A cloroquina pode fazer o coração parar. Pior se você toma remédios comuns
Lúcia Helena
19/05/2020 04h00
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Temos uma dúvida e uma certeza. Por enquanto, ninguém pode afirmar que a cloroquina e o seu análogo, a hidroxicloroquina, consigam agir contra o novo coronavírus — esta, portanto, ainda é uma bela dúvida da ciência, que não encontrou até o momento qualquer evidência mais parruda dando garantia de resultado.
No entanto, existe certeza de sobra de que ambos os medicamentos — um deles, um pouco mais, e o outro, um pouco menos — podem tirar o coração do ritmo a ponto de fazê-lo parar de uma hora para outra. No mínimo, não parece lá muito aconselhável correr esse risco em casa, sem médico nem desfibrilador por perto para fazê-lo retomar os batimentos no tranco.
E, sim, é pura verdade o que dizem: cloroquina e hidroxicloroquina não são proibidas. Também é verdade: qualquer médico de posse do seu CRM pode receitá-las, se achar certo ou conveniente. Mas, no caso da covid-19, por não se tratar de uma indicação reconhecida desse tipo de medicação, você teria de assinar um termo de consentimento. E, na minha opinião, precisa entender as letras miúdas do que está topando fazer. Este é o ponto. E por isso fui ouvir dois dos maiores especialistas em arritmias do país.
A história de que esses remédios são usados há décadas tem funcionado feito água para ajudar a pessoa a engolir o comprimido com uma equivocada sensação de segurança. Se é por isso, então, cuspa — e pense duas vezes antes de metê-lo novamente na boca. Simplesmente não dá para comparar uma coisa com a outra. Não dá.
Professor da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e autor do capítulo sobre arritmias do Tratado de Cardiologia da Socesp (Ed. Manole), o cardiologista Martino Martinelli orientou o trabalho de seu colega Ricardo Alkmin Teixeira, ainda em 2013, no qual foram dadas doses diferentes tanto de cloroquina quanto de hidroxicloroquina a pacientes com lúpus eritematoso, doença terrível em que o próprio sistema imune ataca diversos órgãos e tecidos. E, na ocasião, ficou claro que o uso crônico desses medicamentos não causava mesmo maiores prejuízos ao coração.
Então, atenção, pacientes com lúpus, artrite reumatoide e até mesmo malária: embora cloroquina e hidroxicloroquina não sejam inócuas, em princípio o recado sobre o risco cardíaco não é para vocês. "'Só que não podemos comparar esses quadros com a situação da covid-19, em que a própria infecção pelo Sars-CoV-2 já coloca o coração sob ameaça em uma boa porcentagem de pacientes, provocando uma inflamação no músculo cardíaco, entre outros males", avisa o professor Martinelli. Daí, para uma arritmia, é um pulinho. Para a morte súbita, talvez outro.
"De fato, não podemos extrapolar o que acontece com o coração em um problema reumatológico, imaginando que a mesma reação vá acontecer em uma doença que nós, médicos, ainda não conhecemos direito e para a qual, até o presente, estamos apenas testando hipóteses de tratamento", afirma o cardiologista Guilherme Fenelon, que coordena o Centro de Arritmia do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
Até porque, nas doenças crônicas reumatológicas, não só o estado cardiovascular do paciente é acompanhado de perto ao longo do tratamento, como esses quadros, por mais sérios que sejam, tendem a se manter mais estáveis. Isso é bem diferente de uma infecção aguda, a covid-19, em que — como o adjetivo dá a entender — o organismo reage de maneira repentina e intempestiva. Em alguns casos, com vômitos e diarreias que mandam embora minerais fundamentais para os batimentos cardíacos, dando aqui um único exemplo.
Talvez você pense: ninguém morre do coração por causa de uma dor de barriga. Mas entenda que tudo é uma somatória. Até remédios de uso frequente na população dão um empurrão, se tomados junto com a hidroxicloroquina ou com a cloroquina, podendo arrastar o peito à beira do precipício que é a morte súbita.
É de arritmia que estamos falando
Por definição, quaisquer alterações no ritmo das batidas do coração são arritmias. Algumas fazem com que ele bata mais devagar — são as bradicardias. Outras o aceleram, as taquicardias. "E, dentro dessa divisão, o local onde se origina o problema faz diferença", aponta Guilherme Fenelon.
"Imagine o coração como um sobrado de dois andares", diz o médico. "As arritmias no andar superior são menos preocupantes do que aquelas localizadas no andar inferior, onde ficam duas câmaras chamadas ventrículos. Ali, o problema costuma ser mais maligno, ou seja, tem maior probabilidade de matar."
