Dexametasona: 11 respostas para explicar a melhor notícia nesta pandemia
Lúcia Helena
18/06/2020 08h05
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Anteontem, depois exatos seis meses e meio praticamente só apanhando do novo coronavírus e, até aquela data, mais 438 mil mortes por covid-19 ao redor do mundo, nosso ânimo pode recuperar o fôlego com uma boa notícia. Você, claro, já deve saber: pesquisadores da Universidade de Oxford, na Inglaterra, anunciaram ao mundo a primeiríssima evidência científica de que uma droga, a dexametasona, seria de fato capaz de evitar mortes entre os infectados pelo Sars-CoV 2 que precisaram de internação.
Os resultados são preliminares. O estudo com os dados completos deve sair em poucas semanas em uma revista científica, mas acredite: a boa nova, desta vez, não é fogo de palha. Apenas com o que já foi divulgado dá para ter segurança de que é pra valer.
"Dia histórico no tratamento da covid-19", declarou, horas depois do anúncio, Clóvis Arns da Cunha, presidente da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), em comunicado da entidade. E foi justamente ele que procurei para tirar todas as dúvidas que podem passar pela nossa cabeça.
Professor da Universidade Federal do Paraná, especializado em doenças infecciosas pela Universidade de Minnesota, nos Estados Unidos, o infectologista é enfático: "Não devemos esperar nem mais um dia para usar a dexametasona nos pacientes hospitalizados que precisam de oxigênio", afirma, reforçando a orientação oficial da SBI.
1. Qual foi o resultado da dexametasona e por que tanta empolgação?
O causador da covid-19 nunca esteve para brincadeira. Em geral, se você contabilizar todo mundo que ele infecta, sua letalidade ou capacidade de matar é de 3% a 5%. Portanto, ele tira a vida de até cinco de cada 100 infectados por aí, isto é, colocando todos os pacientes no mesmíssimo plano, incluindo quem mal sentiu alguma coisa e quem até apresentou sintomas, mas não tão fortes a ponto de uma internação ser necessária.
No entanto, se você olhar apenas para os hospitalizados, a coisa muda de figura: nos melhores centros de saúde do planeta, com todos os recursos à disposição, um em cada cinco pacientes que dão entrada não sai vivo. Não há, ou melhor, não havia mais o que fazer. E isso é o que pode mudar bastante com a dexametasona.
"Quando o vírus alcança os pulmões, causando a pneumonia, a inflamação que ele deflagra é tão intensa que provoca a hipóxia, a diminuição das taxas de oxigenação no sangue", diz Arns da Cunha. "E ela pode ser tão forte que aí não tem jeito: para sobreviver, o paciente precisa ir para o hospital."
No estudo de Oxford, a dexametasona reduziu em 20% as mortes daqueles que estavam em quarto normal, apenas recebendo oxigênio extra. E, nos casos mais graves, os daqueles doentes na UTI respirando por ventilador mecânico, houve uma redução de 33% na mortalidade. Faz sentido a redução maior na UTI, porque ali morre mais gente com covid-19 também.
Difícil fazer uma conta de padaria, mas podemos imaginar que, só na cidade de São Paulo, onde ocorreram 389 mortes por covid-19 nas últimas 24 horas, teriam sido poupadas até 130 vidas, se o remédio já estivesse sendo utilizado.
Conhecida há mais de 50 anos, da classe dos corticosteroides usados para tratar doenças como lúpus, alergias e artrite, a dexametasona é barata, pode ser encontrada com facilidade em qualquer canto do globo terrestre e, sim, é a primeira medicação que apresenta evidências científicas robustas contra a covid-19 O que, depois de um semestre tentando no desespero diversas armas do arsenal terapêutico sem a menor certeza de sucesso, faz total diferença.
2. E por que esse estudo não deixa margem à dúvida na cabeça dos cientistas?
Porque é um estudo randomizado com grupo controle. Provavelmente nos últimos meses, quando outros remédios ameaçaram surgir no pedaço, você ouviu a grita dos cientistas: "Não há nenhuma evidência de que funcione! O estudo não foi randomizado!" Não era chatice, perseguição, nem cisma infantil.
