natal adequado."
Por outro lado, nenhuma futura mamãe deve ficar se lamentando se o obstetra não pedir um ultrassom por mês, como muitos costumavam fazer antes da maldita covid-19. Cá entre nós, nunca foi necessário tanto exame quando a gravidez vai bem, obrigada. "Obrigatoriamente a gestante precisa fazer duas ultrassonografias e só", explica o professor Olímpio de Moraes Filho. "Aquela feita no primeiro trimestre afasta a hipótese de a gestação ter algum problema grave, como ocorrer fora do útero, nas trompas. Ela também é importante para a gente confirmar a idade gestacional, porque às vezes não dá para confiar na data da última menstruação. Já o segundo ultrassom, no meio da gravidez, é o famoso morfológico, em que podemos ver se existe alguma malformação no bebê." Durante a pandemia, não há razão para fazer mais do que esses dois. Na contrapartida, não há justificativa para atrasar qualquer um deles.
Se tudo estiver bem, os demais exames de imagem seriam mimos à gravida com vontade de ver o filho dentro do ventre. Até ele surgir ao vivo e em cores nos seus braços, porém, não dá para escapar de qualquer consulta. Dúvidas e problemas frequentes como náuseas se resolvem por telemedicina. E lembre-se do óbvio, de por que a pontualidade nas marcações importa: a criança não quer nem saber de covid-19. Ela vem à luz deste mundo complicado passados nove meses, nos lembrando de toda a força da vida.
Sobre o autor
Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.
Sobre o blog
Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.