Mas um aspecto importante desse enredo, onde hidroxicloroquina e cloroquina literalmente se encaixam, é o bendito intervalo QT. "O coração se contrai porque tem um sistema elétrico próprio", ensina o professor Martino Martinelli. "E ele descarrega toda a sua eletricidade ao bater. Daí que precisa ser recarregado para o batimento seguinte. E essa fase de recuperação é o tal intervalo QT."
Com a recarga elétrica incompleta
Quando o intervalo QT se prolonga é sinal de que as células do músculo cardíaco estão demorando para ser recarregadas. No final, sem que possam esperar demais, tentam bater assim mesmo, com a recarga elétrica incompleta. Claro, isso não tem como dar muito certo. Elas mais tremem — ou fibrilam, como dizem os médicos — do que se contraem pra valer. Encrenca. Nessa contração meia-boca, o músculo cardíaco não bombeia o sangue. Para a circulação. Logo, tudo para.
"Nessas horas, se o sujeito está hospitalizado, o que se visualiza é uma completa desorganização na imagem do monitor", descreve o professor Martinelli, um tanto cansado de ver em filmes e séries aquela linha reta que faz os médicos de Grey's Anatomy e afins aplicarem um choque no peito do personagem em apuros usando o famoso desfibrilador — aparelho que procura, por meio de uma descarga elétrica bem dada, fazer o coração parar de tremelicar e voltar a bater pra valer.
Na verdade, se a linha está reta no monitor a parada cardíaca já é um passado sem volta. É na hora dos traçados confusos que o choque deve ser dado. São pouquíssimos minutos para fazer isso. Isto é — de novo —, se a pessoa tem a sorte de sofrer a parada cardíaca com um desfibrilador por perto e alguém que saiba usá-lo.
E o "x" da questão é que a cloroquina e a hidroxicloroquina têm partículas que se encaixam bem no ponto dos íons que iriam provocar a descarga elétrica de um novo batimento cardíaco. Ou seja, nesse lugar, elas só atrapalham a recarga, fazem com que ela demore. Portanto, prolongam o tal intervalo QT. E assim criam um cenário perigoso em que outros fatores podem entornar o caldo de vez.
Ainda tem a azitromicina para complicar
Antibiótico eficiente em infecções respiratórias, a droga é muitas vezes usada em dobradinha com a cloroquina ou com a hidroxicloroquina em pacientes com covid-19. "E, por terrível coincidência, ela já era conhecida por aumentar o intervalo QT. No meu ponto de vista, no quesito das arritmias ela é até mais vilã", declara o professor Martinelli.
O cardiologista baseia sua opinião em estudos de revisão que usaram a azitromicina em doenças reumatológicas por causa de um possível efeito antiinflamatório. Em um deles, foram comparados cerca 300 mil pacientes com artrite reumatoide que eram tratados apenas com sulfa e com sulfa mais o antibiótico. Nesse segundo grupo, a mortalidade por parada cardíaca chegou a aumentar duas vezes e meia. Ou seja, a azitromicina é outra que dá o seu empurrãozinho.
Outros remédios que mexem com o ritmo cardíaco
Ainda assim, tudo estaria um pouco mais sob controle… Só que geralmente não são apenas a hidroxicloroquina, a cloroquina e sua companheira azitromicina prolongando o intervalo QT do paciente com covid-19. "Às vezes, por ironia, até mesmo medicações que receitamos para tratar arritmias benignas provocam o problema", lembra Guilherme Fenelon.
Na realidade, a lista de medicamentos que mexem com os batimentos cardíacos e que podem ser a gota d'água é extensa. E bem presente no dia a dia de muitos cidadãos. Ela inclui: antipsicóticos, sedativos, certos antidepressivos, remédios para náuseas e enjoos, alguns antialérgicos, bronco-dilatadores, determinados antibióticos (como a azitromicina já mencionada), diuréticos e, ufa!, anti-fúngicos. Há sites médicos internacionais registrando os casos de arritmias graves provocadas por drogas assim, especialmente se usadas ao mesmo tempo.
É evidente que existe a tal da sensibilidade individual a cada uma delas isoladamente, maior ou menor conforme fatores genéticos. Mas voltamos à questão da somatória: em tese, pode ser muito mais arriscado para o coração engolir a cloroquina quando o indivíduo já era usuário de uma dessas medicações. E a gente não pode se esquecer que as pessoas mais velhas, notório grupo de risco para a covid-19, tendem a tomar vários medicamentos todo santo dia. De comprimido em comprimido, o intervalo QT vai aumentando, aumentando…
Quem está ainda mais vulnerável
Com ou sem remédios que podem alterar o ritmo cardíaco, é fato: pessoas acima de 65 anos têm maior probabilidade de desenvolver arritmias malignas, que matam do nada. E, de novo, são alvo preferencial do novo coronavírus. Mulheres, no caso, um tiquinho mais do que homens. Quem já sofreu um infarto também é grupo de risco para arritmias capazes de levar à parada cardíaca.