Entenda: randomizar significa sortear quem fica de qual lado. Os pesquisadores de Oxford não escolheram os 2.104 pacientes com covid-19 que, ao longo de dez dias, receberam a dexametasona. Nem os 4.321 pacientes que continuaram sendo tratados do jeito de sempre, isto é, que formaram o tal grupo controle, tornando possível a comparação.
"Se eu escolher quem fica de qual lado, sempre existirá um viés", explica Arns da Cunha. Em outras palavras, o médico pode não dar o remédio para um sujeito por ele ter uma doença anterior, nem para outro por ser muito velho, nem para outro por ter — sabe-se lá! — cara feia. Desse modo, sem um sorteio, nunca dá para a gente botar a mão no fogo e dizer que aquele medicamento funciona para todos contra determinada doença.
Nenhum, absolutamente nenhum remédio na Medicina é aprovado sem um estudo randomizado, seja para asma, para diabetes, para depressão, para frieira no pé…Todos passaram por esse crivo. No caso da covid-19, é a primeira vez que um deles passa. Isso alça a dexametasona ao patamar daquilo que tem evidência científica.
"Por esse critério, um médico pode ter excelentes resultados com um remédio em dez, trinta, cinquenta pacientes sob os seus cuidados. Sem haver o tal sorteio e sem compará-los com quem não foi tratado do mesmo jeito, o valor científico disso é praticamente zero", ensina Arns da Cunha.
Esse é um ponto tão importante que as revistas científicas, quando aceitam divulgar uma pesquisa que não foi feita dessa maneira, publicam na última linha a advertência de que é precisamos do que mesmo..? De um estudo randomizado, oras!
3. Por que a dexametasona só funciona para pacientes que estão hospitalizados?
Nem pense em correr para a farmácia. Preciso sublinhar que a dexametasona não previne nada e aparentemente, segundo os cientistas de Oxford, não traz benefício algum para aqueles indivíduos que, mesmo que tenham covid-19, não estão precisando de auxílio para respirar, o que acontece quando a inflamação nos pulmões já está bem avançada — tão avançada que há o risco sério de morrer subitamente. É só nesse momento que esse corticosteroide mostra a que veio.
4. Por que o remédio consegue evitar mortes?
Uma das ciladas armadas pelo novo coronavírus é que, muitas vezes até mesmo quando no paciente começa a melhorar, o sistema imunológico tem uma espécie de reação-rebote, derramando uma quantidade imensa de proteínas — citocinas ou, se preferir, citoquinas — que chamam as células de defesa para a briga. O tecido do pulmão fica arrasado. Seus alvéolos se enchem de líquido e, nesse campo de batalha inundado, a troca do gás carbônico pelo oxigênio fica impossível.
Essa tempestade de citocinas, como o fenômeno é conhecido, se perpetua até mesmo quando o vírus já desapareceu. É a sua herança maldita — o caos dentro de nós.
Cientistas do mundo inteiro já buscavam estratégias para calar essa tormenta imunológica. É aí que a dexametisona entra em cena — seu efeito anti-inflamatório funcionou para acalmar a tempestade. "E essa é apenas parte da história do que acontece dentro do organismo", esclarece Arns da Cunha. "Há toda uma cascata de substâncias inflamatórias e a tempestade de citocinas é só um dos fenômenos."
Existe o aumento da proteína C reativa, da ferritina sérica e de diversas outras substâncias botando mais lenha nessa fogueira. Guarde o nome de uma delas: interleucina-6 ou IL-6, uma encrenqueira de marca maior nos casos de covid-19. Tanto que a ciência também busca um remédio para calar o seu bico.
5. Mas, então, se corticosteroides são anti-inflamatórios tão conhecidos, por que ninguém pensou neles antes?
Largue mão de teorias baratas e conspiratórias na linha "por ser um remédio comum e barato, blá-blá-blá…". Não é tão simples. "A gripe, causada pelo vírus influenza, também provoca uma tempestade de citoquinas e, quando se estudou a possibilidade de usar corticosteroides para dar algum alívio aos gripados, eles não fizeram o menor efeito", lembra o professor Arns da Cunha.