"Outro grupo é o das pessoas com diabetes", alerta o professor Martinelli. "Essa doença vulnerabiliza as células do músculo cardíaco." E, não custa reforçar, quem tem diabetes é mais frágil para a covid-19. Tudo se mistura de um jeito nefasto.
E tem a própria covid-19, não é mesmo?
O Sars-CoV-2 por si já faz seus estragos no peito. O professor Martinelli, que falou comigo por telefone, contou que naquele instante estava na janela do Instituto do Coração (o InCor), olhando justamente para o prédio à sua frente, o do Instituto Central do Hospital das Clínicas da USP, que hoje abriga mais de 900 pacientes com covid-19. Esclarecimento: ali, nenhum deles está sendo tratado com cloroquina, nem com hidroxicloroquina.
A novidade, segundo o médico, é um novíssimo eletrocardiógrafo capaz de fazer o exame no leito, sem atrapalhar a maçaroca de fios e de outros equipamentos. Ele detecta mínimas mudanças nos batimentos dos infectados e avisa imediatamente os cardiologistas no prédio vizinho. O monitoramento é diário, em alguns casos repetido duas vezes ao dia até. "E assim notamos que perto de 30% acabam desenvolvendo alguma alteração no ritmo cardíaco", lamenta o professor. Detalhe: as alterações podem ser observadas até em quem nunca teve nada no peito.
Agora, pense no vírus prestando o desserviço em alguém que já era de um grupo de risco para arritmia ou que tomava remédios capazes de prolongar o intervalo QT. Quem sabe um diurético que fez seu corpo eliminar muito magnésio e potássio pela urina. Esses minerais fazem uma falta daquelas na hora da tal recarga elétrica. Se chega a cloroquina então…
A cloroquina e os batimentos lentos
Estudos também mostram, segundo o professor Martino Martinelli, que ao menos o uso crônico da hidroxí e da cloroquina em pacientes com lúpus, artrite reumatóide e malária provoca bradicardia, a lentificação dos batimentos. Em princípio, isso não seria tão grave, se não fosse a ameaça de síncope, uma perda súbita de consciência por falta de oxigenação do cérebro, que não dura quase nada. E em geral a pessoa volta espontaneamente desse desmaio.
"O problema é outro. Quem tem a síncope nunca está ao lado de uma cadeira. Acontece sem aviso prévio e a pessoa cai de toda a sua altura", explica o médico. Ou seja, ela se esborracha, podendo se machucar demais. Só isso já arrepia. Sendo que, em pessoas muito idosas, um quadro assim às vezes evolui para arritmias mais graves. No contexto de um uso amplo da medicação, defendido por alguns, não é mero detalhe para deixar de lado.
E se o médico mandar?
"Se querem mesmo apostar nessa hipótese, o ideal seria, sem dúvida, o uso hospitalar", afirma Guilherme Fenelon. "No entanto, se o médico acha que é caso de oferecer o tratamento para quem está isolado em casa, no mínimo seria importante o paciente fazer um eletrocardiograma imediatamente antes de iniciar a terapia e, depois, repeti-lo a cada dois dias para flagrar qualquer mudança no intervalo QT, se ele está se prolongando ou não", informa. "Sem essa cautela, o risco, que já é bem conhecido, pode ser maior do que qualquer benefício, que ainda é incerto."
Outros exames desejáveis são o dos rins e o do fígado, inclusive para avaliar possíveis perdas de minerais, como o potássio, envolvidos na geração de corrente elétrica no coração. "Por fim, o médico que receitar a cloroquina deveria sempre perguntar a respeito de todos os outros medicamentos que aquele paciente já estava tomando", reforça. Se ele não fizer nada disso, mais um bom motivo para refletir antes de assinar qualquer termo.
"Precisaríamos de um estudo bem conduzido para ter maior noção do impacto da cloroquina e da hidroxicloroquina no coração de quem teve a covid-19", diz o professor Martinelli. "Mas o que temos, até agora, é oposto do que a Medicina almeja, passando por cima da necessidade de evidências. Nem acho que seja má fé. As pessoas querem a todo custo acreditar em bons resultados só porque observaram alguns casos que deram certo".
O professor ressalta ainda um ponto fundamental: um remédio antigo usado para uma doença completamente nova, como a que o mundo enfrenta, deve ser encarado como um lançamento: "Não adianta bater na tecla do que sabíamos sobre ele. Precisamos partir do zero, até no que diz respeito à segurança."
E fique ciente de que nenhum médico do mundo poderá lhe dar 100% de tranquilidade sobre algo que a ciência desconhece. Até que ponto o seu coração aguentaria, ainda mais em casa e sem exames? Pra valer, ninguém tem a resposta.
Sobre o autor
Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.
Sobre o blog
Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.