Idem, quando aconteceram as epidemias de Sars, na China em 2002, e de Mers, no Oriente Médio em 2012. Ambas, diga-se, provocadas por tipinhos de coronavírus, da mesma família do bandido da vez. Aliás, nessas duas doenças, os corticosteroides até pioraram bastante a situação dos pacientes. Foram um tiro no pé.
"Já a pneumonia por Pneumocystis carinii, uma infecção oportunista que no passado foi o terror das vítimas de Aids, é tratada com sucesso desde os anos 1990 com corticosteroide", exemplifica Arns da Cunha.
6. Por que um anti-inflamatório funciona em uma infecção nos pulmões e não funciona em outra?
"Toda doença infecciosa é feito uma balança com dois pratos. Um deles é o micro-organismo que está causando o problema. O outro é o seu hospedeiro", compara o professor. "Os pesos podem ser diferentes em cada situação e, daí, eu nunca posso transportar o que acontece em uma delas para todas."
Ou seja, não podemos colocar todas as viroses respiratórias no mesmo saco e achar que esse ou aquele corticosteroide vai resolver tudo. "É preciso estudo não apenas para saber se um cortiscosteroide funciona para uma infecção específica, mas para acertar na dose", complementa o infectologista.
A dose do anti-inflamatório usada nos casos da pneumonia oportunista em pacientes com HIV é relativamente alta perto da dosagem que está sendo usada agora na covid-19, baixíssima. "Talvez, se fosse mais alta, faria mais mal do que bem", especula Arns da Cunha. Mais um motivo para você fugir feito o diabo da cruz de qualquer auto-medicação.
7. E será que outros corticosteroides, remédios da mesma classe da dexametasona, poderiam ter um bom efeito?
Fique claro que o estudo prova o efeito positivo da dexametasona — e por enquanto só dela — nos pacientes que precisam de auxílio para respirar. "No entanto, podemos imaginar uma situação em que, em certo momento, em um hospital do interior do país, essa medicação específica esteja em falta, apesar de ela ser bastante comum", diz Arns da Cunha. "Para os corticoides, nós temos então o que chamamos de doses equivalentes, ou seja, sabemos a quantidade de outro remédio da mesma classe, como a prednisoma, que poderia ser dada no lugar da dosagem determinada da dexametasona. Não seria o ideal, mas será melhor usar um equivalente em último caso do que não usar nada, diante dos resultados de Oxford", opina.
8. Quando o novo tratamento deverá ser usado?
Alguns hospitais americanos, por exemplo, preferem esperar a publicação completa do trabalho britânico. Em todo o Reino Unido, porém, a droga já passou a ser administrada por via endovenosa nos pacientes em UTI e por comprimido, naqueles que estão em quartos, desde o próprio dia do anúncio. E aqui?
"Nos hospitais de Curitiba, onde estou, a dexametosasona começou a ser usada na terça-feira mesmo, também", contou a professor. Segundo ele, a capital do Paraná não quis perder tempo porque viu os casos da doença aumentarem assustadoramente nos últimos cinco dias, quando tudo parecia estar mais sob controle do que em outras capitais do país.
"É claro que as instituições e os profissionais de saúde têm liberdade para escolher como irão tratar seus pacientes. Mas a orientação prática da própria SBI é para todos usarem a dexametasona já", declara.
9. Não há risco, nem efeitos colaterais?
Quando a pandemia iniciou, um dos receios dos médicos era de que os corticosteroides, se arriscassem a usá-los como anti-inflamatórios, impedissem o sistema imunológico de atacar o coronavírus. De fato, essa classe de medicamento pode deprimir as defesas.
"Mas, no caso da dexametasona, a dose precisaria ser bem maior do que os 6 miligramas uma vez ao dia que foram dados aos pacientes na Inglaterra", tranquiliza o professor Arns da Cunha. "Sem contar que, mesmo se a dose fosse maior, o tratamento dura dez dias e esse efeito inumosupressor apareceria lá por volta do décimo-quarto."
Portanto, esse é um medo para tirar da frente desde que — atenção! — o paciente já apresente um quadro grave e esteja hospitalizado. Em casa, o efeito de baixar a guarda do sistema imune pode entornar o caldo de vez.
Nos hospitais, porém, a dose aplicada nos pacientes com covid-19 é tão baixa que também é improvável o surgimento de outras reações colaterais do medicamento, como aumentar a pressão e a glicemia. "Sem contar que, como os pacientes estão hospitalizados, esses efeitos poderão ser imediatamente controlados pela equipe encarregada do atendimento", diz Arns da Cunha.
10. A recuperação dos pacientes pode ser mais rápida com o uso desse remédio?
Há indícios — por exemplo, de um estudo realizado na Espanha, mas que, além de ser pequeno, não foi randomizado — de que a dexametasona possa não só evitar mortes, mas encurtar o tempo que as pessoas internadas na UTI precisariam da ventilação mecânica.
"Por enquanto, o que temos certeza é da diminuição da letalidade, usando um parâmetro que é universal para examinar isso quando se testa qualquer remédio contra uma doença fatal: quantas pessoas tratadas com ele morrem em 28 dias", ensina o professor Arns da Cunha.
11. Dexametasona pode significar o fim da pandemia?
Nunca. Não misture as coisas. Ela ajudará a mudar a cara do tratamento, fazendo com que muito mais gente se recupere bem. E a ela, quem sabe, se somarão outros remédios logo mais, como anti-inflamatórios potentes capazes de bloquear os receptores da interleucina-6 que já mencionei. Ouso descrevê-la, por minha conta e risco, como uma molécula que arma o barraco no organismo acometido pela covid-19.
Com um arsenal eficaz — diga-se, com a ciência assinando embaixo sempre — a cara do tratamento poderá mudar. E as chances de se recuperar de uma covid-19 aumentarão. É disso que se trata.
Para conter uma infecção por um vírus qualquer, no entanto, os caminhos seriam outros e não o uso de uma dexametasona.
Um desses caminhos, como aprendi com o professor Arns da Cunha, seria lançar mão de remédios para diminuir bastante a carga viral dos pacientes, o que existe para a Aids. Ou, como faz o oseltamivir de um famoso remédio para gripe, encurtar o tempo da doença. "Ora, assim você encurta também o período em que a pessoa adoentada está passando gripe para os outros", exemplifica o médico. Outro caminho é aquele com que todo mundo sonha — o da vacina. Mas vai demorar um bocadinho.
Só nos resta o terceiro: medidas preventivas no dia a dia. "Para Aids e outras infecções sexualmente transmissíveis, seria transar de camisinha", compara Arns da Cunha "Já para a covid-19 é sustentar o comportamento de lavar repetidamente as mãos, passar álcool em gel e não levá-las à boca, ao nariz, nem aos olhos. Ficar em casa o máximo possível e, se precisar sair, manter uma distância de 1,5 metro entre você e outra pessoa. Para completar, usar máscara sempre", resume o professor. Não tem laboratório faça isso por nós. E nem reclame da vida: já tivemos uma ótima notícia.
Sobre o autor
Lúcia Helena de Oliveira é uma jornalista apaixonada por saúde, assunto sobre o qual escreve há mais de três décadas, com cursos de especialização no Brasil e no exterior. Dirigiu por 17 anos a revista SAÚDE, na Editora Abril, editou 38 livros de autores médicos para o público leigo e, recentemente, criou a Vitamina, uma agência para produzir conteúdo e outras iniciativas nas áreas de medicina, alimentação e atividade física.
Sobre o blog
Se há uma coisa que a Lúcia Helena adora fazer é traduzir os mais complicados conceitos da ciência da saúde, de um jeito muito leve sem deixar de ser profundo, às vezes divertido, para qualquer um entender e se situar. E é o que faz aqui, duas vezes por semana, sempre de olho no assunto que está todo mundo comentando, nos novos achados dos pesquisadores, nas inevitáveis polêmicas e, claro, nas tendências do movimentadíssimo universo saudável.